O tribunal do júri é reconhecidamente a instituição democrática integrante de qualquer Estado que se pretenda denominar por “democrático de direito”, ante a sua paridade de julgamento, eis que expõe o acusado a julgamento por seus próprios pares, dispensando-se formalidades de ordem técnica em sua condenação e/ou absolvição, incutindo nos julgadores a atribuição de “leigos”.

Quem nunca se aguilhoou ao assistir os julgamentos cinematográficos típicos de filmes americanos, que atire a primeira pedra. Os causídicos entusiasmados no embate na porfia dos argumentos, os jurados amontoados no canto do salão, em silêncio e atentos aos argumentos perfilhados pelas partes. Brados de ordem percutidos pelo ambiente que carinhosamente o ordenamento denominou de “plenário”, substantivo que denota a completude do que se denomina.

Em toda a genealogia a instituição do júri foi alvo de severas críticas, alguns até pugnando por sua inconstitucionalidade ante a ausência de fundamentação das decisões proferidas pelos juízes leigos que compõe o conselho de sentença. Ainda hoje o tema é tratado com divergências jurisprudenciais e debates doutrinários acerca da legitimidade das decisões proferidas e de sua ocasional contrariedade à prova presente nos autos, o que nos traz ao tema proposto.

Conforme impera a codificação processual penal, a decisão do conselho de sentença será guiada por quesitos formulados aos jurados, previstos no Art.483 do Código de Processo Penal, os quais deverão responder com “sim” ou “não”, de acordo com sua convicção extraída das provas produzidas em plenário, nos limites previstos nos parágrafos do mesmo dispositivo e sem necessidade de fundamentação técnica, corolário do sistema da íntima convicção, conforme exaustivamente tratado na doutrina.

Entretanto, sabendo-se que para a propositura da ação penal faz-se necessário a presença de elementos de autoria e materialidade, os quais processualmente cunhou-se chamar de “justa causa para propositura da ação penal”, o legislador exigiu que estes elementos fossem comprovados no curso da instrução processual para que se condene o réu, instituindo que este poderá ser absolvido em caso de ausência de qualquer dos elementos mencionados, conforme redação do Art.386/CPP.

Desta forma, o mesmo aplica-se ao julgamento proferido pelo conselho de sentença, o qual não poderá condenar o acusado na hipótese da resposta aos quesitos “autoria” e “materialidade” por ao menos quatro jurados resultar negativa para qualquer um destes, conforme §1º do Art.483, in verbis:

Art. 483.  Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:

I – a materialidade do fato;          

II – a autoria ou participação;

(...)

§ 1o  A resposta negativa, de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado.

Sendo assim, na hipótese de resposta afirmativa aos primeiros dois quesitos formulados, deverá prosseguir-se a formulação do que se denominou “quesito genérico de absolvição”, insculpido no §2º do dispositivo retro colacionado, o qual diz:

§ 2o  Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação:          

O jurado absolve o acusado?

Ao responder o quesito genérico pontuado, o conselho de sentença poderá absolver o réu independentemente do reconhecimento de autoria e materialidade do delito, a que se denominou “absolvição por clemência”, verificando-se a fuga das hipóteses de absolvição insculpidas no Art.386 e de todo o ordenamento penal, decidindo o jurado com base tão somente em sua íntima convicção.

Entende-se que o legislador, ao inserir o quesito genérico de absolvição, deu aos jurados uma chance de absolvição por quesitos humanitários, desprendidos do caráter técnico com que se apregoa os julgamentos criminais fora da esfera do tribunal do júri.

Neste ponto insurgem-se diversas instituições no tocante a possibilidade de os jurados decidirem de forma contrária a prova dos autos, com base no quesito genérico de absolvição. Isto é: há provas do cometimento do delito e há provas de autoria, seria permitido a os juízes leigos absolverem o réu? Caso positivo, poderia o parquet se insurgir a esta absolvição, alegando contrariedade a prova dos autos e postulando por novo julgamento?

