Resumo: O objetivo do presente é analisar o princípio do in dubio pro societate à luz da doutrina especializada e dos entendimentos jurisprudenciais, com especial enfoque para o Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. É cediço que, com a promulgação da Constituição de 1988, em decorrência da expressa assimilação do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III), o ordenamento jurídico nacional sofreu uma robusta ruptura hermenêutica. Ora, os princípios passam a desempenhar verdadeira atividade de norteamento dos diplomas normativos em vigor, buscando imprimir máxima eficácia. Assim, o ordenamento jurídico nacional é conduzido pelos pilares do pós-positivismo, segundo o qual os princípios desempenham função protagonista no processo de promoção dos direitos. Neste contexto, o Direito Penal, dada sua essência de ramificação de ultima ratio, apresenta uma relação íntima e imprescindível com os princípios, notadamente no que concerne ao processo de transposição da abstração das normas para o campo de concreto de sua incidência, com especial atenção para a amoldagem dos tipos penais às condutas perpetradas. Nesta senda, o princípio do in dubio pro societate reveste-se de especial interesse, eis que sua incidência se opera no sistema bifásico do rito especial do Tribunal Popular do Júri, atuando como verdadeira linha condutora na interpretação do magistrado sobre o arcabouço probatório e sobre a manifestação do Conselho de Sentença. A metodologia empregada pauta-se no método dedutivo, auxiliado de revisão de literatura e análise jurisprudencial como técnicas de pesquisa.

Palavras-chave: Princípios; Direito Penal; Direito Constitucional.

Abstract: The purpose of this paper is to analyze the principle of in dubio pro societate in the light of specialized doctrine and jurisprudential understandings, with special focus on the Superior Court of Justice and Federal Supreme Court. With the promulgation of the 1988 Constitution, due to the express assimilation of the principle of the dignity of the human person as the foundation of the Democratic State of Right (article 1, item III), the national legal system has undergone a strong hermeneutic rupture. Now, the principles begin to play true activity of guiding the normative diplomas in force, seeking to maximize effectiveness. Thus, the national legal system is driven by the pillars of post-positivism, according to which principles play a leading role in the process of promoting rights. In this context, criminal law, given its essence of ultima ratio rationale, presents an intimate and indispensable relationship with the principles, especially regarding the transposition process of the abstraction of norms for the concrete field of its incidence, with special attention for the adaptation of criminal types to conduct. In this way, the principle of the in dubio pro societate is of special interest, since its incidence operates in the two-phase system of the special rite of the Peoples Court of the Jury, acting as a guiding line in the interpretation of the magistrate on the probative framework and on the manifestation of the Sentencing Council. The methodology used is based on the deductive method, aided by literature review and jurisprudential analysis as research techniques.

Keywords: Principles; Criminal Law; Constitutional right.

 

1 INTRODUÇÃO

Os princípios constituem dogmas dotados de elevada densidade no Direito, encontrando-se como flâmulas em todas as suas ramificações, bem como desempenhando importante papel como um vetor de interpretação da norma abstrata. Assim sendo, deve-se ler uma norma legal ou constitucional de acordo com o que os princípios preconizam, sendo o princípio um dos integrantes da norma, sendo a norma a junção de princípio mais a regra.

Desta forma, os princípios do direito penal atuam exclusivamente em matérias de penal, sendo criados a partir de princípios constitucionais que orientam o seu grau de atuação, não podendo uma norma infraconstitucional sobrepor uma norma constitucional. Ainda, o Direito Penal aduz uma carga de princípios que garantem direitos ao réu, indiciado, acusado, aquele que está presente no polo passivo de uma ação penal, o direito penal acarreta alguns princípios como o da reserva legal ou da estrita legalidade, da anterioridade, da insignificância ou bagatela, da intervenção mínima, da individualização da pena, da alteridade, da confiança, da adequação social, da subsidiariedade, da proporcionalidade, da humanidade, da ofensividade ou lesividade, da exclusiva proteção do bem jurídico, da imputação pessoal, da responsabilidade pelo fato, da personalidade ou intranscendência, da responsabilidade penal subjetiva, do ne bis in idem, da isonomia ou igualdade.

