RESUMO

A análise probatória em processo penal que tenha como objeto o crime de natureza sexual exige, na fase investigatória e processual, a inserção de especificidades que diferenciam do protocolo valorativo considerado para as demais modalidades de tipos penais. A condenação criminal por crime sexual, ainda que diante da não utilização de todas as modalidades probatórias, encontra-se relacionado com a natureza do tipo penal. Cumpre definir o cenário como está sendo a realidade experimentada tanto por aqueles que se veem injustiçados por uma condenação baseada unicamente na palavra da vítima, tanto pelo judiciário que enfrenta o impasse de analisar cautelosamente todas as evidências constantes da instrução criminal.

Palavras-chaves: Crimes sexuais; Provas; verdade real; ampla defesa.

ABSTRACT

The probative analysis in criminal proceedings that has as its object the crime of a sexual nature requires, in the investigative and procedural phase, the insertion of specificities that differ from the value protocol considered for the other types of criminal types. The criminal conviction for sexual offense, although in the face of the non-use of all probative modalities, is related to the nature of the criminal type. It is necessary to define the scenario as the reality is experienced both by those who are wronged by a conviction based solely on the victims word, both by the judiciary that faces the impasse of carefully analyzing all the evidences contained in the criminal instruction.

Keywords: Sexual offenses; Evidences; Principle of real truth; Full Defense.

1.     INTRODUÇÃO

Essencial ao processo penal, no intuito de se apurar a materialidade e a autoria de um delito, é a sua reconstrução. Ocorre que nos crimes sexuais nem sempre é possível tal feito, primeiro porque há situações em que o crime não deixa vestígios, como os atos libidinosos que são de difícil constatação, ou ainda que existam evidências, a depender do lapso do exame ou mesmo da notícia do crime, não se consegue concluir num grau de confiabilidade sobre sua materialidade, tampouco quanto sua autoria.

Foi nessa tentativa de resolver o emblema, que se passou a considerar como valor probatório a palavra da vítima. Porém, a solução só se direciona para uma das partes: a vítima. Quanto ao réu, praticamente lhe foi retirada a efetiva manifestação de suas garantias constitucionais, pois a presunção de inocência passou a ser exceção.

Os crimes sexuais, por sua própria natureza, ocorrem na clandestinidade e normalmente fora do olhar de testemunhas, podendo ter, em alguns casos, condenações baseadas unicamente na palavra da vítima, afastando a verdade real dos fatos e comprometendo garantias individuais atribuídas à pessoa do acusado.

Nos crimes sexuais o acusado assume presumidamente a posição de culpado, ao passo que seus direitos e garantias fundamentais são relegados à excepcionalidade. Com a tramitação processual sob a presunção de culpabilidade, mesmo frente à fragilidade da palavra da vítima, a condenação do acusado surge como conclusão apropriada à sistemática construída pelo ordenamento penal, material e processual.

2.     CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL NO ASPECTO MATERIAL

O Código Penal Brasileiro - CPB sofreu importantes alterações na parte especial ao longo dos anos no que diz respeito aos crimes sexuais, em especial com o advento da Lei n. 12.015/2009. A princípio, houve uma acertada adequação na nomenclatura do antigo título “Dos Crimes contra os Costumes” para “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual”.

Tal alteração se motivou por uma questão de compatibilidade com a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - CRFB/88, que prevê em seu no artigo 1°, inciso III, a dignidade de pessoa humana como um de seus fundamentos, superando a expressão “costumes”, já que os crimes tipificados no Título VI não feriam a moralidade, mas a dignidade e a liberdade sexual das vítimas. (BRASIL, 1988)

Quanto ao tipo penal especificado no artigo 213 do CPB, condicionava a materialidade do crime do estupro à prática da “conjunção carnal”, relegando ao crime de atentado violento ao pudor, previsto no artigo 214 do CPB.

Atualmente, o mesmo artigo 213 considera estupro as duas elementares - conjunção carnal e ato libidinoso, desde que empregada com violência ou grave ameaça, até porque os atos libidinosos, naturalmente, precedem o próprio coito vagínico, não fazendo sentido separar as condutas ou admiti-las em concurso material como por vezes acontecia na antiga vigência normativa.

