RESUMO

O presente estudo tem como finalidade analisar à aplicação dos deveres de cooperação na fase externa do contrato, ou seja, na fase das tratativas, conhecida como fase pré-contratual, ocasião na qual a margem de interpretação dos direitos e deveres de cada uma das partes são consideravelmente amplos, principalmente por não estarem expressamente previstas em lei e nem pactuado pelas partes, mas ainda exigindo de fato um deve jurídico em relação as partes envolvidas, capaz de gerar responsabilidade. Assim, as partes deverão agir em cooperação com sua contraparte, cujo objetivo é não causar prejuízo a outra parte da relação. Desta forma, analisaremos, por meio deste estudo, o surgimento dos deveres de cooperação, bem como, a classificação de cada um deles, traçando um paralelo com o Código Civil, sob o aspecto da boa-fé objetiva e também sob a ótica Constitucional, através do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, da Solidariedade e da Justiça Social, além de sua consequência em caso de inobservância e, por fim, será demonstrada a crítica levantada em relação ao tema.

 

INTRODUÇÃO

É sabido que o contrato é o acordo de duas ou mais vontades na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesse entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial[1].

Assim, com força de lei, o contrato delimita os direitos e deveres das partes, de modo que em sendo descumprido, estaremos diante de responsabilidade civil, a ensejar reparação ao prejudicado, por parte daquele que descumpriu sua obrigação.

Ocorre que determinados comportamentos e condutas são esperadas das partes contraentes antes mesmo da efetivação da avença, enquanto estão em tratativas e negociações preliminares, de forma que atualmente o direito caminhou no sentido de exigir das partes obrigações acessórias, vinculadas às regras de condutas éticas, não estabelecidas no instrumento.

Estes deveres acessórios, popularmente conhecido como deveres de cooperação e/ou colaboração, devem ser observados pelos contraentes, não só na fase de cumprimento do contrato, mas também na fase pré-contratual, ou seja, na fase que antecede a formação do contrato, fase das negociações preliminares.

Desta forma, o presente trabalho busca estudar as obrigações e, principalmente, responsabilidades não descritas no contrato, não pactuadas, mas que hoje se aceitam como implícitas, de maneira que devem ser observadas e cumpridas previamente à formação da avença, exigindo-se uma conduta leal e honesta das partes.

O objetivo principal deste trabalho é demonstrar que os deveres de cooperação são verdadeiras obrigações jurídicas, capazes de gerar responsabilidade civil, caso não sejam aplicados pelas partes envolvidas na relação.

Estes deveres – lealdade, informação, sigilo e proteção – devem estar presentes em toda contratação, principalmente antes, sendo sua inobservância fator isolado e suficiente para viciar um negócio jurídico e ocasionar responsabilidade civil.

Sendo assim, a fim de ressaltar a importância da aplicação destes deveres, iniciaremos a análise do contexto histórico, passando pelo conceito dos deveres, discorrendo pontualmente sobre cada um deles, traçando um paralelo entre o Código Civil e a Constituição Federal e, por fim, será analisada a responsabilidade na fase pré-contratual e sua crítica.

 

1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Para se chegar ao estudo dos chamados deveres de cooperação se faz necessário contextualizar o momento social, uma vez que, assim como a sociedade, o Direito também evolui, sendo imprescindível a compreensão desta fase de transformação.

Partiremos a partir do período da pós-modernidade, pois este pode ser considerado como um pensamento filosófico que se contrapõe à chamada modernidade, sendo a tecnologia o maior marco revolucionário deste tempo. Entre as características marcantes provocadas e vividas pelo homem nesta era pós-moderna tem-se a globalização, unificadora das fronteiras do planeta, a tecnologia na potência máxima, um Estado poluidor e devedor, liberdade plena, vazio moral e ético, culto à estética, ao exibicionismo, e a transformação da busca da felicidade em uma verdadeira imposição ou obsessão.

A sociedade pós-moderna é verdadeiramente uma sociedade de massa, onde a própria segurança jurídica passa a ser uma preocupação eminente, já que todos passam a viver vazio e incertezas. É como se o ser humano perdesse o controle da sua própria vida, afastando-se cada vez mais da promoção do bem comum.

