Resumo: Em 27 de setembro de 2017, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, julgou o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4439, tendo a maioria de 6 (seis) votos a 5 (cinco), julgado improcedente o pedido da Procuradoria-Geral da República, quando se requereu à Corte que procedesse à interpretação conforme à Constituição Federal da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (caput e §§ 1º e 2º, do artigo 33, da Lei 9.394/1996) e ao artigo 11, parágrafo 1º do acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé (promulgado por meio do Decreto 7.107/2010) para assentar que o ensino religioso nas escolas públicas não pode ser vinculado a religião específica. Por essa razão, neste trabalho, procura-se analisar à questão à luz da laicidade do Estado brasileiro. 

Palavras-chave: Estado laico; liberdade de crença; ensino religioso. 

Abstract: On September 27, 2017, the Federal Supreme Court, in a plenary session, judged the merits of the Direct Unconstitutionality Action 4439, with a majority of 6 (six) votes to 5 (five), dismissed the request of the Public Prosecutors Office General of the Republic, when the Court was requested to proceed with the interpretation according to the Federal Constitution of the Law of Directives and Bases of Education - LDB (caput and §§ 1 and 2, article 33, of Law 9.394 / 1996) and article 11, paragraph 1 of the agreement signed between Brazil and the Holy See (promulgated through Decree 7,107 / 2010) to establish that religious education in public schools can not be linked to a specific religion. For this reason, in this work, we try to analyze the issue in the light of the laity of the Brazilian State.

Keywords: Secular State; freedom of belief; religious education.

Introdução 

No dia 27 de setembro de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão plenária, julgou o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4439, tendo a maioria de 6 (seis) votos a 5 (cinco), entendido pela improcedência do pedido da Procuradoria-Geral da República. 

Os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia votaram nesse sentido, enquanto, vencidos, os ministros Luís Roberto Barroso (relator), Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello, se manifestaram por sua procedência.

Na ação, a PGR pedia a interpretação conforme a Constituição Federal ao dispositivo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (caput e parágrafos 1º e 2º, do artigo 33, da Lei 9.394/1996) e ao artigo 11, parágrafo 1º do acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé (promulgado por meio do Decreto 7.107/2010) para assentar que o ensino religioso nas escolas públicas não pode ser vinculado a religião específica e que fosse proibida a admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas. Sustentava que tal disciplina, cuja matrícula é facultativa, deve ser voltada para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017: s/p). 

Como difundido, o desfecho do julgamento se deu, na data mencionada acima, por conta dos votos faltantes dos ministros Marco Aurélio e Celso de Mello e da ministra Cármen Lúcia.

O primeiro, seguindo o voto do relator, o ministro Luís Roberto Barroso, sustentou que a laicidade estatal 

[…] “não implica o menosprezo nem a marginalização da religião na vida da comunidade, mas, sim, afasta o dirigismo estatal no tocante à crença de cada qual”. “O Estado laico não incentiva o ceticismo, tampouco o aniquilamento da religião, limitando-se a viabilizar a convivência pacífica entre as diversas cosmovisões, inclusive aquelas que pressupõem a inexistência de algo além do plano físico”, [...], […] que não cabe ao Estado incentivar o avanço de correntes religiosas específicas, mas, sim, assegurar campo saudável e desimpedido ao desenvolvimento das diversas cosmovisões. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017: s/p).

O segundo, ministro Celso de Mello, ressaltou, principalmente, que em se tratando de matéria confessional, o Estado brasileiro deverá manter-se na mais “[...] estrita neutralidade axiológica em ordem a preservar, em favor dos cidadãos, a integridade do seu direito fundamental à liberdade religiosa”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017: s/p). 

Por outro lado, a ministra Cármen Lúcia, última a votar, pois à época, presidente do STF, seguiu a divergência levantada pelo ministro Alexandre de Moraes no sentido de julgar o pedido improcedente a fim de que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras tenha natureza confessional, argumentando o seguinte:

“A laicidade do Estado brasileiro não impediu o reconhecimento de que a liberdade religiosa impôs deveres ao Estado, um dos quais a oferta de ensino religioso com a facultatividade de opção por ele”, […]. […], todos estão de acordo com a condição do Estado laico do Brasil, a tolerância religiosa, bem como a importância fundamental às liberdades de crença, expressão e manifestação de ideias. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017: s/p).

