Resumo

Este trabalho visa analisar os impactos sociais que a atuação dos Poderes causam no Estado Democrático de Direito, com enfoque nas consequências eleitorais. Para tanto, será explanado historicamente o surgimento da teoria da Separação dos Poderes, a sua necessidade na conjuntura contemporânea dos Estados e como esta foi adotada pela Constituição Brasileira de 1988. Posteriormente, serão expostos os modos que o povo reage à atuação e interferências dos Poderes, principalmente do Legislativo no Executivo e de que forma traz impactos no processo eleitoral. Essa avaliação permitirá compreender o que levou a política brasileira a um cenário caótico e de difícil solução, com uma crise se representatividade e legitimidade, tal como se encontra atualmente.

Palavras-chave: Tripartição dos Poderes. Crise de Representatividade. Eleições.

Abstract

This paper aims to analyze the social impacts that the actions of the Powers cause in the State Democratic Right, focusing on the electoral consequences. In order to do so, it will be explained historically the emergence of the theory of Separation of Powers, their necessity in the contemporary conjuncture of the States and how it was adopted by the Brazilian Constitution of 1988. Later, will be exposed the ways that the people reacts to the action and interference of the Powers , especially of the Legislative in the Executive and how it impacts the electoral process. This evaluation will allow us to understand what has led Brazilian politics to a chaotic and difficult solution, with a crisis of representativeness and legitimacy, as it is today.

Keywords: Tripartition of Powers Crisis of Representativeness. Elections.

 

INTRODUÇÃO

Com a abertura política e a redemocratização do país consubstanciada na Constituição Federal de 1988 criou-se grande expectativa sobre os novos contornos que a cidadania ganharia e que a vontade da população se faria representar na vontade do Estado, diferentemente da realidade do período autoritário anterior à promulgação da Carta.

Perante estas circunstâncias, a Carta Maior expressa no parágrafo único do seu 1° artigo que todo o poder reside no povo brasileiro e dele advém e, mais em frente,  eleva a cidadania ao patamar de fundamento do Estado Democrático de Direito. Para complementar e garantir que esse ‘poder’ seja devidamente exercido, o art. 14 estabelece os meios que este pode se manifestar no cenário político brasileiro.

Entre estes meios está assegurado o sufrágio universal, direito dos cidadãos de participar ativamente no processo eleitoral para eleger os representantes da população, seja os chefes do Executivo ou os membros que comporão o Legislativo. É a partir desse aspecto que será analisado o processo de eleição e as consequências que surgem caso ocorra uma má ou ótima administração da confiança que foi depositada pelos eleitores nos políticos eleitos.

Para completar uma abordagem compreensiva do assunto, com a finalidade de esclarecer pontos principais da questão e chegar à raiz dos problemas contemporâneos frente às novas características da democracia, serão apresentadas reflexões sobre o modelo idealizado por Montesquieu quanto à representação dos cidadãos nos três Poderes e sua aplicação no Brasil.

Diante desse panorama será observado o modo que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário atuam no atual cenário político brasileiro e as implicações sociais que isso resulta, se tratando, principalmente,  dos efeitos nas eleições.

 

1. O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

A teoria da separação de poderes foi defendida por vários autores desde a antiguidade, mas a sua gênese remonta à obra ‘A Política’ de Aristóteles que reconhecia a necessidade de eleger representantes políticos e responsabilizá-los pelos resultados das suas ações visando estabelecer um governo pelo bem maior do povo (2007, p. 221 e 222). Locke também estabeleceu a viabilização da distribuição das funções estatais para um bom governo:

Poderia ser tentação excessiva para a fraqueza humana a possibilidade de tomar conta do poder, de modo que os mesmos que têm a missão de elaborar as leis também tenham nas mãos o poder de executá-las, isentando-se de obediência às leis que fazem e com a possibilidade de amoldar a lei, não só na sua elaboração como na sua execução, a favor de si mesmos, tratando-se uma classe com interesse distinto dos demais, divergente da finalidade da sociedade e do governo (2006, p. 106).

