Resumo: Este artigo acadêmico tem por objetivo uma análise sobre o princípio da função social do contrato como um princípio de força constitucional, extraído do princípio da função social da propriedade, como instrumento de balizamento das relações contratuais entre particulares. A função social dos contratos tem por objetivo servir de limites à liberdade de contratação diante da obrigação do Estado em manter a ordem pública, econômica, social e a justiça social diante das relações humanas. A aplicação deste princípio pode deve ser observada no contexto interno e no contexto externo do universo contratual, sempre lastreado pelo respeito à dignidade da pessoa humana. Este trabalho foi desenvolvido através de uma metodologia sob uma análise qualitativa, de abordagem crítica e indutiva de revisões bibliográficas acadêmicas que versam sobre o tema proposto. Na introdução são apresentados conceitos gerais e a contextualização do tema abordado. O desenvolvimento do texto acontece sob dois prismas principais: o primeiro refere-se a uma análise sobre a fundamentação constitucional do princípio da função social do contrato através de uma hermenêutica sistemática e integralizadora do texto constitucional; já o segundo apresenta uma abordagem sobre disposições do Código Civil brasileiro que positivam o princípio da função social dos contratos.       

1. INTRODUÇÃO    

Contratar, abstratamente, traz a ideia de acordar algo entre partes. Trata-se de uma prática quase que inerente ao homem em seu convívio social, apresentando-se como uma conduta que se for analisada em suas raízes históricas, poderá se perder nos tempos da história humana. Conforme abordado por Nery (2013, s.p.), é através do instituto contratual que “os homens firmam negociações visando atender seus interesses e necessidades, criando círculos de interação com outros indivíduos, que movem, de forma bastante ampla, a sociedade”.  

Contextualizado a história dos contratos, Siabinazze (2016), referencia as origens histórias dos contratos escritos. Apesar de haver divergências quanto a estes registros, alguns historiadores remotam aos contratos positivados em legislações mesopotâmicas, datadas de mais de quatro mil anos atrás, traduzindo-se por um conteúdo de forte expressão comercial. O mencionado autor também destaca a importância do direito Romano para a evolução da legislação contratual. O Direito Romano é uma das principais fontes que serviram de base para as obrigações contratuais contemporâneas. É neste período do direito que se têm registros iniciais da formação de contratos específicos, como o de venda, locação, mandato e sociedade. Posteriormente, na era Justiniana, ainda no Direito Romano, previu-se a possibilidade de existência de contratos diversos dos previstos em lei, determinados pela vontade das partes e que também funcionavam como fontes obrigacionais.   

Independentemente do tempo de existência de legislações contratuais e da discussão de qual seria sua origem principal, o mais importante fato a se identificar quando se analisa o contexto histórico destas normatizações é que há séculos o assunto vem sendo debatido nos meios políticos e jurídicos das relações humanas. Os momentos supramencionados já traziam noções de regras gerais sobre a forma como as pessoas deveriam se relacionar uma com as outras para contraírem direitos e obrigações de forma mútua, reconhecendo assim a necessidade da função contratual, sua indissociabilidade com as relações humanas e suas principais características como assunção de obrigações, determinação de vontades e capacidade econômica. Outros períodos da história também tiveram importância no desenvolvimento da cultura e da legislação contratual, como o período medieval, a formação dos estados nacionais, a revoluções francesa e industrial, dentre outros.   

O Contrato no direito moderno se caracterizava pela liberalidade trazida pelo capitalismo e pelas ideias jusnaturalistas. Influenciado pela perspectiva de direitos de primeira dimensão, a liberdade era a palavra chave do ato contratual, baseando-se em ideologias como a oposição do indivíduo ao Estado, supremacia da autonomia da vontade (pacta sunt servanda), liberdade econômica e igualdade formal entre as partes contratantes (ALMEIDA, 2010).  

Com o desenvolvimento das sociedades e a constante normatização das relações humanas o direito de contratar, apesar de reconhecidamente se referir a uma liberalidade e voluntariedade das partes, passou a ser submetido a uma série de normas reguladas pelo Estado, com o objetivo de não permitir que a liberalidade das partes pudesse ferir direitos de terceiros, das próprias partes, ou até mesmo colocar em risco a segurança jurídica da coletividade. Assim, tem-se a base do sentido de função social do contrato. Busca-se uma harmonização entre os direitos de liberdade e os direitos de igualdade, devendo o Estado garantir também as igualdades materiais, além das formais, nas relações contratuais e a proteção ao ordenamento jurídico do Estado diante das liberalidades individuais.   