Neste trabalho, procurar-se-á analisar a questão à luz da laicidade do Estado brasileiro, já que, de acordo o inciso art. 19, I, da Carta Magna: 

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; […]. (BRASIL, 1988: s/p).

Ou seja, conforme José Afonso da Silva atestara no ano de 2010, a história constitucional brasileira demonstra claramente quando o Brasil adotou uma postura confessional e a posição adotada na Constituição da República de 1988 (não confessional). 

De acordo com suas palavras, em análise a esse dispositivo constitucional:

Realmente, a Constituição Política do Império estabelecia que a Religião Católica Apostólica Romana era a Religião do Império (art. 5º), com todas as consequências derivantes dessa qualidade de Estado confessional, tais como a de que as demais religiões seriam simplesmente toleradas, [...]. Em verdade, não houve no império liberdade religiosa, pois, se o culto católico gozava de certo privilégio e podia realizar-se livremente, muitas restrições existiam quanto à organização e funcionamento da religião oficial, a ponto de se reconhecer, hoje, que ela era uma religião “manietada e escravizada pelo Estado, através de sua intervenção abusiva na esfera da Igreja”.

A República principiou estabelecendo a liberdade religiosa, com a separação da Igreja e do Estado. Isso se deu antes da constitucionalização do novo regime, com o Decreto 119-A, de 7.1.1890, da lavra de Ruy Barbosa, expedido pelo Governo Provisório. 

A Constituição de 1891 (arts. 11, § 2º, 72, §§ 3º-7º, 28 2 29) consolidou essa separação e os princípios básicos da liberdade religiosa. Assim, o Estado Brasileiro se tornou laico, admitindo e respeitando todas as vocações religiosas. […]. Os princípios básicos continuaram nas Constituições posteriores até a vigente. […]. (SILVA, 2010: 254-255).

Note-se, embora a Constituição Federal de 1988 tenha promovido certa flexibilidade no que tange às relações entre Estado e Igreja, “[…] passando de uma separação mais rígida para um sistema que admite certos contatos, [...]”, (SILVA, 2010: 255), por admitir a colaboração de interesse público, de antemão, afirme-se, não se pode admitir o ensino confessional no âmbito das escolas públicas.

Para sustentar essa ideia, pretende-se, por meio de uma análise dos argumentos ofertados pelo Procurador-Geral da República e das motivações ofertadas pelos ministros do STF para proferirem os respectivos votos no seio da ADI 4439, dos direitos fundamentais individuais à liberdade de expressão e à liberdade de crença, além de posicionamentos doutrinários sobre essas temáticas, aferir em que medida o STF confirmou seu papel de guardião da Constituição ou afrontou-a. 

1. Os argumentos da Procuradoria-Geral da República na ADI nº 4439

Como informado acima, no dia 27 de setembro de 2017, o plenário do STF julgou o mérito da ADI nº 4439, em que a Procuradoria-Geral da República pedia a interpretação conforme a Constituição Federal dos §§ 1º e 2º do art. 33 da Lei 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educação – LDB e ao § 1º do art. 11 do acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé (promulgado por meio do Decreto 7.107/2010), para assentar que o ensino religioso nas escolas públicas não pode ser vinculado a religião específica e que fosse proibida a admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas, já que tal disciplina, de matrícula facultativa, deveria ser voltada para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica.

Conheçamos, de antemão, o dispositivo da Lei de Diretrizes Básicas da Educação Nacional e aquele do Acordo firmado entre o Brasil e a Santa Fé. 

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.

§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (BRASIL, 1996: s/p).

Artigo 11

A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.

§ 1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação. (BRASIL: 2010: s/p).

Passaremos, a partir de agora, a apresentar os principais argumentos oferecidos pela Procuradoria-Geral da República a fim de obter êxito na empreitada.

De início, referido órgão argumentou que a escola pública não é lugar não somente para o ensino confessional mas também para o interconfessional ou ecumênico, mesmo que não se dedique a uma confissão específica por ter o condão de “[…] inculcar nos alunos princípios e valores religiosos partilhados pela maioria, com prejuízo das visões ateístas, agnósticas, ou de religiões com menor poder na esfera sócio-política”. (BRASIL, 2017: 3). Nesse sentido, segundo sua “tese”:

[…] a única forma de compatibilizar o caráter laico do Estado brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas é através da adoção do modelo não-confessional, em que o conteúdo programático da disciplina consiste na exposição das doutrinas, das práticas, da história e das dimensões sociais das diferentes religiões – bem como de posições não-religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo – sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores. Estes, por outro lado, devem ser professores regulares da rede pública de ensino, e não pessoas vinculadas às igrejas ou confissões religiosas. (BRASIL, 2017: 3-4).