As penas atuais para o crime de estupro, mesmo na forma simples do caput do dispositivo já mencionado, são bem mais rigorosas do que as previstas anteriormente. Atualmente, ainda que somadas as penas antes previstas para os crimes de estupro e do atentado violento ao pudor, não alcançavam o mínimo da pena atualmente prevista.

Outro ponto de destaque é a composição do tipo penal dentre aqueles crimes taxados como hediondos, para os quais escolheu o legislador dar maior rigidez de tratamento por se tratar de crime cuja repugnância e reprovação da sociedade são maiores.

A Lei 12.015/2009 também operou em larga transformação incluindo as qualificadoras previstas nos parágrafos 1º e 2º do dispositivo previsto no CPB, quando o crime estupro resultar em lesão corporal grave ou for cometido contra vítima com idade menor de dezoito ou maior de catorze anos, ou ainda se resultar em morte da vítima.

Ainda alterou a redação do antigo parágrafo único do artigo 213 do CPB, de modo a atribuir ao estupro de menores de 14 anos novo tipo penal, disposto no capítulo “Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável”, artigo 217-A. (BRASIL, 2009)

Idêntica situação aconteceu com o crime de violação sexual mediante fraude, definido no artigo 215 do Código Penal Brasileiro. Os delitos de posse sexual mediante fraude e o revogado artigo 216, que versava sobre o atentado ao pudor mediante fraude, deixaram de compor tipos penais diversos para integrar um só.

Também foi estendida sua redação para além da conjunção carnal, já que engloba hoje o ato libidinoso e a expressão “mulher honesta” deixou de existir.

Importante mencionar que as qualificadoras previstas na antiga redação dos artigos 215 e 216 do CPB (ser mulher virgem e ser a vítima maior de catorze e menor de dezoito anos de idade), foram excluídas, sendo acrescentada a pena de multa se o crime for cometido com fins econômicos.

Acerca da diferença da violação mediante fraude com o estupro, Marcão e Gentil (2014, p. 151), aponta que neste último, “a oposição da vítima é vencida”, enquanto que no primeiro, “essa oposição é contornada ou evitada pelo agente”. (apud NORONHA, 1991, p. 104).

A Lei n. 10.224/2001 trouxe para o quadro dos crimes contra a liberdade sexual o assédio sexual, tipificado no artigo 216-A, que configura a situação de perseguição, intimidação e constrangimentos ameaçadores com o intuito de conseguir contatos de índoles sexuais. Tal infração era amparada por outras antes de sua positivação, como a exemplo do constrangimento ilegal, tanto que o núcleo do tipo penal utiliza o verbo “constranger”, invés de assediar. (BRASIL, 2001)

Diferente dos crimes anteriores, os quais denominam-se de comuns, este possui a classificação de próprio, isto é, somente comete o crime o superior hierárquico, do mesmo modo que apenas sofre a ação o funcionário subalterno, num contexto de subordinação laboral.

Outra inovação à legislação material penal, implementada pela Lei nº 13.718/18, fazendo incluir ao CPB o artigo 215-A, prevendo o tipo penal definido como importunação sexual, que prevê como conduta a prática de ato libidinoso para satisfação de lascívia própria ou de terceiro, sem anuência da vítima. Este delito, por sua vez, é crime subsidiário, e por esta razão, não se confunde com estupro ou estupro de vulnerável, pois estes são tipos mais específicos, de modo que indispensável é, no primeiro caso, a violência ou grave ameaça, e no segundo, ser a vítima menor de catorze anos. (BRASIL, 2018)

Referida conduta, embora seja novidade como crime autônomo, já encontrava previsão na Lei das Contravenções Penais - LCP, em seu artigo 61. Portanto, verifica-se que na prática não houve abolitio criminis, já que a norma jurídica não deixou de existir, apenas passou ser regulamentada por outro diploma, instituto denominado de princípio da continuidade normativa típica.

O que houve neste caso foi uma novatio legis in pejus, que, devido a esta natureza, impede a retroatividade dessa norma para abarcar fatos ocorridos no passado.

A conduta de importunação sexual como prática recorrente, especialmente dentro dos transportes públicos coletivos, punida nos termos da da LCP, tendo como pena a simples multa, poderia ser insuficiente; punida nos termos do CPB, seria tipificada como crime de estupro.