Conforme abordado por Almeida (2016), é um momento de busca por um modelo democrático de contrato e que diante de todas as transformações sociais advindas do final do século XVIII, sofreu forte influência dos movimentos constitucionalistas. Para Rulli Neto (2011), este novo contexto traduz-se em um direito reflexivo e relativizado sobre o que seria útil e o que não seria útil, pautado por noções de princípios fundamentais constitucionais norteadores de toda a estrutura jurídica. Esta forma de se pensar o papel do Estado serviu de alicerce à Constituição Federal do Brasil de 1988, influenciada por um amplo debate constitucionalista internacional no âmbito de formação do Estado Social de Direito, após conturbadas relações sociais no mundo em menos de um século, como crises econômicas cíclicas e duas guerras mundiais.   

O constitucionalismo sobre o direito civil possibilitou a positivação da Função Social do Contrato, pois o Estado assume um papel social na garantia da equidade entre os indivíduos da sociedade. O Constitucionalismo e seus princípios, direitos e garantias fundamentais regulamentam todas as esferas do direito, todas as relações jurídicas, motivo este que o direito contratual não fica de fora, “incorporando mecanismos de proteção à Pessoa e à coletividade” (RULLI NETO, 2011.p. 83).    

Paulo Luiz Netto Lôbo entende que os interesses individuais das partes no contrato serão exercidos em conformidade com os interesses sociais. Não pode haver conflito entre eles, tendo em vista que os direitos sociais são prevalentes e qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover “peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico” (LOBO apud RULLI NETO, 2011, p. 190).    

No Brasil, a Função Social do Contrato tem característica de princípio contratual e encontra-se positivada no Artigo 421 do Código Civil brasileiro, introduzido no ordenamento jurídico em 2002 pela Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002, como um reflexo direito da aplicação de normas e princípios constitucionais nas inovações legislativas do país. É neste sentido que este trabalho tem por objetivo uma análise sobre a Função Social do Contrato como um princípio legal com força de princípio constitucional norteador das relações contratuais entre os indivíduos sob a égide jurídica no Brasil. Deste modo, faz-se necessária uma análise mais detalhada sobre a extração da função social da Constituição Federal e suas formas de imposição diante das liberalidades individuais. Este trabalho se desenvolve sob uma análise qualitativa, de abordagem crítica e indutiva de revisões bibliográficas acadêmicas que versam sobre o tema proposto.       

2. DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS QUE FUNDAMENTAM A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E OS LIMITES À LIBERDADE VOLUNTARISTA   

 A questão central da análise deste Artigo é tentar responder ao questionamento quanto ao fundamento constitucional do princípio da função social. Poderia então este princípio, além de positivado na Lei Civil, ser também considerado um princípio constitucional que se aplique às relações contratuais?   

A reorganização da forma de se pensar o papel do Estado na Sociedade ganhou grande relevância no século XX diante de tantas transformações sociais e econômicas ocorridas no mundo e que tiveram influência também no cenário nacional. Como abordado na introdução, após uma fase em que prevalecia o entendimento de que o Estado não podia inibir as liberdades individuais, o modelo de contratação passa a ser repensado de forma a dar ao Estado a capacidade de regular as relações negociais privadas. As normas da vida civil passam a ser discutidas em âmbito Constitucional e passam também a ter contornos mais protetivos e garantistas por influências do Constitucionalismo contemporâneo. As Constituições inserem normas e princípios de deveres sociais não apenas na esfera estatal, mas também no seio das atividades privadas (GUIMARÃES, 2004).  

Por isso, pode se dizer que mesmo estando positivado no artigo 421 do Código Civil a interpretação do princípio da função social do contrato encontra proteção constitucional. Esta interpretação se dá sob valores protegidos pela Lex Máxima com o objetivo de organizar as relações sociais e promover o desenvolvimento nacional. O Próprio artigo 3º da Carta Magna já determina como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, solidária e garantir o desenvolvimento nacional. Conforme a hermenêutica contemporânea e a influência constitucionalista, as diretrizes constitucionais devem ser interpretadas de forma extensiva de direitos, buscando sempre promover a intenção da norma de forma mais abrangente possível na garantia da tutela pretendida.    