Assim, utilizando dos princípios juntamente com as normas legais e constitucionais é feito neste presente artigo uma demonstração acerca da validade do princípio in dubio pro societate alvo de muitas críticas acerca de sua aplicação, demonstrando seus fundamentos e as alegações a favor e contra a sua aplicação.

 

2 OS PRINCÍPIOS NO DIREITO: UMA REFLEXÃO COMO VETORES DE INTERPRETAÇÃO

No campo da Ciência Jurídica a percepção estabelecida pela Hermenêutica Interpretativa contemporânea confere especial relevo ao papel desempenhado pelos princípios. Ora, tal fato decorre do modelo pós-positivista inaugurado, no cenário jurídico nacional, com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O rigorismo e a limitação contidos no texto legal encontram um novo filtro analítico, com aspectos de dinamicidade, maior elasticidade e extração da essência da mens legis do ordenamento nacional. A Hermenêutica Interpretativa, a partir da escola pós-positivista, assinala que os princípios são responsáveis pela movimentação e dinamicidade de todo o ordenamento jurídico. Desta forma, é necessária a compreensão acerca da palavra princípio.

Começo; o que ocorre ou existe primeiro que os demais; o início de uma ação ou processo: princípio dos tempos; no princípio do trabalho era mais feliz.

Razão; o que fundamenta ou pode ser usado para embasar alguma coisa: em que princípio se baseia seu texto?

Informação básica e necessária que fundamenta uma seção de conhecimentos: princípios da matemática.

[Física] Lei de teor geral que exerce um papel importantíssimo na prática e desenvolvimento de uma teoria, a partir da qual outras se derivam.

[Lógica] Proposição imprescindível para que um raciocínio seja fundamentado.

[Filosofia] Razão ou efeito de uma ação; proposição usada numa dedução. (DICIO, s.d., s.p.)

No âmbito jurídico, a temática envolvendo os princípios é de grande debate entre doutrinadores, dentre estes, umas das mais consagradas definições de princípios é derivado do grande doutrinador Miguel Reale (2002, p. 217) “enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo do saber”. Apresentando, assim, princípio como algo lógico que antecede e tornam válidas acepções futuras embasadas nesses princípios. Miguel Reale ainda define que os princípios podem ser divididos em três grandes categorias, a saber:

a) princípios omnivalentes, quando são válidos para todas as formas de saber, como é o caso dos princípios de identidade e de razão suficiente;

b) princípios plurivalentes, quando aplicáveis a vários campos de conhecimento, como se dá com o princípio de causalidade, essencial às ciências naturais, mas não extensivo a todos os campos do conhecimento;

c) princípios monovalentes, que só valem no âmbito de determinada ciência, como é o caso dos princípios gerais de direito. (REALE, 2002, p. 217).

Destarte, os princípios do Direito, tal como retratado pelo magistério de Miguel Reale, são da espécie monovalente sendo divididos em diversos âmbitos de atuação, como princípios constitucionais, princípios do direito civil, princípios do direito penal.  Segundo Castro (2012, s.p.): “Princípios informam, orientam e inspiram regras gerais. Devem ser observados quando a criação da norma, na sua interpretação e na sua aplicação. Sistematizam e dão origem a institutos”. Capez, por seu turno, assinala que:

Os princípios constitucionais e as garantias individuais devem atuar como balizas para a correta interpretação e a justa aplicação das normas penais, não se podendo cogitar de urna aplicação meramente robotizada dos tipos incriminadores, ditada pela verificação rudimentar da adequação típica formal, descurando-se de qualquer apreciação ontológica do injusto. Da dignidade humana, princípio genérico e reitor do Direito Penal, partem outros princípios mais específicos, os quais são transportados dentro daquele princípio maior, tal como passageiros de urna embarcação. (CAPEZ, 2015, p. 25).

Desta forma, é possível chegar à conclusão que os princípios do Direito Penal são criados com base nos princípios constitucionais, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana, prevista no artigo primeiro da Constituição Federal. Aliás, sobre o princípio em comento, é imprescindível assinalar que a dignidade da pessoa humana desempenha singular papel na ordem jurídica brasileira, pois configura verdadeiro fundamento do Estado Democrático de Direito. Além do exposto, o corolário em comento, dada à sua densidade jurídica, é elevado ao patamar de superprincípio, o qual tem o condão de vincular a hermenêutica e a aplicação de todo o ordenamento jurídico nacional.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, 1988) (grifo nosso).