O grande sociólogo alemão Ulrich Beck[2] afirma que em verdade somos testemunhas oculares de uma ruptura com a modernidade, a qual se destaca dos contornos da sociedade industrial clássica, assumindo nova forma, agora chamada sociedade de risco. Interessante ainda ressaltar que o pensador nos coloca tanto como sujeitos, como objeto desta mudança.

Ulrich Beck vai além, e nos faz concluir que vivemos no anonimato, onde a sociedade se transforma em um grande laboratório em que não é possível saber quem é o responsável pelas experiências que vêm sendo realizadas, mas que atingem a todos:

“Políticos dizem que não estão no comando, que eles no máximo regulam a estrutura para o mercado. Especialistas científicos dizem que meramente criam oportunidades tecnológicas: eles não decidem como elas serão implementadas. Gente de negócios diz que está simplesmente respondendo a uma demanda dos consumidores. A sociedade tornou-se um laboratório sem nenhum responsável pelos resultados do experimento. ”[3]

O jurista e filósofo brasileiro Alceu Amoroso Lima[4], já na década de 60, identificava uma crise que estava por vir, onde há perda da fé no próprio direito decorrente do individualismo, que culminaria em algo que chamou de desumanização do direito, onde a racionalidade excessiva, o positivismo impessoal passaria a ser aplicado mecanicamente, esvaziando o direito como ciência autônoma, e submetendo-o a outros interesses, principalmente à economia.

É fato que estamos hoje inseridos em uma sociedade de massa, onde a lesão a direitos se propaga na mesma velocidade da informação.

Parte destas características sociais foram resultado da própria Revolução Francesa, que ao assumir o poder, trouxe a ideia de liberdade ampla, de propriedade privada intangível, de patrimonialismo, com mínima intervenção do Estado. Fez isso por meio da lei, já que quem as editava era justamente a classe dominante burguesa, de forma que o magistrado possuía pouco campo de atuação, de interpretação.[5] Com isso, no Direito Civil, a proteção do indivíduo estava, a bem da verdade, projetada sobre seus interesses econômicos e seu patrimônio.

O Código Civil brasileiro de 1916, assim como outras codificações civis alienígenas pós Revolução Francesa foi editado em meios a esta influência, coincidindo com os últimos reflexos de um momento histórico marcado pelo individualismo, daí seu caráter mais patrimonialista, mais formal.

Ocorre que, após as duas grandes guerras, o mundo ocidental passou a ingressar em uma nova era, onde o patrimonialismo passou a dar espaço para anseios sociais, para o reconhecimento da dignidade humana.

Não foi por outra razão que Miguel Reale, idealizador de maior destaque do Código Civil de 2002, buscou acomodá-lo sobre novos pilares, agora sociais, passando a dar ênfase à dignidade da pessoa humana e a prestigiar novos valores. Não é à toa que se diz ser um código marcado pela eticidade, socialidade e operabilidade.

Um exemplo claro e marcante do código vigente foi a presença da boa-fé objetiva[6]. A boa-fé passou a nortear o comportamento das pessoas no trato da vida civil, exigindo delas normas de conduta ligadas à ética, honestidade, lealdade, situação impensada na codificação anterior, de estrutura formal rígida, com pouco espaço para interpretação.

Veja-se que construir valores éticos como orientadores da conduta humana é um grande desafio, já que a cultura patrimonialista ainda está entranhado nas gerações que dela experimentaram (e que educam a geração seguinte). Isso fica claro até quando se analisa decisões judiciais proferidas por magistrados de longa carreira, justamente porque esses juízes estudaram por muitos anos a legislação anterior, de característica liberalista, individualista, não sendo tarefa difícil notar a forte ideologia patrimonialista em seus convencimentos, resquício de seu tempo.

Hoje, falar em colaboração entre as partes adversas em um cenário capitalista de forte e intensa concorrência, não deixa de soar como uma contradição, mas é esse o maior desafio destes tempos, de maneira que se torna, extremamente, necessária à aplicação dos deves de cooperação.

 

2 DEVERES DE CONSIDERAÇÃO

Os deveres de cooperação têm origem na doutrina alemã[7], sendo mais tarde objeto de estudo pelo direito espanhol, francês, argentino e, finalmente, pelo direito brasileiro, tendo o renomado professor Rogério Ferraz Donnini[8], estabelecido a classificação destes deveres com tamanha clareza:

É importante salientar que os deveres acessórios têm por finalidade evitar que uma das partes, utilizando-se de meios inadequados, impróprios, inconvenientes, contrários a uma relação obrigacional justa, equânime, equilibrada, cumpra de forma inexata, inconveniente, a prestação acertada, sem, contudo, violar os termos contratuais ou mesmo disposição legal específica, que regule uma dada situação, mas causando, é bem de ver, prejuízos à outra parte.