Neste sentido, ao se analisar as fundamentalidades e os princípios constitucionais, o operador do Direito não pode ficar restrito à norma escrita, visto que muitos dos princípios constitucionais são extraídos de forma implícita com base na interpretação extensiva do texto positivado. Como bem abordado por Guimarães,    

A leitura do Código Civil à luz da Constituição Federal implica no distanciamento do individualismo e da patrimonialidade do direito contratual, mas não no sentido de "revogar" tal posição, mas sim em recondicioná-la aos direitos e garantias constitucionais que primam pela proteção à pessoa humana (GUIMARÃES, 2004, s.p.).    

Dentro desta perspectiva constitucional o contrato, por mais particular que seja, deve estar de acordo com o ordenamento jurídico ao qual está subordinado. Ele não pode se chocar contra a ordem econômica, social e política garantidas pela Constituição, por isso, a existência de sua função social. Barroso (2010), entende a função social do contrato como uma forma de limitar a autonomia da vontade individual quando ela se contrapor com o interesse social, devendo este último prevalecer sobre a vontade individual, ainda que esta contraposição signifique a impossibilidade dos particulares celebrarem as suas vontades. Nery (2013), complementa este entendimento afirmando que as liberdades individuais estão em constante interação, produzindo efeitos não apenas entre os contratantes de forma que o Estado não pode permitir que terceiros sejam afetados por essa relação também, deve haver garantias do Estado quanto ao equilíbrio contratual dentro da própria relação particular, visto que materialmente as partes não são totalmente iguais.    

O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes. Nesse caso, haverá a proteção da parte vulnerável no contrato, como é o caso do aderente ou daquele que está em situação de desigualdade em relação com a outra parte. Também haverá eficácia interna nos casos de aplicação direta dos direitos fundamentais, direitos sociais, ou proteção dos direitos da personalidade, como trata o Enunciado n. 23 do Conselho da Justiça Federal da I Jornada: “a função social do contrato não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais, ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana” (RULLI NETO, 2011, p. 203).    

Com base nestas afirmações é possível entender que o princípio da função social do contrato possui um peso de princípio constitucional, porque através de uma interpretação sistemática de diversos dispositivos constitucionais é compreensível que o instituto contratual não poderia se operar de forma diversa. O Legislador de 2002 muito bem fez ao positivar no artigo 421 do Código Civil a função social, deixando assim inequívoca a sua aplicação prática. A violação da função social do contrato não fere apenas a legislação civil infraconstitucional, mas também ataca diretamente uma série de normas e princípios constitucionais.   

A Constituição Federal de 1988 garante a isonomia através de diversos dispositivos, mais notadamente em seu artigo 5º Caput. Durante o texto constitucional existem outros dispositivos que tratam de regulações estatais sobre atividades privadas, com o objetivo de garantir-lhes uma função social que não seja apenas exercício e satisfações das vontades privadas. São exemplos: a liberdade de associação, desde que seja para fins lícitos; a função social da propriedade; direitos de propriedade intelectual; direitos econômicos; relações trabalhistas, relações consumeristas; tributação, dentre diversas outras matérias de cunho civil e privado que funcionam por meio de relações contratuais e que são regulamentadas diretamente pela constituição servindo de fundamento para a constitucionalidade do princípio da função social do contrato.  

Em consonância com Barroso (2010), o principal dispositivo constitucional que permite a interpretação da função social do contrato como princípio implícito na Constituição é o seu artigo 170, que diz:    

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;  VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego;  IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei (BRASIL, 1988, s.p.).    

Este artigo é bem emblemático ao estudo da função social do contrato porque nele é possível identificar, já no caput, que a Constituição valoriza a voluntariedade individual, mas que ela deve ser subordinada à justiça social, através de uma série de princípios que regulam vários aspectos da vida civil em sociedade, como pode ser observado em seus incisos. No Inciso III merece destaque a função social da propriedade também prevista no inciso XXIII do artigo 5º da Constituição Federal: “a propriedade atenderá a sua função social”. Ora, uma das expressões mais forte da individualidade é justamente sua propriedade privada que, inclusive, é a partir dela que se estabelecem as relações contratuais e as relações econômicas. A função social da propriedade é tão significativa que até mesmo a propriedade imaterial, intelectual e subjetiva, tem seus contornos de regulação e de preservação de sua função social.   