Para o autor da ação, somente o modelo ora narrado se presta à essência do ensino, qual seja: “[…] formar cidadãos e pessoas autônomas, capazes de fazerem escolhas e tomarem decisões por si próprias em todos os campos da vida, inclusive no da religiosidade”. (BRASIL, 2017: 4).

Sobre os dispositivos da LDB, a Procuradoria-Geral de República frisou corroborar o modelo não-confessional ao se ministrar o ensino religioso, tanto que veda “[…] expressamente “quaisquer formas de proselitismo”. (BRASIL, 2017: 5). Ao mesmo tempo, sustenta parecer “[…] evidente que “as normas de (…) admissão de professores” excluem a possibilidade de serem admitidos nessa condição representantes das diferentes denominações religiosas”. (BRASIL, 2017: 5). E continua: 

Sem embargo, o art. 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/96 vem sendo interpretado e aplicado pela autoridades públicas competentes como se fosse compatível tanto com o ensino religioso confessional quanto com o interconfessional. Na práticas, as escolas, públicas brasileiras, com raras exceções, são hoje um espaço de doutrinamento religioso, onde, por vezes, os professores são representantes das igrejas, tudo financiado com recursos públicos. (BRASIL, 2017: 6).

Sobre o acordo firmado em 2010 para com a Santa Fé, a Procuradoria-Geral da República afirmou que a expressão ensino religioso católico e de outras confissões religiosas poderá apontar, apriorísticamente, a “[…] adoção do ensino da religião católica e de outros credos nas escolas públicas brasileiras, em afronta ao princípio da laicidade do Estado”. (BRASIL, 2017: 7). 

Doutro ponto de vista, existiria uma forma de interpretar referido dispositivo sem afrontar a Constituição Federal de 1988 e ao mesmo tempo não romper com as possibilidades semânticas do texto no sentido de haver uma indicação acerca da necessidade de que no âmbito do ensino não-confessional nas escolas públicas, “[…] haja espaço para a exposição e discussão, sem qualquer proselitismo, das doutrinas católicas, além daquelas pregadas por outras confissões”. (BRASIL, 2017: 8). 

Ademais, por mais que a interpretação mais evidente do dispositivo em tela indique a adoção do ensino confessional, isso não inviabilizaria “[…] o emprego da técnica de interpretação conforme a Constituição, que tem lugar também para preservar “a validade de uma lei, que, na sua leitura mais óbvia, seria inconstitucional””. (BRASIL, 2017: 8). 

Com efeito, e para finalizar, a autoridade mencionada aludiu:

Contudo, caso se entenda que não como interpretar o referido preceito normativo da forma sugerida, existe outra alternativa, para sanar o apontado atentado contra o princípio da laicidade do Estado. Poderá a Corte, nesta hipótese, proferir decisão de declaração parcial de inconstitucionalidade com redução de texto, para suprimir da redação do art. 11, § 1º, do Acordo, a expressão “católico e de outras confissões religiosas”, que é aquela que aponta, ao menos numa primeira leitura, para a adoção do modelo confessional de ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. (BRASIL, 2017: 8).

Postas essas considerações oferecidas pelo Procurador-Geral de República no seio da ADI nº 4439, as quais não prevaleceram, importa tecer comentários sobre os desenvolvimentos doutrinários brasileiros acerca da liberdade de crença na Constituição Federal de 1988. 

2. A liberdade de crença na Constituição Federal de 1988

Como correlação à laicidade do Estado brasileiro, a Constituição Federal de 1988 consagrou a liberdade de convicção, consciência e crença, nos incisos VI, VII e VIII de seu art. 5º, moldes em que:

Art. 5º. […] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; […]. (BRASIL, 1988: s/p).

Veja-se, a Carta Magna possibilita ter-se convicções e/ou crenças ligadas às ordens filosófica, sociológica, política, religiosa, entre outros, ou, até mesmo, a sua ausência. 