Os deveres acessórios são, na realidade, impostos numa relação obrigacional com o fim de evitar que situações dessa natureza fiquem desamparadas pela simples ausência de um dispositivo legal específico ou de uma cláusula no contrato que preveja expressamente um certo comportamento. Por essa razão, o descumprimento desse dever, que é imanente da relação obrigacional, gera, caso haja prejuízo à outra parte, a obrigação de indenizar, com fundamento na violação da cláusula geral de boa-fé, que impõe às partes deveres de lealdade, informação e proteção (deveres acessórios).

Ou seja, os deveres de cooperação exigem uma conduta de confiança entre as partes contratantes, antes mesmo de formalizar ou concretizar uma avença, sendo uma espécie de colaboração que irá transcender os limites objetivos ou temporais do contrato

A exigência de observância destes deveres e a necessidade de cooperar com o outro, passa a ser mais que obrigação moralmente desejável, concretizando verdadeira obrigação jurídica, que se não observada pode gerar responsabilidade civil

O desatendimento de um comportamento ético é capaz de gerar dano, como, por exemplo, informação insuficiente sobre o uso de um produto que venha a se danificar, havendo, por parte daquele que rompeu com tal dever, a responsabilidade por eventuais prejuízos.[9]

Ainda que a finalidade principal de uma obrigação seja satisfazer interesses do credor, é necessário que isso ocorra hoje dentro dos limites do ordenamento jurídico e dos valores por ele eleitos, especialmente dentro do conceito de dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). É necessário que o próprio credor assuma uma posição de cooperação e colaboração para o adimplemento.[10]

Desta forma, é possível notar que os deveres de cooperação devem estar presentes em toda contratação, inclusive antes, sendo sua inobservância fator isolado e suficiente para viciar um negócio jurídico, passando-se a partir de agora a discorrer sobre cada um destes deveres.

 

2.1 DEVER DE LEALDADE

O dever de lealdade obriga as partes a absterem-se de comportamentos que possam falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignadas, pressupondo que as partes atuem de forma honesta, retilínea, prestigiando a confiança que a outra parte deposita no negócio, sendo uma vertente da própria concepção de boa-fé objetiva (mais adiante analisada).

 

 2.2 DEVER DE INFORMAÇÃO

A palavra informação significa ato ou efeito de informar-se; dados acerca de algo ou alguém; comunicação ou notícia trazida ao conhecimento de alguém ou do público; instrução, direção; conhecimento amplo e bem fundamentado.[11]

Este dever está relacionado a uma comunicação clara e, principalmente, honesta entre os sujeitos, ou seja, a informação será a comunicação de determinados atos ou fatos e o dever de informação será justamente o dever jurídico de proceder a esta comunicação.

Durante as negociações preliminares, por exemplo, poderá surgir a necessidade de uma das partes esclarecer dúvidas sobre os mais variados aspectos da relação contratual que se pretende firmar, de modo que a contraparte está, pelo dever de informação, obrigada a esclarecê-las.

Além disso, o dever de informação possui viés positivo e negativo. O primeiro seria com relação às informações prestadas efetivamente, que não poderiam ser dúbias, incompletas, obscuras, imprecisas ou contraditórias. Já com relação ao viés negativo, este estaria relacionado à omissão de informações essenciais ao negócio.

Desta forma, o dever de informação está ligado aos aspectos de difícil constatação, onde o detentor desta tem o dever de noticiar ao outro, a fim de que este tenha conhecimento sobre tudo aquilo envolvido na relação.

 

2.3 DEVER DE SIGILO

O dever se sigilo remete a ideia de não prejudicar o outro com a divulgação de informação ou dados, já que durante a fase preliminar, pode se tornar imprescindível que uma parte preste à outra informações confidenciais, fazendo com que a outra parte se abstenha de transmitir tais informações, fato que poderia ocasionar prejuízos de toda ordem à contraparte, sendo o dever de sigilo, um dever de consideração a ser observado como decorrente da boa-fé objetiva, justamente o estudo que aqui se propõe.