Seria exaustivo e por demais delongado selecionar todos os dispositivos da constituição que dão base à fundamentação do princípio da função social. Cumpre-se destacar estes principais de forma que por eles já é possível identificar a formalidade e a materialidade que o constituinte quer garantir à função social, não apenas da propriedade, mas também das relações privadas advindas dela, como ocorre nas relações contratuais. Basicamente, como fundamento mor constitucional para o princípio da função social do contrato, podem ser citados os fundamentos gerais da função social trazidos por Rulli Neto (2011), sendo eles “os valores da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da justiça social, da livre-iniciativa, da igualdade, especialmente, dentre outros que podem ser extraídos do sistema jurídico”. De acordo com Talavera (2002), mais do que consolidar os direitos de segunda geração referentes à igualdade, a função social do contrato representa um princípio materializador dos direitos de terceira geração ao garantir às relações contratuais contornos de solidariedade e justiça social.      

 3. A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NA LEI CIVIL    

Como mencionado anteriormente, o princípio da função social dos contratos encontra-se positivado no artigo 421 do Código Civil brasileiro de 2002. De acordo com Venosa (2018), este princípio é uma fórmula genérica ou aberta, por isso não prescreve conduta comissiva ou omissiva específica, cabendo ao julgador melhor aplica-la de acordo com o caso concreto, sempre na observância da justiça social e do melhor e mais justo resultado para as partes e para a ordem econômica e social, contudo, sem colocar em risco a segurança jurídica de forma geral. A liberdade de contratar possui uma relação simbiótica com a função social e o julgamento de uma relação contratual sob a égide da função social pode se dar de forma total ou parcial sobre o contrato. Com esta visão, a lei civil deixa de ter um viés estritamente patrimonialista e passa a ter um contorno de personalização das relações privadas, com o objetivo de garantir as liberdades individuais, mas devendo proteger também as condições de personalidade dos indivíduos, suas vulnerabilidades e os resultados destas relações no meio social.   

 O Código Civil também traz outra referência, positivada, à função social do contrato, mais precisamente em seu artigo 2.035, parágrafo único, como pode ser observado: “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. Na análise de Tartuce (2017), através da leitura deste dispositivo é possível depreender que estende-se a compreensão da função social para qualquer negócio jurídico celebrado, incluindo aqueles anteriores à legislação civil de 2002, mas que ainda possam gerar efeitos após a nova lei. Este dispositivo representa a extração constitucional do princípio da função social da propriedade e sua aplicabilidade nas relações contratuais com força de instrumento de ordem pública.    

O direito civil – assim como os outros ramos do chamado direito privado, o direito comercial e o direito do trabalho – assiste a uma profunda intervenção por parte do Estado. Procurou-se com êxito evitar que a exasperação da ideologia individualista continuasse a acirrar as desigualdades, com a formação de novos bolsões de miseráveis - cenário assaz distante do que imaginaria a ideologia liberal no século anterior, ou seja, a riqueza das nações a partir da riqueza da burguesia-, tornando inviável até mesmo o regime de mercado, essencial ao capitalismo. Estamos falando, como todos sabem, da consolidação do Estado Social.” (TEPEDINO, 2003, p. 117 apud ALMEIDA, 2010, s.p.)    

De acordo com Tartuce (2017), o Contrato é uma das formas de organização econômico-social de uma sociedade. Assim, o princípio da função social do contrato serve de instrumento balizador das relações privadas, com o objetivo de evitar sobreposição de interesses unilaterais e excesso de poder nestas relações. Deste modo, a função social evita disparidades, como onerosidade excessiva e o enriquecimento sem causa. O fim maior deste princípio é a proteção dos interesses da pessoa humana, de forma coletiva, através da manutenção da justiça contratual, a equidade, a boa-fé objetiva, a razoabilidade e o bom senso entre as partes e em seus efeitos perante a sociedade. Para o autor, a aplicação deste princípio possui duas dimensões de eficácia, a interna e a externa, sendo a primeira referente aos efeitos do contrato para as partes contratantes e a segunda refere-se aos efeitos para além das partes, que podem gerar a invalidade ou a ineficácia do contrato por inteiro ou de cláusulas contratuais especificas.   

Ainda, segundo estudos de Tartuce (2017), este princípio não deve ser interpretado como uma limitação a liberdade individual e privada de contratar, pois esta liberdade também é uma condição de dignidade humana representada pela autonomia da vontade. As restrições impostas pela função social do contrato recaem sobre as negociações das condições em que o contrato seria operado. É uma limitação ao conteúdo do contrato.  