Tendo o escopo de embasar a criação de normas de condutas que irão embasar o ordenamento jurídico penal, contudo, os princípios estão previstos em todo o ordenamento jurídico brasileiro, presente no Direito Civil, Penal, Trabalho, Processo Civil, Processo Penal, Tributário, Previdenciário, Constitucional, e dentre outros ramos, é utilizado como um vetor de interpretação e demonstrando qual a linha de pensamento cada ramo do direito adotará. Neste contexto, o Direito Penal tem um conjunto principiológico mais protetivo, com regras que beneficiam o réu, o direito do trabalho possui normas favoráveis ao empregado, o direito do consumidor regras favoráveis ao consumidor, sendo papel dos princípios de identificar qual será o bem tutelado por tal ramo, sendo o princípio que constituirá a norma jurídica, que é formado da regra mais os princípios.

 

3 OS PRINCÍPIOS NO DIREITO PENAL

O Direito Penal brasileiro adotou diversos princípios penais, sendo de devida estima ser realizada uma análise acerca de tais. Desta forma, é importante a sua interpretação por meio da Hermenêutica Jurídica Contemporânea para que se chegue a melhor interpretação possível da norma, assim, no art. 1º do Código Penal e no art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal é previsto o princípio da reserva legal ou da estrita legalidade, segundo os ensinamentos de Cleber Masson:

Preceitua, basicamente, a exclusividade da lei para a criação de delitos (e contravenções penais) e cominação de penas, possuindo indiscutível dimensão democrática, pois revela a aceitação pelo povo representando pelo Congresso Nacional, da opção legislativa no âmbito criminal. De fato, não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal (nullum crimen nulla poena sine lege). (MASSON, 2017, p. 24).

Para que seja punido um agente por um ato criminoso é necessário que a reprimenda esteja prevista em lei, bem como que tal conduta esteja tipificada nos moldes penais. Trata-se, com efeito, da materialização dos princípios da legalidade penal e da reserva legal, enquanto corolários que freiam o arbítrio do Estado em relação ao cidadão. Assim, ninguém será punido ou preso ou ter seus direitos suspensos algum de seus direitos sem que haja uma penalização da conduta previamente instituída, e ainda, tal princípio é dividido em dois fundamentas essenciais o jurídico e o político. O pilar jurídico exige uma taxatividade, certeza, para que quando o juiz for aplicar a sanção tenha um total respaldo legal para a aplicação da norma. Já o fundamento político pode ser visto como um meio de proteger o ser humano das arbitrariedades do Estado, defendendo os direitos fundamentais de 1º dimensão (MASSON, 2017).

Ora, já ficando evidente que o Direito Penal regulou a partir de seus princípios que os crimes, delitos e infrações devem ser, de forma taxativa, definidas, portanto, ocorrendo um fato social e este não se enquadra na norma penal, este fato não será punido em decorrência do princípio supracitado. Neste contexto, as previsões prévias acerca da taxatividade dos tipos penais e a cominação legal correspondente estabelecem feixes orientadores que vedam a aplicação in prima ratio do Direito Penal, salvaguardando a essência punitiva de tal ramificação como cabível diante de tipos penais abstratos, taxativos e dotados de certeza, quanto à hipótese de incidência concreta.

Na mesma linha, há de se citar o princípio da anterioridade da lei penal, também decorre do art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal. A lei penal nova que entra em vigor não irá atingir as sentenças já prolatadas nem as condenações em execução. A ressalva estabelecida pelo corolário em comento circunscreve a retroação apenas se tiver como objeto benefício do réu. Ora, por mais uma vez, os princípios norteadores do Direito Penal fincam baldrames robustos quanto à aplicação de suas disposições, a fim de evitar a utilização daquele como sinônimo de vingança privada ou do Estado em relação ao cidadão. Neste sentido, dita o art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;” (BRASIL, 1988, s.p.) (grifo nosso).