3.     A ABORDAGEM PROCESSUAL E SUAS ESPECIFICIDADES

Ainda sobre a Lei n. 13.718/2018, é importante mencionar outra alteração trazida por ela relativa à natureza da ação penal, que passou ser pública incondicionada para todas as previsões delituosas constantes dos capítulos I e II do título VI (dos crimes contra a dignidade sexual) do Código Penal Brasileiro. Antes a regra era que fosse condicionada a representação da vítima, sendo a incondicionada destinada aos casos de vulnerabilidade. (BRASIL, 2018)

A atual condição de procedibilidade faz o Estado tomar para si a proteção integral das vítimas que tiverem violado sua liberdade sexual, de modo a iniciar o processo criminal sem levar em conta o desejo do sujeito passivo, o que a depender da situação pode se tornar um inconveniente, tendo em vista a exposição que traz à tona todo o sofrimento experimentado por ela, a vítima, e que exatamente por isso não gostaria de se ver envolvida em uma ação penal.

O processo penal, e por sua característica, é conduzido de maneira criteriosa, em observância de princípios que conferem subsídios para uma efetiva e adequada solução do litígio. Destacam-se a presunção do estado de inocência, o direito à ampla defesa, ao contraditório e a busca pela verdade real dos fatos. 

Pelo princípio da presunção do estado de Inocência ou da não culpabilidade, assegurado constitucionalmente no artigo 5°, inciso LVII, entende-se que até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ninguém será considerado culpado.

Partindo desse preceito, dispõe o artigo 156 do Código de Processo Penal, que é da acusação o encargo de provar, assim como aponta Nereu José Giacomolli:

Incumbe à acusação o encargo de afastar o estado de inocência e não à defesa demonstrá-lo, em todas as dimensões processuais: autoria, existência do delito, suficiência de provas (bastantes, de bastar) a dar suporte a um juízo condenatório, bem como as exigências de determinadas espécies de pena e sua dimensão. (2016, pág. 114). 

Mesmo diante do direcionamento constitucional, alinhado à preceitos já estabelecidos internacionalmente, percebe-se que, especialmente em se tratando de crime sexual, o acusado já ingressa no processo com status de culpado, porque cada vez mais há a valoração e exclusivismo da palavra da vítima, desequilibrando a balança da igualdade das partes, o que dificulta a defesa do réu. 

Assim, somente com elementos suficientes a demonstrar a materialidade e autoria de um ilícito, que o magistrado deve aplicar o jus puniendi e todo seu poder sancionador, declarando a culpabilidade da pessoa do acusado.

Não havendo a convicção da materialidade e autoria ao final do processo penal, outro resultado não se admite senão a absolvição do réu. A garantia do estado de inocência deve prevalecer não somente no curso de um processo, mas em situações como: notícias afirmativas de autoria dos suspeitos e imputação objetiva de maus antecedentes.

O direito à Ampla Defesa, por sua vez, também encontra amparado constitucional, segundo o qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. (BRASIL, 1988).

O Pacto de São José da Costa Rica, no artigo 8º, assegura à defesa do acusado o direito de ser ouvido, de ser assistido por um tradutor ou intérprete se não compreender a língua oficial do juízo, de ser cientificado previamente da acusação, ter tempo para preparar a defesa entre outras proteções. Além dessas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos também assegura em seu artigo XI, item 1, a devida defesa, ampla e plena, por parte da pessoa do acusado.  (BRASIL, 1988)

Também integra o direito de defesa o acesso ao conteúdo da acusação, para saber acerca do fato que lhe está sendo imputado, sob quais circunstâncias, e tudo que se relacione à acusação e seja relevante como estratégia de sua defesa.

O artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal assegura ao preso o direito de ser informado de seus direitos, por isso que ao tomar ciência da denúncia, deve receber junto cópia da peça acusatória. Nesse sentido, a necessidade de ser informado pelo juiz antes de iniciado o interrogatório, o teor da acusação, para assim possibilitar o exercício da defesa pessoal.