A fim de exemplificar esta relação contratual, contribui Nery (2013), ao elucidar as relações contratuais do período regido pelo Código Civil de 1916. Diretamente influenciado pelas ideias iluministas e primando pelos direitos de primeira geração que buscavam a garantia da plena liberdade individual e econômica, aquele Códex assegurava a propriedade privada e as relações contratuais dela advindas de forma mais absoluta possível, dentro da autonomia de vontade das partes. Os contratantes poderiam convencionar as condições que lhes bem entendessem. As restrições previstas na lei se referiam, basicamente, a ressalvas de caráter formal ou de vícios e erros próprios da declaração de vontade das partes. Não havia preocupações com os efeitos e nem com a proteção das relações contratuais no meio social.  

Situação completamente diferente é abordada pela atual Lei Civil. Como muito bem abordado por Pedras Junior (2005), não basta haver a boa-fé objetiva advinda da autonomia das partes em contratar. Este instrumento jurídico deve ser celebrado sobre algo lícito e possível e, ainda, atender a uma função social, ou melhor, não pode vir a ferir a ordem econômica e social sob o risco de nulidade. Segundo este autor, “A principal consequência jurídica da função social dos contratos é a ineficácia de relações que acaba por ofender interesses sociais, a dignidade da pessoa” (2005, s.p.). Em conformidade com as formulações apresentadas por Nery (2013), a função social do contrato pode ser definida e entendida como uma ferramenta que busca a limitação da autonomia da vontade para a preservação da sociedade na qual este contrato é celebrado. Serve como forma de proteção da ordem econômica e social diante de interesses individuais que possam colocar em risco a equidade de um Estado que busca ser de bem-estar social e de Direito. Em suma, é a prevalência do interesse público sobre o interesse privado.   

Com base no princípio constitucional da função social, diversas foram e são as suas consequências no meio jurídico. As reverberações são muitas, Taravela (2002), cita como exemplo os contratos matrimoniais e de união estáveis. O concubinato passa a ser reconhecido como uma relação interpessoal com efeitos jurídicos, bem como a igualdade de direitos entre filhos havidos dentro e fora do casamento. Pereira Júnior (2002), também traz um exemplo de relação contratual que acaba por se inserir no tema da função social do contrato ao ferir direitos de terceiros, transcrito na íntegra abaixo.    

Quando o contrato satisfaz as partes, não lesa a sociedade, mas causa interferência a terceiro, isto é, com acordo de uma das partes, outra é prejudica. O prejudicado pode exigir indenização da outra parte à vista da culpa subjetiva, e por ausência da boa-fé objetiva. E, do terceiro ofensor por atentar contra boa-fé e função social (PEREIRA JÚNIOR, 2002, s.p.).    

Para Tartuce (2017), o princípio da função social do contrato representa a materialização da relação de interdependência entre o direito público e o direito privado, muitas vezes defendidos como esferas autônomas e independentes de direitos. Deste modo, o direito público passa a ter grande influência no direito privado especialmente quando se tratar de ordem pública. Este talvez seja um dos maiores reflexos da constitucionalização de questões até então tratadas apenas como um aspecto da lei e da vida civil.   

Baseado nas considerações abordadas no decorrer deste trabalho e também em acordo por Rulli Neto (2011) e Venosa (2018), ao se pautar as relações contratuais em princípios, a aplicação da lei perde a característica da mecanicidade do positivismo e adquire um contexto de “unidade de valores em todo o sistema” (RULLI NETO, 2011, s. p.). O operador de direito deve levar em conta o contexto do caso concreto na aplicação da norma e do princípio em busca do melhor resultado. A lei, os princípios e o operador do direito devem garantir, ao mínimo os direitos fundamentais, com intuito de dar efetividade às proteções constitucionais nas legislações (normas infraconstitucionais), assim como na interpretação e na aplicabilidade concreta do direito material e formal.     