Desta forma, é evidente que o princípio da anterioridade não é absoluto, tendo em vista que ocorrendo o vigor de novatio legis in mellius ou nova lei mais benéfica, ela irá retroagir, e seus efeitos atingiram até mesmo as sentenças condenatórias transitadas em julgado. Ainda, pode ocorrer o chamado abolitio criminis que irá descriminalizar uma conduta criminosa, fazendo-a se tornar atípica, ou seja, não sendo passível de punição via ente Estatal, o Estado deixando de ser o agente punidor, nesta hipótese, com o vigor da nova lei que revoga uma conduta considerada até então como criminosa o réu será beneficiado de imediato, devendo ser solto sem prejuízo de outras sanções, ou desobrigado de outros tipos de sanções penais, como as restritivas de direito.

Cabe ressaltar que a publicação de uma lei não autoriza a punição dos agentes, devendo os agentes responderem pela lei atual vigente após a publicação de uma nova lei, podendo essa lei ser aplicada apenas sua entrada em vigor em decorrência do transcurso de tempo de vacatio legis. Todavia, ocorrendo a existência de uma nova lei que criminaliza um fato social como criminoso, ou que se tenha uma punição mais severa para certos crimes, não irá retroagir seus efeitos, já que nunca poderá prejudicar por meio do princípio da anterioridade.

Tratando-se de assunto principiológica, há de que se falar do princípio da insignificância ou bagatela, que Segundo a definição de Fernando Capez (2015, p. 27), “(...) o Direito Penal não deve preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas incapazes de lesar o bem jurídico”. Assim, compreendendo que o direito penal deve abranger condutas significantes para a sociedade, menosprezando condutas insignificantes, entendimento um pouco parecido com o princípio da Intervenção Mínima, que segundo o entendimento de Rogério Greco:

O princípio da intervenção mínima, ou ultima ratio, é o responsável não só pela indicação dos bens de maior relevo que merecem a especial atenção do Direito Penal, mas se presta, também, a fazer com que ocorra a chamada descriminalização. Se é com base neste princípio que os bens são selecionados para permanecer sob a tutela do Direito Penal, porque considerados como os de maior importância, também será com fundamento nele que o legislador, atento às mutações da sociedade, que com a sua evolução deixa de dar importância a bens que, no passado, eram da maior relevância, fará retirar do nosso ordenamento jurídico-penal certos tipos incriminadores. (GRECO, 2015, p. 97).

O princípio da adequação social é uma causa supralegal de exclusão da tipicidade, não sendo a conduta do agente lesiva em decorrência da mudança social, tornando a conduta do agente tolerável ou adequada para os meios sociais atuais, conforme assevera Cleber Masson:

De acordo com esse princípio que funciona como causa supralegal de exclusão da tipicidade, pela ausência da tipicidade material, não pode ser considerado criminoso o comportamento humano que embora tipificado em lei, não afrontar o sentimento social de Justiça. É o caso, exemplificativamente, dos trotes acadêmicos moderados e da circuncisão realizada pelos judeus. (MASSON, 2017, p. 51).

Destarte, conforme o entendimento da intervenção mínima e da adequação social, o Direito Penal não pode atuar em casos no qual não é necessária sua intervenção pois o fato foi adequado ao meio social, demonstrando que um princípio assemelha-se a outro em seu âmbito de atuação, o princípio da subsidiariedade do Direito Penal preceitua que o Direito Penal apenas atuará quando ocorrer a  ineficácia dos outros ramos do direito, sendo o Direito Penal subsidiário as outras formas de resolução do conflito, devendo dar primazia a outras formas e por último aplicar as sanções penais. Ficando o Direito Penal inerte aguardando ser chamado para a tutela dos direitos ao qual os outros ramos foram ineficazes de realizar.

Já o princípio da proporcionalidade, também conhecido como princípio da razoabilidade ou convivência das liberdades públicas, estabelece, em seus fundamentos, que a norma penal deve ser proporcional no seu âmbito de atuação, não devendo uma pena ser demasiadamente grande, ou demasiadamente pequena. Assim, à luz de tal princípio, a pena deve ser proporcional ao injusto penal cometido e as consequências desse para o mundo concreto. Logo, não é proporcional condenar um agente que comete furto a uma pena de 30 anos de prisão em regime fechado, contudo, também não é proporcional condenar a um homicida a pena de detenção de 1 ano, devendo tais punições serem proporcionais ao fato cometido pelos agentes.