 

3. DEVERES DE CONSIDERAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL – BOA-FÉ OBJETIVA

Os deveres de lealdade, sigilo, informação e proteção, não vêm positivos no texto do Código Civil vigente. A despeito de alguns dispositivos disciplinarem situações específicas, como o dever de informação nos contratos de transporte[12], o fato é que não se confundem com os deveres de consideração propostos neste trabalho como regra de conduta.

Embora aqueles deveres não estejam positivados no texto do código, o fundamento central de onde decorrem, reside na boa-fé objetiva, que impõe um comportamento honesto, leal, colaborativo.

É sabido que a boa-fé surge como algo exterior ao sujeito, que lhe impõe, sendo responsável em exigir um comportamento ético entre as partes e, principalmente, evitar lesões à estas, de modo que, a liberdade de contratar deve ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, resultando nos valores da boa-fé[13].

Segundo Maria Helena Diniz[14], a boa-fé não só está ligada a interpretação do contrato, mas também sobre o interesse social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes deverão agir com lealdade, honestidade, honradez, probidade (integridade e caráter), denodo e confiança recíprocas, procedente de boa-fé, esclarecendo os fatos e conteúdo das cláusulas, procurando o equilíbrio nas prestações, respeitando o outro contratante, não atribuindo a confiança depositada, procurando cooperar, evitando o enriquecimento indevido, não divulgando informações sigilosas e etc.

Assim, é a partir da boa-fé objetiva, hoje concretizada no Código Civil brasileiro no art. 422, que os deveres de consideração passam a ser obrigação jurídica imposta a todos no tráfico da vida civil, seja quando estão em tratativas preliminares de negociação, quando deverão se portar da forma mais honesta e colaborativa possível, seja porque estão formalmente vinculadas por um contrato, seja ainda quando já adimpliram obrigações reciprocamente assumidas, momento que subsistirão obrigações laterais de parte a parte. Nos três casos, a inobservância dos deveres de consideração acarretará responsabilidade civil.

 

4. DEVERES DE CONSIDERAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A despeito do fundamento central dos deveres de consideração residir na boa-fé objetiva, concretizada hoje como cláusula geral no Código Civil brasileiro, é possível também extrair fundamento constitucional para a origem destes deveres, o que se dá por meio dos Princípios da Solidariedade, da Dignidade da Pessoa Humana e da Justiça Social, todos positivados na Lei Maior.

Prevista em nosso ordenamento jurídico no Art. 3º, inciso I da Constituição Federal[15], a solidariedade se apresenta como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como verdadeiro princípio constitucional.

A palavra solidariedade presume a ideia de um vínculo, de relação estreita e forte, entre vários sujeitos ou partes e, além disso, em se tratando de sujeitos humanos, a ideia de responsabilidade um para com o outro, no sentido de erguer ou amparar o debilitado, de assistência moral, de ajuda ao próximo, de verdadeira cooperação entre pessoas, daí seu vínculo e influência sobre os deveres de consideração ora estudados nesta tese.

Na filosofia, a solidariedade partiu de Aristóteles, com a ideia de justiça, amizade e caridade. Aristóteles na Antiguidade Clássica posiciona a amizade como algo que precederia a própria Justiça, já que as pessoas amigas, uma vez amistosas reciprocamente, não precisariam da justiça. A amizade para Aristóteles se dá por questões emocionais e não racionais, sendo uma reciprocidade de interesses, reciprocidade na companhia, no querer bem da outra pessoa.

Assim, se é possível colaborar, o sujeito passa a ter este dever. A solidariedade passa a estar presente nas relações particulares muito além de um dever moral. Desta forma, muito embora o fundamento central dos deveres de consideração seja a boa-fé objetiva, é certo que os deveres colaterais de lealdade, honestidade, confiança, proteção, etc, estão absolutamente influenciados pela ideia da solidariedade.