4. CONCLUSÃO   

A função social do contrato pode ser entendida como um princípio constitucional extraído essencialmente de normas que buscam a proteção da dignidade da pessoa humana, da ordem e da justiça social e da segurança jurídica frente as manifestações de autonomia da vontade individuais no ato de celebração de contratos voluntaristas. As liberdades individuais ficam garantidas, desde que não sejam invocadas para atentar contra a própria estrutura econômica e social do ordenamento jurídico em que a relação contratual está inserida. Esta proteção não se refere apenas aos direitos de terceiros atingidos pelo contrato, mas serve também como mecanismo de proteção para as próprias partes envolvidas, visto que a lei deve garantir a igualdade não apenas formalmente falando, mas principalmente a igualdade material, fazendo existir o verdadeiro sentido jurídico da isonomia. Assim, uma parte mais favorecida não pode se utilizar de suas vantagens para subjugar ou se aproveitar da parte menos favorecida na relação contratual.  

Por fim, a aplicabilidade da função social às relações contratuais não é um constructo jurídico exclusivamente brasileiro e muito menos recente. Trata-se de mais um dos aspectos evolutivos do direito, pois representa o desenvolvimento e aprimoramento dos debates e aplicação das gerações de direito ao exercício concreto da lei. É a materialização de mais de duzentos anos de aperfeiçoamento das relações jurídicas e sociais. Assim, a função social do contrato sofreu e ainda sofre fortes influências dos movimentos constitucionalistas e pós-positivistas que buscam irradiar as proteções, garantias e direitos constitucionais em toda a estrutura infraconstitucional. Também é resultado da consolidação de direitos de segunda e de terceira geração, que tiveram por objetivo garantir as liberdades individuais, porém, colocando limites sobre a sua expressão prática, de forma que o Estado pudesse regular a justiça social, a equidade e a solidariedade. A expressão máxima da função social do contrato pode ser entendida com a afirmação de que o interesse particular não pode se sobrepor ou subjugar o interesse público por consequência de relações contratuais privadas      

5. REFERÊNCIAS   

ALMEIDA, Juliana E. A evolução histórica do conceito de contrato: em busca de um modelo democrático de contrato. 2010. Âmbito Jurídico. Disponível em: . Acesso em 16 jul. 2018.     

BARROSO, Vanessa P. S. Os efeitos da constitucionalização do direito e a função social dos contratos. Âmbito Jurídico. 2010. Disponível em: . Acesso em 18. Jul. 2018.     

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Presidência da República. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2018.    

_______, Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Presidência da República. Publicado no DOU em 11 jan. 2002. Disponível em: . Acesso em 17 jul. 2018.     

GUIMARÃES, Haina E. A função social dos contratos em uma perspectiva civil-constitucional. Jus. 2014. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/5814/a-funcao-social-dos-contratos-em-uma-perspectiva-civil-constitucional >. Acesso em 18 jul. 2018.     

NERY, Barbara B. Função social do contrato: uma análise histórica e constitucional. Conteúdo Jurídico. 2013. Disponível em: < http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,funcao-social-do-contrato-uma-analise-historica-e-constitucional,44963.html >. Acesso em: 16 jul. 2018.    

PEDRAS JÚNIOR, José Brígido P. Função social do contrato no Código Civil 2002. Migalhas. 2005. Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI16458,61044-Funcao+Social+do+contrato+no+Codigo+Civil+2002 >. Acesso em 20 jul. 2018.    

RULLI NETO, Antonio. Função Social do Contrato. Ed. Saraiva. São Paulo,2011.     

SIGABINAZZE, Alexandre. A Evolução do direito contratual: da mesopotâmia à idade média. Jusbrasil. 2016. Disponível em: < https://alexandremarcello.jusbrasil.com.br/artigos/385381199/a-evolucao-do-direito-contratual >. Acesso em 16 jul. 2018.     

TALAVERA, Glauber M. A função social do contrato no novo código civil. Conselho da Justiça Federal. 2002. Disponível em: < http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/512/693 >. Acesso em 19 jul. 2018.    

TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 12. ed. rev., atual. e ampl . – Ri o de Janeiro: Forense, 2017.    

VENOSA, Silvio de S. Direito Civil: contratos. Ed. Atlas. 18ª Ed, vol. 3. São Paulo, 2018.   

Data da conclusão/última revisão: 13/8/2018

 

Como citar o texto:

RIDOLPHI, Alencar Cordeiro; FERREIRA,Oswaldo Moreira.A função social do contrato: algumas limitações à liberalidade de contratação com base na CF/88. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 30, nº 1563. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/4166/a-funcao-social-contrato-algumas-limitacoes-liberalidade-contratacao-com-base-cf88. Acesso em 25 set. 2018.

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