O princípio da proporcionalidade possui três destinatários o legislador, o juiz da ação penal (proporcionalidade concreta) e os órgãos de execução penal (proporcionalidade executória). O legislador irá definir se a pena deverá ser restritiva de direitos, ou privativa de liberdade, determinará também se será de reclusão ou detenção, determinará os mínimos e o máximos da pena e suas causas de aumento e diminuição. (MASSON, 2017). O juiz irá, por sua vez, verificar a culpabilidade, individualizar a pena, não parecendo proporcional que um juiz aplique a pena máxima de 30 anos a um homicídio qualificado, tendo em vista que no caso concreto não há circunstâncias judicias desfavoráveis, não há agravantes e nem causas de aumento de pena.

Desta forma, um agente que prática um fato social que se enquadra como fato típico será punido obedecendo ao imposto pelo direito positivo, ou seja, a taxatividade da lei, e após obedecendo a critérios como o da proporcionalidade será julgado e condenando, e terá uma restrição temporária de seus direitos, entretanto, caso o fato que o agente pratique possa ser resolvido por outro ramo do Direito este deverá ser adotado em razão do princípio da intervenção mínima e da subsidiariedade do Direito Penal, por exemplo, caso um grupo social invada terras rurais e as toma para si, é razoável que se aplique o Direito Civil e o dono das terras ajuíze uma ação de Reintegração de Posse, não sendo necessário a intervenção do Direito Penal para que se proteja o bem jurídico tutelado, em razão da exclusividade do Direito Penal.

 

4 IN DUBIO PRO SOCIETATE E A DICOTOMIA ENTRE PRINCÍPIO OU CRITÉRIO

In dubio pro societate é conhecido como um princípio do direito processual penal previsto no art. 413 do Código de Processo Penal Brasileiro, que traz a concepção que em caso de dúvida do juízo acerca da materialidade do crime doloso contra a vida, havendo apenas indícios, julgará em in dubio pro societate e lançará o autos para o Tribunal do Júri, devendo os juris decidir, mesmo sem materialidade ou indícios do crime, sendo uma decisão em favor da sociedade, e caso seja mantido a incerteza o réu será absolvido, contudo, este princípio vai na contramão do princípio de in dubio pro reo, trazendo como ideia a presunção de inocência, assim, na sentença condenatória que não possui provas da materialidade do crime, cabíveis para sua condenação dará um sentença de in dubio pro reo, sendo este, isento de pena em decorrência disso. Arai fala sobre o princípio de in dubio pro societate:

Trata-se de um princípio (fictício) jurídico brasileiro, segundo o qual, mesmo que um juiz não tenha a certeza, mas esteja convencido pessoalmente da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, ele deverá pronunciar o acusado à Júri Popular, para que a própria sociedade decida pela condenação ou não do acusado. Em suma, como forma de justificar a remessa de todo e qualquer processo para o Tribunal do Júri, alguns julgadores se utilizam do de tal princípio. (ARAI, 2017, s.p.).

Contudo, há de que se discordar, na jurisprudência Brasileira são notórias as aplicações e as citações do princípio de in dubio pro societate em diversos julgados, pelo STF, STJ, dentre outros, utilizando-o como parâmetro para interpretação e não reconhecendo conflito com o princípio da presunção da inocência conforme entendimento do STF em 2014.

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE HOMICÍDIO. DECISÃO DE PRONÚNCIA. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE. ACÓRDÃO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DESTE TRIBUNAL. (STF - ARE: 788457 SP, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 13/05/2014, Primeira Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 27-05-2014 PUBLIC 28-05-2014) (BRASIL, 2014, s.p.).

Seguindo a mesma linha de interpretação o Supremo Tribunal de Justiça, conforme julgado.