No entanto, é necessário registrar que a concepção da separação de poderes teve sua específica sistematização com o barão francês Charles de Secondat no contexto da luta contra o absolutismo monárquico. No século XVIII, a sociedade buscava uma forma de se insurgir contra os governos absolutos, e com o advento do Iluminismo que tinha por pilar de seu movimento a busca pela liberdade (lato sensu), surgiu um cenário adequado para a difusão de planos político-sociais que buscassem limitar os poderes da Monarquia.

Diante disto, o filósofo Charles de Secondat, mais conhecido como Montesquieu, lança escritos fazendo análises sobre essa problemática e propondo meios que alcançassem o objetivo dos iluministas. Em sua obra clássica De l’esprit des lois, sobretudo no livro XI, Montesquieu propaga uma descrição minuciosa de como deve ser a separação dos Poderes estatais e o objetivo disto. Seguindo essa linha, no decorrer do capítulo VI ele disserta como se daria essa divisão das funções e exige que um Poder controle a esfera do outro com a finalidade de evitar a supremacia de um sobre os demais e assim gerar um desequilíbrio na administração da nação, mas o seu objetivo primordial consistia em restringir o poder dos governantes e garantir as liberdades individuais, ideal clássico do Iluminismo e hoje é considerado um mandamento básico e elemento estrutural ao Estado democrático e de direito:

Quando na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistrados, o poder legislativo se junta ao executivo, desaparece a liberdade; pode-se temer que o monarca ou o senado promulguem leis tirânicas, para aplicá-las tiranicamente. Não há liberdade se o poder judiciário não está separado do legislativo e do executivo. Se houvesse tal união com o legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, já que o juiz seria ao mesmo tempo legislador. Se o judiciário se unisse com o executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. E tudo estaria perdido se a mesma pessoa, ou o mesmo corpo de nobres, de notáveis, ou de populares, exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de ordenar a execução das resoluções públicas e o de julgar os crimes e os conflitos dos cidadãos (2010, p.169).

Baseado na máxima ‘todo homem que tem poder é levado a abusar dele’ (p. 168), Montesquieu propõe uma saída para esta dificuldade enfrentada dentro do cenário político de um Estado através da separação e do controle mútuo dos poderes que resultaria uma ordem política com liberdade e concórdia:

Há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Pelo primeiro poder, o príncipe ou magistrado cria as leis para um tempo determinado ou para sempre, e corrige ou ab-roga aquelas que já estão feitas. Pelo segundo, determina a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as questões dos indivíduos (2010, 168 e 169).

Essas suas ideias tiveram êxito, pois o princípio da separação de poderes se tornou uma poderosa arma contra os soberanos absolutistas, principal objetivo do modelo liberal. A consequência desta aceitação foi a adoção deste princípio pela Revolução Francesa e a inscrição dele em algumas constituições europeias e na América do Norte e a sua inclusão na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, no art. 16, o qual diz que “toda sociedade, em que a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação dos poderes determinada, não possui constituição”. E, contemporaneamente, tal disposição delineando a circunscrição de cada esfera estatal se encontra positivada em quase todas as constituições se tornando um pilar dos regimes constitucionais e políticos.

Com o surgimento do Estado Democrático de Direito, a fórmula de Montesquieu ainda se configura como a solução insuperável para o retrocesso ao absolutismo ou ao surgimento de um país não-democrático. Esse modelo tripartide é, atualmente, aplicado com o sistema de freios e contrapesos (checks and balances) mediante o  controle mútuo entre os Poderes.

No constitucionalismo atual houve uma evolução da ideia de Separação de Poderes que fez, também, sua flexibilização frente à teoria de independência das funções do Estado como forma de atender melhor as peculiaridades da nova formulação social, no sentido de conferir maior eficácia governamental e garantir o controle dos Poderes estatais constituídos, eles atuam além das suas funções típicas, em outras atípicas, tudo isto com o objetivo de evitar a supremacia de um Poder sobre o outro fazendo o Estado funcionar.