Dentro de nossa jurisprudência, o princípio da solidariedade por si só ainda aparece de forma tímida para fins de responsabilidade civil, estando mais associado aos processos envolvendo direito de família. No entanto, veja-se julgado do Tribunal de Justiça Paulista, que a par de reconhecer a solidariedade como um dever a ser observado, condenou vizinho que se recusava a pagar contribuição pecuniária para associação de bairro que cuidava dos interesses de todos os moradores das ruas ali adjacentes, sem que tivessem estabelecido vínculo contratual com cada um deles, ou algum tipo de permissão ou autorização, veja-se:

“Cobrança. Prestação de serviços por parte de associação de moradores de loteamento. Local com portarias, veículos com radiotransmissor, conservação de vias públicas e jardinagem. Fornecimento de água deve ser excluído da verba pleiteada, uma vez que o imóvel do réu não possui construção e não consta consumo do produto. No mais, deve prevalecer o princípio da solidariedade. Enriquecimento sem causa não pode sobressair. Apelo provido em parte.” (TJSP – Apelação Cível com revisão n 304.085-4/8-00 – Rel. Natan Zelinschi de Arruda – jugto em 11.01.2007)

Este tipo de decisão, calcada sobretudo em um dever de solidariedade entre particulares, ainda não é maioria em nossa jurisprudência, mas dentro do estudo do Direito, vem ganhando espaço, já que  a solidariedade hoje aparece como cláusula geral, ganhando força no sentido de dever, em muito relacionada com a boa-fé e os deveres de consideração dela decorrentes.

A seu turno, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, na qualidade de valor absoluto, foi positivado logo no Art. 1, inciso III da Constituição Federal[16], sendo possível dizer que o ser humano, assim, foi colocado como centro do ordenamento jurídico, sendo ele o princípio e a razão de todo direito.

O princípio da Dignidade Humana, a bem da verdade, parece possuir dois viés distintos, quais sejam, o primeiro deles ligado aos mecanismos de proteção das próprias pessoas, garantindo tratamento humano, não degradante, digno, protetivo da integridade física e psicológica, pensado muito mais sob o discurso geral dos direitos humanos, que transbordam o próprio plano nacional e transcendem para um pensamento macro do sistema.

A dignidade humana, até pelo status constitucional de máxima importância que possui, em sintonia com o direito civil privado, determina um comportamento humano baseado especialmente na ética, na boa-fé, da probidade, e na função social que deve estar presente nos contratos, na propriedade e em todos os demais institutos regulados e protegidos pelo ordenamento. Novamente citando o Professor Donnini,[17] que conclui utilizando-se das palavras do grande Miguel Reale: “Agir de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana é o mesmo de atuar embasado na ética.”

Outro princípio decorrente da dignidade da pessoa humana é o da justiça social, previsto no caput do art. 170 da Constituição Federal. Esse princípio está ligado à igualdade e vinculado com uma política de justiça social. A relação entre eles acontece na medida em que a igualdade preconizada na Constituição Federal no caput do art. 5º tem por objetivo realizar a dignidade do ser humano para que seja efetivada justamente a justiça social do art. 170, caput, da Carta Republicana, que por sua vez não existirá se em dada relação jurídica houver a ruptura dos deveres de consideração.[18]

O conceito de justiça social surgiu em meados do século XIX ligado ao conceito de equidade social, cuja ênfase reside justamente no respeito aos direitos humanos e ao desenvolvimento das classes menos favorecidas por meio de oportunidades.

Portanto, tendo em vista que o sistema jurídico hoje é complexo, exigindo cada vez mais que haja diálogo entre cada uma das fontes de lei, tem-se que os deveres de consideração estudados nessa dissertação não decorrem exclusivamente da boa-fé objetiva positivada no Código Civil, mas podem também ser extraídos a partir da Constituição Federal, hoje de amplo alcance social e humano, especialmente pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da justiça social.

 

5. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL

Não há que se falar em formação de contrato sem que as partes tenham passado por um momento anterior, ou seja, momento das tratativas. Nesta fase ocorre a discussão, a negociação, cujo objetivo é amadurecer as ideias e os objetivos em comum das partes, o que, posteriormente, resultará na formação do contrato. Esta fase que antecede o pacto é chamada pré-contratual[19].