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. FALTA DE INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL VIOLADO. SÚMULA 284/STF. PRONÚNCIA. INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE. IN DUBIO PRO SOCIETATE. DECISÕES DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS DEVIDAMENTE FUNDAMENTADAS. (STJ - AgRg no AREsp: 305267 BA 2013/0078904-0, Relator: Ministra REGINA HELENA COSTA, Data de Julgamento: 06/05/2014, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/05/2014) (BRASIL, 2014, s.p.).

Embora seja entendimento adotado pelos tribunais superiores acerca da aceitação e aplicação deste princípio o tema é altamente criticado, conforme assevera André Peixoto de Souza: “In dubio pro societate. Esse “princípio” não existe! Trata-se de uma construção fictícia, abstrata e interessada que muitas vezes (via de regra) chega à decisão de pronúncia para enviar a causa ao júri popular”. (grifo nosso) (SOUZA, 2017, s.p.).

Ora, parece um pouco equivocado tal posicionamento, tendo em vista os inúmeros julgados, desta forma, não se tem algo fictício em grau de tribunais superiores, devendo tais posicionamentos serem devidamente fundamentados. Nessa linha de pensamento, com as palavras de Gustavo Roberto de Costa:

Mas isso está correto? O princípio em comento é previsto em algum dispositivo legal? Ou melhor: trata-se mesmo de um “princípio”? A resposta – a menos que rasguemos a Constituição Federal e o Código de Processo Penal – é cristalinamente negativa. (COSTA, 2016, s.p.). 

Desta mesma forma, parece que Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul adere a esse posicionamento, conforme diversos julgados que demonstram o caráter de não prosseguimento da denúncia em razão de falta de materialidade do fato e insuficiência de provas

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. INDÍCIOS DE AUTORIA. INSUFICIÊNCIA. TESTEMUNHAS DE OUVIR DIZER. DESPRONÚNCIA. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70072771298, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, Julgado em 29/03/2017) (BRASIL, 2017, s.p.).

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. INDÍCIOS DE AUTORIA. INSUFICIÊNCIA. TESTEMUNHAS DE OUVIR DIZER. DESPRONÚNCIA. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70070881040, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, Julgado em 19/10/2016) (BRASIL, 2016, s.p.).

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO NA FORMA TENTADA. INEXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE AUTORIA. DESPRONÚNCIA. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70071458491, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, Julgado em 09/11/2016) (BRASIL, 2016, s.p.).

Os dois primeiros julgados supracitados trazem em comum certas características, sendo elas: crime de homicídio, insuficiência de indícios de autoria e “testemunha de ouvi dizer”, e o último julgado homicídio na forma tentada, há de se notar que a aplicação do princípio in dubio pro societate foi como um vetor em situações jurídicas em que não há provas concretas da materialidade do ilícito penal em questão, dúvidas estas que impedem a conclusão de uma autoria ou participação.

Desta forma, em comum, os três julgados dão provimento ao recurso da defesa e despronunciam os réus que já estavam pronunciados para o Tribunal do Júri após sentença condenatória de primeira instância, com fulcro no artigo 413, do Código de Processo Penal, que em sua redação legal determina que os réus apenas serão pronunciados em eventual materialidade do fato e a existência de indícios suficientes de autoria ou participação, nos casos em tela ocorre a ausência desses requisitos objetivos para imposição legal, assim, ocorre descaracterização do art. 413, logo, sua inaplicabilidade.

Todavia, é necessário se entender e chegar de onde vem a motivação da afirmação de não existência do supracitado princípio, desta forma, o artigo 395 do Código de Processo Penal Preceitua:

Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:

I - for manifestamente inepta;

II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou

III - faltar justa causa para o exercício da ação penal. (BRASIL, 1941, s.p.) (grifo nosso).

Faltar justa causa para o exercício da ação penal, desta forma, não existindo motivo causador, incidente, ou outra forma que faça plausível a execução da ação penal, devendo ela ser rejeitada, não devendo ser remetido os autos para a sociedade, representada nos crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal Júri para que este decida se o réu da ação penal é inocente ou culpado propriamente dito. E ainda, o art. 413, CPP aduzindo: “Art. 413.  O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação”. (BRASIL, 1941, s.p.) (grifo nosso).