 

2. A ORGANIZAÇÃO DOS PODERES NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

Na Carta Imperial Brasileira de 1824, existiu a peculiar repartição dos poderes em quatro – sendo estes o Poder Legislativo, o Moderador, o Executivo e o Judicial (art.10). Entretanto, as seguintes constituições, exceto a de 1937, assim como a constituição vigente atualmente no Brasil aderiram ao princípio idealizado por Montesquieu. A CF/88 estabelece em seu artigo 2° que (in verbis) são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Além disso, o legislador constituinte conferiu extrema proteção à separação dos poderes ao erigi-la à categoria de cláusula pétrea  impedindo uma futura ruptura da ordem constitucional por uma maioria parlamentar  (art.60, 4°, III).

Para José Afonso da Silva “a harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e facilidades a que mutuamente todos têm direito”  e

a independência dos Poderes significa: (a) que a investidura e a permanência das pessoas num órgão do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhe sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais. (2005, p.110)

Como dito anteriormente, o modelo tripartide no constitucionalismo contemporâneo assumiu novas configurações, com distribuições de funções atípicas a cada função estatal. Segundo Anna Cândido, a proposta de separação de Montesquieu desembocou numa fase de interferências, de certa forma acentuada mas limitadas, entre os poderes (1994, p. 18).

A CF/88 inovou no quesito Separação dos Poderes pois determina uma série de intromissões entre eles como praticar funções típicas do outro Poder como, por exemplo, o Judiciário retirando do ordenamento jurídico lei imposta pelo Legislativo, sob o fundamento de inconstitucionalidade Assim, opondo-se a essa visão tradicional de que o Legislativo legisla, o Executivo executa e o Judiciário julga, as constituições atuais apresentam formas novas de interferências entre os Poderes, trazendo maleabilidade ao ideal de Montesquieu.

Sobre esse aspecto, José Afonso assinala

que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem a sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade que é indispensável para evitar o arbítrio e de um em detrimento do outro e especialmente dos governados. (2005, p. 110)

E Ribeiro explica

Não significa exclusividade no exercício das funções que lhe são atribuídas, mas, sim, predominância no seu desempenho. De fato, embora, com base na tríplice divisão funcionam, as funções legislativas, executivas e judiciais sejam exercidas, predominantemente e respectivamente, pelo Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (funçõess típicas ou principais), os mencionados Poderes também desempenham, de modo subsidiário, as funções típicas dos outros Poderes (no caso funções atípicas ou subsidiárias), com vistas a garantir a sua própria autonomia e independência (2016).

Ao observar que a finalidade do controle dos Poderes por eles mesmos é a maior eficácia governamental, a separação absoluta de funções é inaceitável e impraticável, sendo necessário haver mecanismos de frear uma possível supremacia de um Poder sobre os demais. De acordo com Fernanda Tose “deve-se perceber que os poderes estatais não podem, de forma absoluta, autojulgar-se, auto legislar-se ou auto administrar-se; é imperioso que seja exercido um controle, de forma a viabilizar o respeito aos direitos fundamentais.” De outro modo, a separação de funções não pode proporcionar uma invasão tamanha, a ponto de inviabilizar o funcionamento de um Poder. Deve haver proporcionalidade e razoabilidade quando se fala em flexibilizar a Separação de Poderes.

O Poder Executivo exerce, até certo limite, a função de legislar. Participa do processo de elaboração de leis, seja com a prerrogativa da iniciativa presidencial, seja sancionando, promulgando e publicando as leis, por meio das medidas provisórias, da delegação legislativa e de regulamentos, é que o Executivo pratica a função de legislar. Pode ainda intrometer-se negativamente com a sua prerrogativa de vetar projetos de lei aprovados pelo Legislativo:

Na verdade, não existe nem divisão, nem separação, mas partilha de Poderes, ou melhor, interpenetração de funções. O Estado administra pelos três Poderes, embora, por Excelência, a função de administrar caiba à administração, ao Poder Executivo. Assim, também, o Estado julga pelos três Poderes, não obstante, por excelência, a função jurisdicional seja afeta ao Poder Judiciário. Por fim, o Estado legisla pelos três Poderes, mas a função de legislar compete, específica e primordialmente, ao Poder Legislativo  (CRETELLA JÚNIOR, 2002. p.343)