Portanto, pode-se adotar uma religião ou outra, ser agnóstico, ateu, espírita, cético etc, como José Afonso da Silva, há algum tempo, já advertia:

Como pensamento íntimo, prevê a liberdade de consciência e de crença, que declara inviolável (art. 5º, VI), como a de crença religiosa e de convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII). Isso significa que todos têm o direito de aderir a qualquer crença religiosa como o de recusar qualquer delas, adotando o ateísmo, e inclusive o direito de criar sua própria religião, bem assim o de seguir qualquer corrente filosófica, científica ou política ou de não seguir nenhuma, encampando o ceticismo. (SILVA, 2009: 242).

Embora se tenha os desenvolvimentos até aqui apresentados acerca da liberdade de convicção de crença, tratando-se o Brasil, logo, de um país “[…] leigo, laico ou não confessional, não existindo, portanto, nenhuma religião oficial da República Federativa do Brasil […] (LENZA, 2016: 1289), o Preâmbulo da Carta da República de 1988 estabeleceu que sua promulgação, por meio da Assembleia Nacional Constituinte, instalada no ano de 1987, dar-se-ia sob a promulgação de Deus.

Como se sabe, a questão foi discutida e decidida pelo STF. Sobre o ocorrido, interessa observar: 

Todas as Constituições pátrias, exceto as de 1891 e 1937, invocaram a “proteção de Deus” quando promulgadas. Em âmbito estadual essa realidade se repetiu, com exceção do Estado do Acre. Referida omissão foi objeto de questionamento no STF pelo Partido Social Liberal. O STF, definindo a questão, além de estabelecer e declarar a irrelevância jurídica do preâmbulo, assinalou que a invocação da “proteção de Deus” não é norma de reprodução obrigatória na Constituição Estadual (ADI 2.076-AC, Rel. Min. Carlos Velloso). 

O preâmbulo não tem relevância jurídica, não tem força normativa, não cria direitos ou obrigações, não tem força obrigatória; serve, apenas, como norte interpretativo das normas constitucionais. Por essas características e, ainda, por ser o Estado brasileiro laico, podemos afirmar que a invocação à divindade não é de reprodução obrigatória nos preâmbulos das Constituições Estaduais e leis orgânicas do DF e dos Municípios. Conforme aprofundamos no item 3.10.1.3, o Brasil é um país leigo, laico ou não confessional, lembrando que Estado laico não significa Estado ateu.

Partindo dessa interpretação, o art. 5.o, VI, da CF/88 enaltece o princípio da tolerância e o respeito à diversidade. (LENZA, 2016: 1289).

Isso posto, seguindo a premissa, em obra publicada no ano de 2017, antes, porém, da decisão do STF sobre as regras a se seguir no âmbito da prestação do ensino religioso em colégios públicos, as quais estamos examinando neste trabalho, Bernardo Gonçalves Fernandes lembrou estabelecer o § 1º do art. 210 da Carta da República que o ensino religioso, de matrícula facultativa, se impõe como disciplina obrigatória dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. 

De toda ordem:

Nos termos da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) está consignado que "o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso." Entendemos que o ensino deve ser ministrado de forma interconfessional (análise dos princípios comuns às religiões) ou não confessional (análise de todas as religiões de forma expositiva e dotada de generalidade), não existindo atualmente espaço à luz da Constituição de 1988, para um estudo do tipo confessional (análise dos cânones de uma religião especifica e determinada). […]. (FERNADES, 2017: 446-447).

Antes de encerrarmos o trabalho com a apresentação de considerações finais, analisemos as previsões da Carta Magna de 1988 acerca do direito fundamental individual à liberdade de expressão e correlatas construções teóricas, por ter sido conteúdo dos argumentos prevalentes da decisão do STF no âmbito da ADI nº 4439. 

3. A liberdade de expressão na Constituição republicana de 1988

A pessoa humana não se contenta somente em pensar algo, possuir suas opiniões, mas “[…] quer expressá-las e, não raro, convencer os outros de suas ideias”. (NOVELINO, 2015: 402). Por essa razão, reconheceu-se a manifestação de pensamento como um direito fundamental da pessoa humana. 

Historicamente, a liberdade de manifestação do pensamento (ou liberdade de expressão) surgiu como forma de defesa contra a censura e o autoritarismo estatal. Apesar de originariamente prevista no artigo 8º do Bill of Rights inglês (1689), foi com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ( 1789) que essa liberdade passou a ser consagrada de forma mais ampla, nos moldes em que tem sido contemplada nos textos constitucionais modernos. (NOVELINO, 2015: 403).

Esse direito poderá ser conceituado como aquele de “[…] exprimir e divulgar livremente o seu pensamento. É o direito de não ser impedido de exprimir-se”. (NOVELINO, 2015: 403).