Nereu José Giacomolli salienta:

O direito à informação abrange a ciência dos direitos que o suspeito ou o acusado possui, mesmo antes da prática de algum ato processual. Nessa perspectiva, deverá ser cientificado do direito ao silêncio e que não está obrigado a colaborar com a investigação, com a acusação e nem a autoincriminar-se, sempre que o ato de autoridade compelir o sujeito à produção de elementos incriminatórios. (2016, pág. 145)

Além disso, também é direito do acusado ser notificado/intimado para se fazer presente quando da ocorrência de todos os atos processuais, conforme se depreende da redação do artigo 8º, item 2 da CADH, quando faz menção a defesa pessoal na alínea “e” e direito de inquirir testemunhas na alínea “f”.

Igualmente é assegurado nos termos do artigo 185, § 5o, do Código de Processo Penal, a entrevista prévia do acusado com seu defensor.

Para a aplicação efetiva da autodefesa é importante àqueles acusados que desconhecem o idioma ao qual se está processando a denúncia, seja assegurado tradutor em todos os atos, tal como consta do artigo 8º, item 2, alínea “a” da CADH, bem como no 193 do CPP.

O direito à última palavra também é garantia assegurada aos acusados, como consta no artigo 400 do CPP, e somente após toda a colheita de provas é que se faz o interrogatório do acusado, mesmo nos casos onde a lei prevê de modo diverso, como no artigo 57 da Lei de Drogas, n. 11.343/2006, onde tem prevalecido a determinação do Código de Processo Penal, isso porque oferece maior oportunidade de defesa. (BRASIL, 2006)

Constitui ainda direito do acusado, ser defendido tecnicamente em todas as fases processuais por pessoa com capacidade postulatória, escolhido por ele preferencialmente, e somente quando da impossibilidade, é que o Estado nomeia defensor público ou dativo, desde que tenha conhecimento técnico suficiente para atuar no caso. Tal defesa possui caráter obrigatório e de indisponibilidade, isto é, não cabe renúncia, conforme consta da CADH, artigo 8, item 2, alíneas “d” e “e”, bem como no artigo 263 do CPP, diferentemente da defesa pessoal, onde o acusado pode falar ou calar-se. 

Por fim, considera-se de extrema relevância seja mantida a equivalência e paridade entre as partes, de modo que não haja domínio de um sobre o outro, oportunizando em igual a informação, os prazos, direito de prova entre outras prerrogativas, o que nem sempre é possível, porque normalmente a defesa já está em nível inferior à acusação. É o que se nota até mesmo da simples disposição da mesa nos julgamentos do Tribunal do Júri, em que senta ao lado do magistrado o representante do Ministério Público, passando simbolicamente a ideia de lugar de maior confiança e credibilidade, enquanto que a defesa se posiciona em afastado. 

Traduz-se no princípio do Contraditório, a exigência que as provas feitas em sede de inquérito policial sejam confirmadas em juízo, oportunizando a parte contrária se manifestar de todo ato processual e principalmente, se defender, antes de uma decisão judicial, conforme artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Além disso, necessário se faz ainda manter a estrutura piramidal que compõe o juiz, pessoa imparcial, acusação e defesa, para assegurar o equilíbrio da democracia processual.  (BRASIL, 1998)

O pleno e efetivo contraditório não pode se dissociar da publicização de estratégias utilizadas pela parte contrária de modo que se dê total conhecimento sobre todos os fatos e situações necessários a constituição da ampla e plena defesa.

Com a Verdade Real, o magistrado pode determinar ex ofício a produção de provas que sejam necessárias ao processo quando não vierem instruídas nos autos e indispensáveis para formação de sua convicção, é o que se extrai do Art. 156, II, CPP. Ressalte-se que esta possibilidade não fere o princípio da iniciativa das partes uma vez que visa chegar ao propósito final do litígio, que é a própria resolução do conflito. Logo, incumbe ao juiz avaliar se o que está nos autos demonstra com clareza a realidade do fato ocorrido, já que é a quem cabe o julgamento.

Contudo, a certeza necessária para tanto nem sempre ocorre nos processos criminais que versem sobre liberdade sexual, especialmente em razão do fenômeno das falsas memórias que contaminam o depoimento acusante, levando a uma verdade formal, mas não real, e, além disso, normalmente são crimes que acontecem fora do olhar de testemunhas, fazendo que, por esse motivo, se dê um grau de importância elevado às alegações da vítima.