Além das interferências no Legislativo, o Executivo também tem sua parcela de intervenção no Judiciário: ele possui a prerrogativa de nomear os magistrados dos trinunais superiores, interferindo diretamente na composição do quadro dos órgãos judiciários. Nos termos do Art. 66, §1° da Constituição, o Executivo pode vetar projeto de lei nas hipóteses de inconstitucionalidade ou contrário ao interesse público. O veto fundamentado nesta última previsão (contrário ao interesse público) não é objeto de discussão, pelo menos no momento, pois se trata de uma decisão meramente política. O que interessa é a primeira fundamentação (inconstitucionalidade), pois o Presidente da República, ao reconhecer que uma norma está em desconformidade com o Texto Maior, nada mais faz do que julgar a lei.

Esses aspectos demonstram que não há absoluta separação das funções estatais em nosso ordenamento jurídico. Neste cenário, as interferências dos Poderes na esfera do outro podem ser sentidas não só pelos juristas, mas pelo povo quando este assiste o processo de um impeachment e quando ocorre julgamentos sobre matérias polêmicas não abarcadas em lei.

 

3. EFEITOS SOCIAIS DA INTERFERÊNCIA DOS PODERES

Até o século XVIll, a visão comum era a de que um governo democrático ou republicano significasse governo do povo e que para governar, o povo teria de se reunir em um único local e votar sobre decretos, leis ou políticas. Democracia teria de ser uma democracia de assembleias populares: "democracia representativa" seria uma contradição. Contudo, mudanças sociais e institucionais contribuíram para uma adaptação do governo aos moldes coletivos. Umas das causas para essa mutação da democracia direta para a disseminaçäo da indireta foi a grande extensão dos territórios e o grande número do eleitorado.

Kelsen concebe que “a democracia, no plano da ideia, é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade geral, ou, sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada por quem está submetido a essa ordem, isto é, pelo povo (1993, p.35) Assim, prevalece, neste modelo, a vontade popular, que exerce a soberania através da Constituição, que irá legitimar o exercício dos governos, garantindo direitos, bem como impedindo que os governantes pratiquem condutas autoritárias em face daqueles que detêm o poder soberano.

Neste sentido, existe uma identidade entre governantes e governados, sendo o governo do povo para opovo, tendo em vista que o eleito para exercer o cargo de governança, será retirado do meio social, de seus pares, para administrar os bens jurídicos que são de todos, devendo obedecer aos ditames constitucionais legitimando o exercício de seu governo.

O poder – a soberania NOMINALMENTE popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignorante e pobre (...). E o povo, palavra e não realidade dos contestatários que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política (...). A lei retórica e elegante não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou. (FAORO, 2001, p. 837)

As observações que Faoro faz neste livro não foram feitos a partir da análise da situação brasileira contemporânea, entretanto elas se coadunam com o atual quadro social do país. Esse trecho demonstra um fenômeno crescente e mundial que é a apatia política uma consequência da descrença nos representantes, do descrédito nos partidos, da fraqueza das instituições e da fragmentação da democracia representativa. Contudo, para que esse panorama surgisse, dois momentos foram cruciais para que a democracia representativa tenha entrado em crise: o surgimento dos partidos de massa e o crescente "abismo" entre governantes e governados.

O cenário atual deixa perceptível que o sistema partidário e eleitoral brasileiro estagnou. Tanto o descaso do eleitorado com a atuação dos seus representantes, quanto a distorção existente entre os interesses do eleitor e os dos seus representantes, contribuem para o crescimento do fenômeno chamado pelos cientistas políticos de crise de representatividade.

Ela encontra-se implantada em todos os âmbitos dos três poderes: o descrédito com a atuação legislativa surge quando os parlamentares aprovam determinada lei com o objetivo de atender às expectativas dos cidadãos acerca de algum problema social que demanda uma regulamentação, entretanto, a ausência de recurso para torná-la eficaz transmite ao eleitorado apenas uma aparência de reação do Estado frente às demandas sociais. Com isto, o problema além de não ser resolvido, cria-se novas barreiras para sua solução (NEVES, 2011, p. 36-39). 