Superada a classificação inicial, faz se necessário estabelecer a distinção entre a fase pré-contratual, objeto deste estudo, uma vez que não confunde com contrato preliminar ou pré-contrato. Isso porque na primeira as partes estão atraídas para a formação do contrato, enquanto que no contrato preliminar ou pré-contrato as partes já se encontram sob o prisma contratual, inclusive, com todos os requisitos essenciais do contrato a ser celebrado. Aliás, distinção muito bem pontuada por Silvio de Salvo Venosa[20]:

(...) Todavia, quando falamos de responsabilidade pré-contratual, esta decorre justamente de danos causados na fase de negociações, fora do contrato, indenizáveis sob a égide do artigo 1866 [...]. Na esfera dos negócios mais complexos, é comum que as partes teçam considerações prévias, ou firmem até mesmo um protocolo de intenções, mas nessas tratativas preliminares ainda não existem os elementos essenciais de um contrato [...]. Gozando o pré-contrato de todos os requisitos de um contrato, seu inadimplemento é examinado sob o prisma contratual. O contrato preliminar estampa uma fase da contratação, porque as partes querem um contrato, mas não querem que todos os seus efeitos operem de imediato. Como negócio jurídico, porém, goza de autonomia. Enfatizamos que a figura ora estudada afasta-se das negociações preliminares referidas, estampadas por simples manifestações sem caráter vinculativo.

Assim, quando as partes estão negociando determinada contratação, seja de forma verbal ou escrita, gerando uma confiança recíproca de que o trato será concretizado, estarão vinculados à boa-fé, assumindo uma obrigação implícita de prosseguir, de modo que abandonar ou desistir da negociação, desde que cause prejuízo ao outro, ocasionaria responsabilidade civil pré-contratual (culpa in contrahendo).

A culpa in contrahendo[21], surgiu na Alamenha por intermédio de Ihering, em 1861, diante de seu inconformismo com a injustiça que se acometia quando uma parte confiava genuinamente na declaração de vontade da outra, e depois se deparava com a invalidade do contrato.[22]Ou seja, a ideia central desta teoria é a de que contratantes devem agir de forma a evitar prejuízo, pois do contrário deverão responder pela sua inobservância.

A partir do estudo realizado por Ihering surgiram várias outras obras em diversos países, tais como Itália, França, Portugal, Argentina e, finalmente no Brasil, sendo objeto de estudo em 1959 por Antônio Chaves, através de sua obra Responsabilidade pré-contratual[23]

Nesse sentido, a jurisprudência[24] brasileira vem caminhando cada vez mais pela aplicação da teoria culpa in contrahendo:

Ao que se tem dos autos, a recorrida, instada pela BMW, afirmou sua intenção de vir a contratar, adiantando, nessa oportunidade, os documentos exigidos para a formalização do contrato definitivo, inclusive o depósito prévio. Concluiu-se, portanto, que a partir daí surgiu a responsabilidade pré-negocial, ou seja, da fase preliminar do contrato, tema oriundo da conhecida culpa in contrahendo.

.......

Na espécie, a responsabilidade pré-contratual discutida não decorre do fato de a tratativa ter sido rompida e o contrato não ter sido concluído, mas do fato de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material.

.......

Ao que se tem, portanto, diante do quadro fático soberanamente analisado pelas instâncias ordinárias, restaram comprovados: o consentimento prévio mútuo, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo das tratativas, o prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido.

Desta forma, podemos concluir que a violação dos deveres de cooperação, tratados neste estudo, vão de encontro com a teoria da culpa in contrahendo, uma vez que as partes deverão agir com honestidade, não só durante a execução do contrato, mas principalmente na fase pré-contratual, momento das tratativas, onde as partes deverão agir sempre com lealdade, prestando todas as informações, proteção e, por fim, o sigilo, pois caso contrário deverão responder por eventuais prejuízos.

 

CONCLUSÃO

O estado social em que vivemos hoje, que influenciou na formação do direito moderno, permite uma certa flexibilidade dos contratos. Os contratos devem ser cumpridos, o pacta sunservanda continua existindo, porém ele não é mais intangível, assim como era antes, pois agora existem previsões diante da própria constituição, surgindo a partir disso, os deveres de cooperação.

Os deveres de cooperação, conhecidos também como deveres acessórios, laterais ou deveres de conduta, são normas de comportamento, ou seja, a liberdade das pessoas agora sofre um contorno pelo ordenamento jurídico, o comportamento das partes no trato da vida civil passa a ser norteado pelos deveres de cooperação.

Estes deveres têm uma base legal, de onde é possível extrair seu fundamento, visto que eles não estão na Lei, o código civil não traz a finalidade de tais deveres. E essa é a grande chave da questão, pois se não estão expressos na lei acaba por gerar um certo questionamento.

Porém o artigo 422 do Código Civil de 2002, artigo este que trata da boa-fé objetiva, diz como as partes deverão se comportar quando forem firmar o contrato e durante a formação, segundo a boa-fé objetiva.