4.     OS INSTRUMENTOS DE PERSECUÇÃO PENAL

Quando se trata de crime cujos vestígios são perceptíveis, indispensável é o exame de corpo de delito para efetiva comprovação da ocorrência do fato, não substituível pela confissão do acusado. Este exame vai atuar tanto na detecção da conjunção carnal como do ato libidinoso, fazendo prova no primeiro caso, conforme observa Marcão e Gentil (2014, p. 115) “a ruptura do hímen, presença de esperma na cavidade”, e no segundo, “vestígios de unhas e dentes, nos seios, mamilos, nas coxas, nos órgãos genitais”. (apud GOMES, 2014, p. 487).

Do mesmo modo, deve-se repetir o exame no suposto acusado buscando eventuais rastros deixado pela vítima numa atitude de legítima defesa. Ao final, é elaborado laudo conclusivo, apontando tudo o que foi constatado.

Ocorre que nem sempre é possível sua realização, caso em que a prática delituosa não deixa vestígio, ou quando este tenha se perdido no tempo. Do mesmo modo que, se tratando de vítima com hímen não rompido, o exame médico-legal não terá muita utilidade. São em situações como essa que se vê a figura do corpo de delito indireto, devido a impossibilidade de ser realizado nos moldes tradicionais, aplicando-se pois o artigo 167 do CPP, o qual dispõe seja a prova pericial suprida pela testemunhal.       

Embora o laudo sirva de base ao julgador, o mesmo não se vincula, podendo decidir conforme sua convicção, se utilizando de outros elementos probatórios anexos a instrução criminal, como o depoimento pessoal da vítima, que tem especial relevância em crimes dessa natureza.

Além da verificação da conjunção carnal ou do ato libidinoso, no caso do estupro, há ainda necessidade de prova da violência porque elementar do tipo penal, vez que sem ela o fato torna-se atípico, logo, não há crime. Tal detecção pode ser constatada a partir de ferimentos na vítima, corroborado nas afirmações da mesma. O que pode ser perigoso tendo em vista se esta estiver mal intencionada, pode provocar uma situação prejudicial na vida do acusado. Isso porque o fato pode não ter acontecido, ou mesmo que tenha, o foi de modo diverso, e nesse caso desvendar as circunstâncias torna-se tarefa de extrema dificuldade, especialmente porque o que a vítima ou suposta vítima disser terá muito mais credibilidade.

No tocante aos crimes sexuais, é razoável considerar que se a vítima, em face do trauma e estresse emocional, se confundir no reconhecimento, imputando a outra pessoa o cometimento do crime; ou, influenciada por sentimento de vingança, seu ou de terceiro, acusar alguém falsamente, especialmente quando criança, as quais são facilmente manipuladas; ter falsas memórias implantadas a partir de entrevistas despreparadas que sugerem afirmações facciosas, ou até mesmo pela influência do tempo que pode vir apagar algumas informações.

São estas algumas hipóteses relacionadas à prática de crime contra a liberdade sexual em que pode ter configurada uma situação onde não há certeza total do ilícito, mas que pela valoração absoluta da verdade da vítima, venham existir condenações indevidas.

Outro instrumento auxiliador do processo penal é a utilização do instituto da prova emprestada, cujos documentos e demais provas produzidas e contidas em outro processo sejam aproveitadas. Tal possibilidade é admissível em consonância com o princípio da verdade real, e até mesmo pela economicidade e agilidade da ação. Contudo, requer seja oportunizado o direito de defesa.

Quanto ao meio fraudulento, característico do crime de violação mediante fraude, pode servir de prova a oral, obviamente, e ainda a documental, caso do parágrafo único que prevê a vantagem econômica, onde um bilhete, por exemplo, com mensagem de conteúdo ilusório ou trapaceiro pode ser eficiente na conduta delituosa de enganar a vítima e com isso alcançar o objetivo fim do crime, qual seja a satisfação de sua lascívia. O sujeito pode ainda ingerir alguma substância entorpecente, a qual pode ser detectável em exame toxicológico.