Observando esta situação, Marlon Silvestre aponta que a existência de leis imprecisas, temporárias, meramente regulamentares, de prognóstico inseguro e o uso de conceitos jurídicos indeterminados pelo legislador causam grande discussão sobre a indeterminação do Direito e da atuação dos parlamentares (2016, p. 374). Perante isto, vê-se que a atuação legislativa meramente simbólica é um fato que  agrava a crise de representatividade.

Outra condicionante são os noticiados casos de corrupção dos parlamentares.  A partir das implementações das Comissões Parlamentares de Inquérito, se tornou divulgado que inúmeros parlamentares estavam envolvidos com práticas ilícitas, e, os dois impeachments ocorridos no Brasil evidenciaram que os Chefes do Executivo possuíam condutas ímprobas.

A desvinculação entre a práticas dos representantes e os interesses dos representados constitui uma das causas do desencanto popular com a política, que produz um círculo vicioso, passando a ser o voto mera obrigação, sem nenhuma análise crítica quanto às escolhas. O sociólogo francês Pierre Rosanvallon em sua obra El Buen Gobierno promove uma ampla reflexão sobre a democracia e sobre a prática democrática. Para ele, o coração do empobrecimento democrático é o relacionamento falho entre governantes e governados. Em sua perspectiva, as autoridades são eleitas democraticamente, mas não governam assim, isto porque os governantes não têm interesse em ouvir os cidadãos, os parlamentos não estão atentos às demandas e problemas da sociedade e nem se sujeitam às regras de transparência.

Analisando a questão, Carlos Alberto de Tomaz traz à tonas duas realidades distintas que têm,  porém, origem no mesmo descrédito do povo pelas práticas políticas: A eleição de Tiririca com assombrosos mais de um milhão e trezentos mil votos, bem como, da mesma forma, a assustadora porcentagem de abstenção (53,4%) nas eleições presidenciais portuguesas. Essas situações, inequivocamente, carregam um sentido: a apatia política, descaso, desinteresse pela coisa pública, ou seja, pelo modo como a institucionalização tem sido produzida pelo gargalo do consenso dialógico. (2014, p. 108-110)

Perante tais fatos supõe-se que, o povo, legítimo detentor do poder e eleitor daqueles que produzem a norma constitucional sente que possui representantes que tergiversam dos seus interesses. Os candidatos se convertem em representantes do parlamento, mas possuem interesses vinculantes com seus patrocinadores, aqueles que os ajudaram a chegar no cargo, desviando seus interesses do bem comum.

Em contrapartida, uma vez elegido os representantes, os eleitores não possuem mecanismos institucionais e jurídicos para obrigá-los a cumprir as promessas feitas em campanha eleitoral. Assim, a falta de comprometimento com os ideais de campanha cominada com a irrevogabilidade do mandato político são os ingredientes para ausência total de representatividade do político com seus eleitores. Bobbio sustenta que

entende-se por representante uma pessoa que tem duas características bem estabelecidas: a) na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral, uma vez eleito não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu mandato, portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente perante os seus eleitores exatamente porque convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e não os interesses particulares desta ou daquela categoria (1986, p.42).  

Nesse diapasão, a ideia de deserção constitucional às expectativas populares, caracterizada pela insinceridade constitucional – que é o sentimento de constituição como mera declaração de intenções, carente de efetividade -,consistiria em uma afronta à democracia, em tese, concebida como o governo do povo. Partindo dessa análise, uma indagação surge: a que se deveria a erosão democrática?

Indubitavelmente, a democracia se encontra em crise e isso é evidenciado pela apatia popular diante de escândalos de corrupção no cenário brasileiro que está intimamente ligada para a ocorrência da perda de legitimidade. O alto absenteísmo eleitoral e a observância da condução legislativa de acordo com os interesses privados dos parlamentares também são fatores essenciais que evidenciam o colapso do sentimento social de representatividade.