Na Constituição Federal de 1988, encontra-se delimitado nos incisos IV, V do art. 5º, que a manifestação do pensamento é livre, sendo vedado, porém, o anonimato, além de assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo e a indenização por dano material, moral ou à imagem.

A manifestação de pensamento, também conceituada como liberdade de expressão, poderá ser exercida em sentidos variados, como Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco demonstraram:

Incluem-se na liberdade de expressão faculdades diversas, como a de comunicação de pensamentos, de ideias, de informações, de críticas, que podem assumir modalidade não verbal (comportamental, musical, por imagem etc.). O grau de proteção que cada uma dessas formas de se exprimir recebe costuma variar, não obstante todas terem amparo na Lei Maior. [...] A liberdade de expressão é, então, enaltecida como instrumento para o funcionamento e preservação do sistema democrático (o pluralismo de opiniões é vital para a formação de vontade livre)”. [...] O ser humano se forma no contato com o seu semelhante, mostrando-se a liberdade de se comunicar como condição relevante para a própria higidez psicossocial da pessoa. O direito de se comunicar livremente conecta-se com a característica da sociabilidade, essencial ao ser humano”. (MENDES; BRANCO, 2017: 233-234).

Nesse contexto, a pessoa humana poderá contribuir para o próprio crescimento e, até mesmo, da comunidade em que se insere a partir de seus posicionamentos, estando, de toda maneira, também sujeita a, por meio de suas manifestações, ofender os direitos de outrem, sendo, conforme afirmamos acima, vedado o anonimato, justamente, para que se possa aferir eventuais danos e responsabilizar seu agente, como Nathalia Masson ressaltou:

[…] a Constituição prevê que manifestações que causem dano material, moral ou à imagem de outrem, geram, em contrapartida, o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização (art. 5°, V). Daí a necessidade de vedar o anonimato, para permitir a identificação do autor e tomar possível a resposta proporcional ao agravo (desagravo), bem como o pleito judicial por indenização decorrente dos danos materiais e/ou morais, ou, também, ações penais em casos de crimes contra a honra. (MASSON, 2016: 239).

A liberdade de expressão merece interessante pontuação a partir de uma decisão do STF sobre a famosa “marcha da maconha”, ocorrida em São Paulo e que foi objeto de questionamento na ADI nº 4.274. 

De acordo com a publicação do STF A Constituição e o Supremo, nessa ADI, decidiu-se que:

[…] A liberdade de expressão como um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos em uma república fundada em bases democráticas. O direito à livre manifestação do pensamento: núcleo de que se irradiam os direitos de crítica, de protesto, de discordância e de livre circulação de ideias. Abolição penal (abolitio criminis) de determinadas condutas puníveis. Debate que não se confunde com incitação à prática de delito nem se identifica com apologia de fato criminoso. Discussão que deve ser realizada de forma racional, com respeito entre interlocutores e sem possibilidade legítima de repressão estatal, ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis. O sentido de alteridade do direito à livre expressão e o respeito às ideias que conflitem com o pensamento e os valores dominantes no meio social. Caráter não absoluto de referida liberdade fundamental (CF, art. 5º, IV, V e X; Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 13, § 5º). [...]”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2016: 67-68).

Deixou-se claro, assim, que o direito analisado não possui caráter absoluto, sofrendo, portanto, limitações, conforme se difunde, na seara constitucional, há algum tempo, acerca dos direitos fundamentais. 

Vejamos os desenvolvimentos do ministro do STF Alexandre de Moraes à respeito:

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua. (MORAES, 2017: 45).

“As maiorias, por essa razão, não têm o condão de dimensionar o pensar, tampouco as manifestações de pensamentos das minorias.” (DUARTE; COTTA, 2017: s/p). Assim, deve-se repelir quaisquer atos ilegítimos que adentrem na esfera desse direito. Isso porque a proteção 

[...] à liberdade de pensamento como salvaguarda não apenas das ideias e propostas prevalecentes no âmbito social, mas, sobretudo, como amparo eficiente às posições que divergem, ainda que radicalmente, das concepções predominantes em dado momento histórico-cultural, no âmbito das formações sociais. O princípio majoritário, que desempenha importante papel no processo decisório, não pode legitimar a supressão, a frustração ou a aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício do direito de reunião e a prática legítima da liberdade de expressão, sob pena de comprometimento da concepção material de democracia constitucional. A função contramajoritária da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito. Inadmissibilidade da “proibição estatal do dissenso”. Necessário respeito ao discurso antagônico no contexto da sociedade civil compreendida como espaço privilegiado que deve valorizar o conceito de “livre mercado de ideias”. [...] (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2016: 67-68).