Ressalte-se que o direito penal brasileiro não aceita provas obtidas por meios ilícitos nem tampouco as derivadas dela. Logo, se não há elementos dentro do conjunto probante suficientes a concluir pela ocorrência do fato, a absolvição é a medida aplicável.

5.     A BUSCA DA VERDADE REAL E OS MEIOS INVESTIGATÓRIOS

Quando um conflito é levado à apreciação jurisdicional, busca-se uma solução, uma saída que possibilite um desfecho que verdadeiramente ponha fim ao caso. Mas para que se alcance tal objetivo, um longo caminho é percorrido a fim de se conhecer os fatos, produzir as provas necessárias a formar, no intelecto do julgador, o sentimento de certeza fundamental aos esclarecimentos das circunstâncias do crime, e então se construir a verdade processual.

A regra é a prova produzida pelas partes. Porém, para descobrir essa verdade, pode o juiz lançar mão do que lhe foi apresentado e solicitar as suas próprias. Se uma testemunha que tenha, por exemplo, presenciado o fato, falte à audiência e tanto acusação quanto defesa dispensem sua oitiva, não está o juiz obrigado a homologar este ato, ainda que de comum acordo entre as partes, isso porque seu convencimento é livre e a missão de fazer justiça cabe principalmente a ele. Portanto, ouvir essa testemunha seria de fundamental importância para a resolução do caso, sob pena de contribuir para a impunidade.

Por isso, desvendar a realidade fática do passado não é tarefa simplória, só sendo possível se reconstituído por meio das provas, as quais subsidiam o convencimento do magistrado e seu parecer sobre a causa. O livre convencimento, contudo, não se confunde com arbitrariedade, pois sua decisão passeia sobre a denúncia e demais formalidades processuais que não pode o juiz deixar de observar.

Uma questão difícil de se administrar ou filtrar na busca dessa verdade, são as informações falaciosas empregadas tanto pelas partes quanto pelas testemunhas. Situação que pode ser descrita através de entrevista na obra de Mendes (2010, p. 336) da seguinte forma:

Então, o comportamento, a postura da testemunha, a leitura do corpo dela, do gesto dela, do olhar dela, estes são elementos fundamentais. Você sabe que uma pessoa está mentindo quando ela não consegue fixar os olhos na sua direção, pisca muito, coça a testa, encurva o tórax para frente. A mentira é perceptível porque nós somos animais. Animal acuado tem uma reação e é uma reação universal isto é arquetípico. Então quando a pessoa senta na sua frente e começa a falar... a não ser que você esteja diante de um quadro de psicopatia, que aí vai fugir um pouco da minha capacidade de distinguir, mas dentro de uma regra geral de comportamento é possível sim identificar quando uma pessoa está mentindo ou não. E aí começa a filtragem, por isso que, em minha opinião, e aí fazemos uma digressão, o contato pessoal do juiz com a testemunha e a identidade física que não existe em um processo penal, são fundamentais.

Nesse sentido, o princípio da presunção de inocência, garantido constitucionalmente, fica prejudicado, visto que atua o juiz no sentido de se prevenir de uma mentira, o que faz com que todos os depoimentos e interrogatórios sejam tidos como presumidamente inverídicos, até mesmo porque mentir em juízo é uma possibilidade admitida pelo ordenamento já que ninguém está obrigado produzir prova contra si.

Para Salah (2013), a verdade não é encontrada, mas produzida por meio dos rastros da passeidade que fornecem elementos para a convicção do juiz que a exterioriza através da narrativa textual da sentença.

O ponto de partida é dado pelas evidências introduzidas pelas partes no processo, e que posteriormente, deve ser confirmada como uma prova. Essa atividade probatória não tem por finalidade a configuração absoluta da verdade, mas sim o de convencer o juiz de rastros analógicos do passado, o que deve ser feito por um processo de transformação da evidência em prova, o que garante um alto grau de correção e diminui a chances de erros judiciários.

6.     O VALOR PROBATÓRIO E AS EVIDÊNCIAS DE UM CRIME SEXUAL

Em decorrência da própria essência criminal relativa aos delitos sexuais, nota-se que são de difícil comprovação, uma vez que as provas, quando deixam vestígios, desaparecem rapidamente de modo que no curso da instrução criminal quase nunca é possível refazê-las, tendo de se utilizar daquelas produzidas em sede de inquérito policial. Ocorre que nesta fase ainda prevalece o sistema inquisitivo.