Tal configuração política, onde as instituições são ofuscadas pelas figuras personalistas e os interesses coletivos são colocados em segundo plano, contribuíram como pano de fundo para a consolidação do chamado presidencialismo de coalizão. E mais do que isso, demonstram que o modelo conhecido como coronelismo – a troca de favores de um mandante local pelo voto de um eleitorado manipulável ao sabor de interesses particulares – perdura até nossos dias em escala não mais local, mas, nacional. Todos esses elementos fazem do sistema presidencialista brasileiro um complexo jogo de relações – já amplamente conhecidas como o “toma-lá-dá-cá” – que enfraquece a representatividade popular e propiciam um ambiente adequado à corrupção, uma chaga, agora escancarada, no cenário político brasileiro.

O sentimento social é de que há uma ficção política que envolve o tema da representação que se consubstancia em uma relação principal-agent ou principal-agente, é  um fenômeno tratado na Ciência Política e na Economia como uma relação hierárquica entre o principal (o eleitor no caso da representação) e o agente (representantes), na qual o primeiro pode observar apenas parcialmente o comportamento e as ações do último, dada a falta de informação completa e a vontade de ambos em maximizarem seus ganhos.

Desde o final do século XX os partidos políticos são ineficazes em seu papel intermediário entre representantes e representados, esta função articuladora somada com a atribuição de organizar o jogo político, as preferências e programas eram o que tornava esses grupos políticos tão importantes para o governo representativo. Mas parece perceptível que os partidos perderam uma parcela considerável da representatividade, fazendo com que a população escolhesse Organizações Não-Governamentais (ONGs) como mecanismos para atender os seus anseios e necessidades (MAIR, 2009).

Urbinat (2013) continua a discussão reforçando a ideia de declínio dos atores políticos e ressaltando o valor dos meios de comunicação neste modelo de regime democrático. A autora aponta que os líderes se tornam mais observáveis pela população, dada a vasta exposição que sofrem, mas, em contramão, o sistema tende a ser mais corrupto e a estética fica mais em voga na opinião pública do que a real compreensão das propostas e participação da população, assim, as eleições acontecem basicamente focadas na imagem dos candidatos.

Uma vez que ideologia, identificação partidária e outros fatores de longo prazo não são as principais determinantes da intenção de voto no Brasil, os debates e a propaganda eleitoral na televisão surgem como fatores centrais que determinam a eleição presidencial brasileira. O tempo de exposição na televisão das campanhas presidenciais é importante porque a vasta maioria dos eleitores brasileiros das classes C, D e E revela-se indecisa quanto ao voto presidencial até poucas semanas antes da eleição. Esses eleitores, os indecisos, representam aproximadamente 40% do total e parecem ser influenciados predominantemente pela televisão.

Por isso, os meios de comunicação de massa assumem importância no processo político atual, pois propiciam ao candidato falar diretamente aos potenciais eleitores/consumidores.  Diante deste quadro, os marqueteiros assumem uma função central nos comitês políticos responsáveis por discutir os rumos da campanha e fazer com que esta seja bem sucedida.

Entretanto, o que motivaria a crise democrática?

Novelo mostra uma opção ao apontar a atitude do eleitor quando vota em um candidato em  troca de promessas e favores pessoais, e este apoia o governo em troca de cargos e verbas um fator para a criação de uma esquizofrenia política na qual os eleitores desprezam os políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais (p. 222-224). Neste sentido, o autor conclui que o sistema de representação político no Brasil é ineficaz para a solução das mazelas da população, ou seja, o sistema eleitoral da democracia representativa, por si só, não é capaz de garantir o interesse do povo, o interesse geral.

Os representantes estão perdendo a capacidade de serem intermediadores dos interesses dos cidadãos para converter-se em ‘oligarquias eleitorais’ que unicamente pretendem ganhar eleições aproveitando de critérios ideológicos que assim os caracterizam. Logo, os papéis dos representantes políticos entram em contradição com as expectativas cidadãs, tornando os interesses nacionais em teorias, em contrapartida, atuam a favor de interesses partidaristas que levam um caráter elitista de representação.