Mais uma vez, sendo ressaltada a materialidade do fato, ou seja, ocorrendo a chamada materialidade do fato e existência de indícios suficientes do réu o juiz determinará que se pronunciado o acusado, e caso não se tenha, de forma fundamentada deverá impronunciar o réu, conforme art. 414, Código de Processo Penal: “Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado” (BRASIL, 1941, s.p.).

Ainda, o juiz poderá de forma fundamentada absolver o réu, desde que se preencha algum dos requisitos impostos no artigo 415 do CPP, assim:

Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:

I – provada a inexistência do fato;

II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

III – o fato não constituir infração penal;

IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. (BRASIL, 1941, s.p.).

Contudo, o art. 415 em diversos momentos preceitua a palavra provado, ou seja, quando se é comprovado por meio de forma probatórias que algo não ocorreu como a inexistência do fato, ou que não seja autor ou réu, já o inciso III é referente a atipicidade formal do ato, e o inciso IV demonstrar causa do qual é isento de pena ou de exclusão do crime. Não se sugerindo que o juiz poderá absolver o réu em caso de falta de indícios ou da materialidade do fato. Desta forma, não se podendo absolver ou extinguir a ação é ponderável que seja remetido os autos ao Tribunal do Júri para que se aplique o princípio de in dubio pro societate, para que então a sociedade tome a decisão final, seja ela de absolver ou condenar o réu.

 

5 CONCLUSÃO

O Direito brasileiro em sentido lato possui enormes cargas principiológica, que motivam o legislador na criação de leis, do judiciário na aplicação da norma e do executivo da proteção do interesse social, os princípios demonstram como um ramo do direito irá atuar, e assim, mostrará qual bem jurídico deverá ser protegido, assim, é evidente a necessidade do conhecimento dos princípios para uma melhor aplicação do direito ao fato social.

O Direito Penal, como ultima ratio, ou seja, o último ramo a ser aplicado e o único dotado e punições chamadas de sanções penais também será regido por esses princípios como o da reserva legal, insignificância, da ofensividade ou lesividade, dentre outros que demonstram qual o objeto que será tutelado por tal ramo, vedando arbitrariedades e sanções penais desumanas e degradantes, tendo a pena como finalidade a retribuição, prevenção (geral, especial), e ressocialização, devendo essas finalidades serem norteadoras da aplicação das sanções penais

Ainda, é muito discutido sobre o princípio in dubio pro societate, alguns alegam que é um princípio fictício, e por outro lado é evidente sua aplicação, ficando assim, demonstrado duas vertentes uma de não aplicação deste princípio em decorrência de falta de fundamentação constitucional ou legal, e outros como STF e STJ que de forma majoritária aplicam tal princípio em diversos julgados sem conflito com o princípio da presunção da inocência.

 

6 REFÊRENCIAS

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_______. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em . Acesso em 26 mar. 2018

_______. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em . Acesso em 26 mar. 2018

_______. Supremo Tribunal Federal. Disponível em . Acesso em 25 mar. 2018

_______. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em . Acesso em 26 mar. 2018

CAPEZ. Curso de Direito Penal: parte geral 1. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

CASTRO, Carem Barbosa de. Teoria geral dos princípios. InÂmbito Jurídico, Rio Grande, a. 15, n. 104, set 2012. Disponível em: . Acesso em set. 2017.

COSTA, Gustavo Roberto de. In dubio pro societate é realmente um princípio?. Disponível em . Acesso em 26 mar. 2018.

DICIO. Significado de princípio. Disponível em . Acesso em 5 set. 2017

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 18 ed. Niterói: Impetus, 2016.

MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte geral. v. 1. 11 ed., rev. atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

SOUZA, Alexandre Peixoto de. In dubio pro societate. Disponível em . Acesso em 23 mar. 2018.

Data da conclusão/última revisão: 15/4/2018

 

Como citar o texto:

BARROS, Kawillians Goulart; RANGEL, Tauã Lima Verdan..A principiologia penal como vetor de interpretação e o princípio do in dubio pro societate. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1523. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/4003/a-principiologia-penal-como-vetor-interpretacao-principio-in-dubio-pro-societate. Acesso em 19 abr. 2018.

Importante:

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