Por esse motivo a prova testemunhal confere papel relevante, pois na falta ou na impossibilidade de se realizar perícia médico-legal, pode ser substituída. Porém, outro dilema se faz presente, o de existir testemunhas que tenham presenciado o fato ou que saiba de qualquer circunstância a respeito do mesmo, tendo em vista que tais crimes, como regra, ocorrem de maneira reservada.

Tomando como exemplo o crime de estupro - artigo 213 do CPB, embora se trate de crime material, tem como adversário quase imbatível o tempo, pois embora seja possível a realização de exame idôneo à comprovação do fato, existe denúncia após anos da ocorrência do delito, o que impede a prova do ato sexual bem como da violência ou resistência da vítima, elementos fundamentais à caracterização do crime.

Logo, as evidências da materialidade ficam comprometidas, e então como ser possível apontar a autoria deste delito? Seria suficiente levar em consideração única e exclusivamente a palavra dessa suposta vítima?

Salienta NUCCI (2016, p.431) que:

a palavra isolada da vítima, sem testemunhas a confirmá-la, pode dar margem à condenação do réu, desde que resistente e firme, harmônica com as demais circunstâncias colhidas ao longo da instrução.

Nesse sentido tem entendido o Superior Tribunal de Justiça - STJ, ser possível a hipótese, desde que corroborado por outros elementos probatórios. O problema continua quando não há outros elementos e a sede de se fazer justiça leve o julgador em erro.

Da mesma forma, explana Dias e Joaquim (2013, p. 299) :

Todos compreendem que todos estes detalhes, por falta de calma na observação, não podem ser exatamente percebidos no momento do delito e, por isso, as semelhanças podem facilmente converter-se em identidade, aos olhos do ofendido e seu engano nos reconhecimentos pode levar a justiça penal a deploráveis erros. (apud Malatesta, 2003, p. 435).

Do mesmo modo se verifica a questão quando se trata do crime de violação sexual mediante fraude, pois a lei não deixa claro o que seria esse fenômeno. Embora se saiba conceitualmente que fraude exprime um estado de enganação, é relativo demais definir o que pode ser capaz de ludibriar alguém, uma vez que o grau de instrução do sujeito passivo afeta diretamente a forma como esta pessoa irá enfrentar a situação, e se consequentemente irá permitir ser enganada ou não.

CONCLUSÃO

No que diz respeito aos crimes sexuais, e nos processos penais instaurados a partir da sua acusação, há casos onde não há certeza total da materialidade e/ou da autoria do ilícito. Sendo assim, admitindo-se a valoração absoluta da verdade da vítima, há a concreta possibilidade de se obter condenações injustas.

Tem-se que se ter tais situações como excepcionais, considerando a gravidade da conduta, o dano social e a irreparabilidade estatal na hipótese da efetivação de erro condenatório para crimes desta natureza.

O Estado figura como próprio ofensor, quando, por meio do judiciário, se utiliza de frágeis evidências, e se apega ao protocolo processual e regras formais insuficientes à obtenção da verdade real, produzindo julgamentos equivocados, e comprometendo a existência digna de um ser humano.

Ao chegar no ambiente prisional, este mesmo sujeito convive com a pressão moral e física, corriqueiramente submetido à violência e humilhações decorrentes da natureza do crime que lhe fora imputado.

Certamente os desafios probatórios suportados pelo sistema de justiça não deixarão de existir em curto prazo, e a partir de iniciativas isoladas, mas cabe ao legislador a busca de uma solução, pois, apesar da repugnância destes tipos penais, sabe-se que a pessoa do acusado também é sujeito titular de direitos e garantias, os quais devem devidamente serem aplicados por meio de um contraditório equilibrado e dentro do aspecto constitucional.

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Data da conclusão/última revisão: 15/4/2019

 

Como citar o texto:

PEREIRA, Kelly Lorrany Silva; CHAVES, Fábio Barbosa..Crimes sexuais: os desafios da persecução penal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1618. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/4398/crimes-sexuais-os-desafios-persecucao-penal. Acesso em 5 mai. 2019.

Importante:

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