É a partir deste contexto que a sociedade civil se une para repensar a democracia e exigir governos melhores. Aqui entra a possibilidade de inserir o seguinte questionamento e posteriormente responde-lo: as manifestações populares e as pressões de grupos sociais sob o governo são formas legítimas e democráticas, capazes de influenciar nas decisões de governo?

As manifestações sociais de julho de 2013 no Brasil tiveram como um dos resultados a proposição de diversas emendas constitucionais de reforma política, além de outras propostas que não chegaram a se concretizar em emendas constitucionais. As proposições vão desde a revisão do sistema eleitoral, financiamento de campanha política, coligações partidárias, manutenção ou não da reeleição, duração do mandato, entre outras propostas. Nenhuma, até a data de elaboração deste artigo foi promulgada. Houve apenas a promulgação da Emenda Constitucional nº 90, também decorrente das manifestações sociais daquele período, que inseriu o direito social ao transporte no art. 6º, portanto que não tratava de reforma política.

 

4. EFEITOS ELEITORAIS DECORRENTES DA ATUAÇÃO DOS PODERES

Com o crescimento populacional e com as grandes extensões territoriais, a utilização da democracia direa tornpu-se inviaavel. Fez-se necessário buscar um meio para que os cidadãos pudessem participar de maneira conveniente na feitura de leis, reunindo-se em um único lugar. Assim, as eleições para o compor o legislativo começaram na Inglaterra, já no começo do século XIII, e nos Estados Unidos, durante o período colonial, nos séculos XVII e XVIlI. A prática de eleger funcionários superiores para elaborar as leis foi seguida por uma gradual expansão dos direitos dos cidadãos para se expressarem sobre questões políticas.

Entretanto, surgiram questionamentos sobre o modo em que os cidadãos poderão ter a certeza de que as questões que mais preocupam venham a ser devidamente ponderadas pelos representantes, ou seja: como os cidadãos poderão controlar o programa de planejamento das decisões do governo? Se as eleições caracterizam-se como um dos pilares mais importantes da democracia, o que esperar deste mesmo sistema se o sufrágio é desacreditado? E o que fazer quando não as pessoas, mas as próprias instituições caem no descrédito?

O abstencionismo de protesto, que consiste no comportamento político exercido pelo eleitorado quando este vota em algum candidato que destoa completamente dos principais pleiteantes, revela uma clara vontade de romper com a ordem estabelecida. Somam-se a isso a ausência de opções críveis, representando algo novo ou seriamente respeitável aos eleitores; uma situação beirando o escárnio e de denúncia a um quadro sombrio e insustentável, quando as possibilidades restantes de exercício da democracia não mostram nenhuma outra saída. E assim as eleições vão perdendo, cada vez, mais significado. O resultado mais penoso disso tudo é a corrosão do regime democrático conquistado a duras penas.

A responsabilização dos representantes pelo eleitorado é fator primordial de um regime democrático, pelo fato de um controle dos governantes por parte da população restringir o comportamento e também punir ou recompensá-los de acordo com suas ações. Refletindo sobre a avaliação retrospectiva de representantes em solo brasileiro, não é possível dizer que ela aconteça com muita frequência.

Os representantes utilizam de práticas clientelistas legais como o pork barrel - prática na qual os políticos priorizam ostensivamente o envio de verbas, recursos e políticas públicas para suas bases ou distritos eleitorais, ou seja, focando sua atuação política para os locais que sabe onde têm votos e apoio, desse modo, facilitando sua busca por reeleição - e a patronagem que ocorre quando um político, correligionário ou membro de um partido oferece cargos e/ou favores em troca de apoio político de um terceiro; e ilegais (compra de votos), para manter o apelo eleitoral. Perante isto, faz-se necessário que os deputados ou o senadores relembrem que não são representantes apenas de seus eleitores, mas do País e dos interesses públicos.