Dando mais ensejo ao direito em análise, o inciso IX do art. 5º da Carta da República determina que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. 

Pelo dispositivo, entende-se, portanto, que “[...] em princípio, manifestações não verbais também se inserem no âmbito da liberdade constitucionalmente protegida”. (MENDES; BRANCO, 2017: 238). Assim:

A expressão corporal, por exemplo, com o intuito de arte engajada, abarca vasta gama de situações. É possível, porém, que comportamentos expressivos (as também chamadas expressões simbólicas) recebam uma ponderação menor quando confrontados com outros valores constitucionais, propendendo por ceder a estes com maior frequência do que a verificada nos casos de expressão direta de pensamento. Percebe​-se, é bem que se diga, que o grau de tolerância para com as expressões simbólicas varia de cultura para cultura, de país para país, como também de tempos em tempos numa mesma localidade. [...] No direito brasileiro, a propósito, o STF registra precedente em que se afastou a punição criminal, como atentatória ao pudor, de conduta de certo diretor de teatro, que reagiu a vaias, expondo as nádegas desnudas ao público. Considerou​-se o tipo de espetáculo em que o acontecimento se verificou e o público que a ele acorreu, para se ter, no episódio, o intuito de expressão simbólica como preponderante sobre os valores que a lei penal visa tutelar. (MENDES; BRANCO, 2017: 238-239).

De mais a mais, importa fomentar, a Constituição Federal prevê limitações expressas à liberdade de expressão, tendo-se em vista os arts. 220 e 221.

O primeiro regulamenta questões relativas à liberdade jornalística, à vedação de censura de cunhos políticos, ideológicos e artísticos e ao consumo de tabaco, bebidas entre outros.

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

§ 3º Compete à lei federal:

I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

§ 4º A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.

§ 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

§ 6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. (BRASIL, ano: página).

O segundo versa sobre os princípios a se seguir relativamente à produção e à programação das emissoras de rádio e televisão, termos em que:

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;

III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; 

IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. (BRASIL, 1988: s/p).

Por todo o exposto, é preciso pensar em que medida a decisão do STF afrontou a Constituição Federal de 1988 e se é possível compatibilizar a laicidade do Estado, as liberdades de crença e de expressão quando da prestação do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. 

Considerações finais

Entendemos, antes de mais nada, que a Constituição Federal de 1988 deixou claro o reconhecimento da laicidade do Estado brasileiro, tanto pela análise dos dispositivos concernentes à liberdade religiosa, quanto pela interpretação extraída do inciso I do art. 19. 

Concordamos, assim, com o Procurador-Geral de República, o qual merecia, logo, a procedência da ADI aqui analisada, o que no entanto, não foi entendido pela maioria do STF.

Sem sombra de dúvidas, como visto, o papel da escola pública (da privada também), e isso se aplica à disciplina ensino religioso, é formar cidadãos e pessoas autônomas, capazes de fazerem escolhas e tomarem decisões por si próprias em todos os campos da vida, inclusive no da religiosidade 

Isso, no entanto, não esvazia a possibilidade de debates diversos no âmbito dessa disciplina ou de qualquer outra, desde que o objeto em questão faça parte do conteúdo ministrado atrelado à ementa do curso, podendo-se, obviamente, neste momento, fazer-se uso do direito à liberdade de expressão. 

Deve-se vedar, nesse horizonte, por outro lado e obviamente, porém, a doutrinação, no sentido de se impor uma verdade absoluta. A escola se apresenta como local de se estudar e não para se estabelecer crenças. 

Portanto, entendemos que o Pretório Excelso não agiu corretamente, deixando de cumprir, por isso, o seu papel de guardião da Constituição brasileira contemporânea, nos exatos termos do caput de seu art. 102. 

Referências

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Data da conclusão/última revisão: 18/11/2018

 

Como citar o texto:

DUARTE, Hugo Garcez; OLIVEIRA, Jessica Nayane..Reflexões sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4439. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 30, nº 1576. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/4252/reflexoes-acao-direta-inconstitucionalidade-n-4439. Acesso em 19 nov. 2018.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.