Assim, é possível verificar que a boa-fé objetiva é serve como base para o surgimento dos deveres de cooperação. Sendo assim, a partir disso, possível extrair um fundamento civil deles, bem como, do ponto de vista constitucional, através do princípio da solidariedade, da dignidade e da justiça social.

O dever de lealdade exige que a parte haja com honestidade e transparência.

O dever de informação determina que a parte deve comunicar toda e qualquer informação relevante ao negócio, sob pena de violar os deveres de consideração na fase pré-contratual.

O próprio nome já remete a ideia de seu significa, sigilo, ou seja, a parte detém de informações durante a fase pré-contratual, não sendo admitido a divulgação de tais informações.

Diante disso, estes são os deves de cooperação que não estão previstos na lei, mas que tem como base o artigo 422, do CC, que foram sistematizados na Alemanha e que agora seguem uma tendência mundial de aplicação, assim como Portugal e Espanha. A ideia é que o Brasil também adota a teoria dos deveres de cooperação nas fases anterior posterior ao contrato.

A fase pré-contratual chama atenção justamente por não se encontrar disposta em nenhum “contrato” e apesar disso, ainda contar com dispositivos legais, tais como os mencionados durante o trabalho, capazes de fazer com que as partes exijam certas posturas daqueles com quem estão contratando, atribuindo, portanto, certo limite até mesmo à liberdade de interpretação das partes.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil pós-contratual. Ob. cit., p. 201.

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PRATA, Ana.

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MOREIRA ALVES, José Carlos. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. In Rivista de diritto dell´integrazione e unificazione de diritto in Europa e in America Latina. Roma e America: Mucchi Editore, 1999, n. 7.

  

[1] Diniz, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, 3º volume: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. – 24. ed. ver., atual e ampl. de acordo com a reforma do CPC e com o Projeto de Lei n. 276/2007. – São Paulo: Saraiva, 2008. p. 13/14.

[2] BECK, Ulrich, Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010. p.13.

[3] BECK, Ulrich, Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010, p.20.

[4] LIMA, Alceu Amoroso. Introdução ao Direito Moderno. 4. ed. Rio de Janeiro:Loyola, 2001.

[5] ARRUDA ALVIM, José Manoel de. A função social dos contratos no novo Código Civil. RT, São Paulo, v.85, set. 2003, p. 19-21.

[6] Gonçalves, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais – 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2013. p. 55/56.

[7] CANARIS, Claus-Wilhelm. Il significato di una regolamentazione generale dell’ogligazione e i titoli I e II del secondo livro del BGB, traduzione a cura dela dott. Maria Cristina Dalbosco, in I cento anni del Codice Civile tedesco in Germania e nella cultura giuridica italiana, Padova: CEDAM, 2002, p. 272-3 apud DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil pós-contratual. Ob. cit., p. 205.

[8] DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil pós-contratual. Ob. cit., p. 201.

[9] DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil pós-contratual. Ob. cit., p. 83.

[10] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997 p. 212

[11] Houaiss dicionário da língua portuguesa. Ob. cit., p. 422.

[12] Art. 743 e seguintes do Código Civil.

[13] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais – 10 ed – São Paulo: Saraiva, 2013. p. 24.

[14] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, 3º volume: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. – 24. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2008. p. 33/34.

[15] “CF88: Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária.”

[16] “CF88: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana;”

[17] Ob. Cit. p. 116.

[18] DONNINI, 175.

[19]

[20] VENOSA, Silvio Salvo. Direito Civil. 3.ed. São Paulo: Atlas: 2003. p. 421.

[21] DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil pós-contratual. Ob. cit., p. 90.

[22] PRATA, Ana. p. 10.

[23] Antônio Chaves, Responsabilidade pré-contratual, 2. ed., São Paulo: Lejus, 1997.

[24] STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.051.065 – AM - RELATOR : MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA DJE 27.02.2013.

Data da conclusão/última revisão: 17/09/2017

 

Como citar o texto:

FRANCISCO, Ana Luísa Marcos..Aplicação dos deveres de cooperação na fase pré-contratual. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1482. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-obrigacoes-e-contratos/3747/aplicacao-deveres-cooperacao-fase-pre-contratual. Acesso em 5 nov. 2017.

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