Desse modo, a população reclama constantemente dos políticos e de suas ações, mas o próprio desinteresse ou desconhecimento da mesma criam um ciclo vicioso nos períodos eleitorais, no qual os mesmos candidatos se reelegem e continuam atuando de forma que não são responsivos (não atendem as demandas) à população. As manifestações de 2013 que se estenderam a uma amostra considerável de cidades brasileiras foram importantes para avultar diversas reivindicações, inclusive pós-materialistas, e pela grande mobilização de pessoas.

O que esses protestos igualmente demonstraram foi o cansaço da população com os representantes e instituições políticas do país, e a proposta de uma reforma política ficou mais perto de sair do papel, pois os governantes pareceram se assustar com a grande mobilização. Todavia, alguns meses após as manifestações, o cenário havia se normalizado e nas eleições do ano seguinte houve pouca renovação nas assembleias estaduais e no Congresso Nacional. A fagulha acesa por essas mobilizações não foi aproveitada, tanto por desinteresse dos representantes, satisfeitos com o status quo, quanto por igual desentusiasmo da população, que não conseguiu se organizar e fazer pressão efetiva.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi abordado como a fórmula de organização dos Poderes foi elaborada pelo filósofo Montesquieu e como esta foi abordada em nosso ordenamento jurídico para a forma que os Poderes se entrelaçam contemporaneamente e como atuam no Brasil. Foi demonstrado que a Constituição estabelece uma distribuição de competências que impõe o compartilhamento de determinadas funções entre os Poderes. Há, portanto, a necessidade de um equilíbrio entre os poderes de Estado, equilíbrio esse estabelecido e consagrado na atual Constituição brasileira.

No decorrer do artigo, foi exposto a forma que princípio da separação dos poderes foi flexibilizado e como fez a CRFB fez as distribuições de funções atípicas entre os poderes da República e como esse mecanismo possibilita interferências recíprocas ou mesmo, como visto, efetivas inversões em que ora o Executivo, ora o Judiciário, adentram nos domínios do Legislativo ou vice-versa. A partir desta análise surge o grande desafio de encontrar o equilíbrio para a maleabilidade não ser tamanha a ponto de desestabilizar por completo a atuação destes órgãos. Por isso, pode-se concluir que este entrelaçamento é saudável, mas acaba por ocasionar, em alguns casos, o choque entre os Poderes.

É inegável que o Estado Democrático de Direito encontra-se em tensão no atual estágio, há um enorme distanciamento entre a população e aqueles que a representam, os políticos, e é notório que o interesse público nem sempre tem prevalecido. Tal distanciamento é resultado de um sistema falido e vicioso, o qual se baseia na representatividade indireta que está, na maioria das vezes, maculada por interesses pessoais e econômicos.

A falta de conexão entre o interesse de quem vota e o interesse daquele que é eleito, bem como suas atitudes no exercício do mandato é o principal fundamento da crise democrática representativa. A história demonstra que o reconhecimento de direitos para o povo limita o poder público na qual a máquina representativa deve ser utilizada em prol de todos e não em benefício pessoal dos governantes. Entretanto, atualmente há meios para coibir tais práticas como o Impeachment no qual o chefe do poder executivo será julgado pelo Legislativo podendo perder o cargo se vier praticar algum ilícito penal Por outro lado, supostamente, os candidatos eleitos que não atenderem ao interesse público eles podem ser julgados pelos eleitores no momento de uma reeleição ou não.

A corrupção endêmica e a incapacidade dos partidos de serem os intermediários entre representados e representantes evidenciam as razões da baixa aprovação das instituições representativas e dos governantes. Nas eleições é necessário fazer uma avaliação retrospectiva dos atos dos políticos e elevar os níveis de interesse por política. A exigência de uma maior transparência na esfera pública, somada com a utilização de mecanismos de democracia direta  e a implementação de meios deliberativos e participativos são meios que podem criar uma cultura política mais robusta e aumentar o interesse dos cidadãos pela política.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Data da conclusão/última revisão: 8/7/2018

 

Como citar o texto:

SILVA, Mylena Araújo da..As consequências eleitorais do (des)equilíbrio entre os poderes. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1546. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-eleitoral/4125/as-consequencias-eleitorais-des-equilibrio-entre-os-poderes. Acesso em 19 jul. 2018.

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