Nesta seara, o Superior Tribunal de Justiça adotou recente entendimento, contrariando o adotado no HC 313.251/RJ, em que a corte entendeu que o quesito é de formulação obrigatória, estando autorizada a absolvição por íntima convicção dos jurados e permitindo o recurso de apelação fundado na contrariedade à prova dos autos ante o reconhecimento da autoria e materialidade, devendo o parquet demonstrar a dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. [1]

A controvérsia da decisão proferida girava em torno da decisão paradoxal de se permitir recurso fundado no controle do respaldo fático-probatório da decisão baseada no quesito absolutório genérico. É dizer, se o jurado decidiu de acordo com sua íntima convicção, observando princípios como o sigilo das votações, não seria possível apreciar a incompatibilidade da decisão com os elementos fáticos presentes nos autos, resultando o desconhecimento do recurso de apelação proposto.

Neste diapasão, no RHC 117.076/PR, julgado em 01/08/19, o STJ entendeu que a decisão proferida em resposta ao quesito genérico de absolvição não se submete ao acervo probatório produzido no curso da ação penal, inferência do sistema de íntima convicção dos jurados, os desvinculando de critérios de legalidade estrita, diferentemente dos juízes togados.

Segue ementa do acórdão:

   “RECURSO ORDINÁRIO EM “HABEAS CORPUS”. TRIBUNAL DO JÚRI. QUESITO GENÉRICO DE ABSOLVIÇÃO (ART. 483, INCISO III, ERESPECTIVO§2º, DO CPP). INTERPOSIÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DO RECURSO DE APELAÇÃO PREVISTO NO ART. 593, INCISO III, ALÍNEA “D”, DO CPP. DESCABIMENTO. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.

   –A previsão normativa do quesito genérico de absolvição no procedimento penal do júri (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º), formulada com o objetivo de conferir preeminência à plenitude de defesa, à soberania do pronunciamento do Conselho de Sentença e ao postulado da liberdade de íntima convicção dos jurados, legitima a possibilidade de os jurados – que não estão vinculados a critérios de legalidade estrita – absolverem o réu segundo razões de índole eminentemente subjetiva ou de natureza destacadamente meta jurídica, como, p. ex., o juízo de clemência, ou de equidade, ou de caráter humanitário, eis que o sistema de íntima convicção dos jurados não os submete ao acervo probatório produzido ao longo do processo penal de conhecimento, inclusive à prova testemunhal realizada perante o próprio plenário do júri. Doutrina e jurisprudência.

   – Isso significa, portanto, que a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com aprova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”), caso admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (CF, art. 93, IX) – a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF, art. 5º, XXXVIII, “b”), daí resultando a incognoscibilidade da apelação interposta pelo “Parquet”.

   Magistério doutrinário e jurisprudencial.” [2]

Desta forma a Corte da Cidadania determinou o arriscado entendimento de que os princípios fundadores do Tribunal do Júri autorizam a decisão contrária a prova dos autos, inadmitindo apelação fundada neste quesito.

Aspiramos válida a discussão sobre o entendimento esposado, visto que a cognição exarada pela Corte Superior tira da mão dos atores processuais o recurso de apelação fundado no Art.593, inciso III, alínea “b”.

Ora, da leitura do acórdão fácil se extrai que não será admitido recurso de apelação arguindo que a decisão absolutória com base no quesito genérico de absolvição está divorciada da prova dos autos, pelas razões até aqui apresentadas.

Contudo, em momento anterior a formulação do quesito genérico, o §2º do Art.483, anteriormente apreciado, versa que nem ao menos se chegará ao quesito genérico em caso de deliberação negativa no tocante a autoria e/ou materialidade, logo, é razoável concluir a subtração de hipóteses em que se poderá vislumbrar a interposição do recurso de apelação com base na alínea “b” do inciso III do Art.593 em qualquer das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, absolutórias ou não.

Ante o exposto, esposamos o entendimento de que tal decisão desafia importante instrumento recursal que, apesar de proferida no contexto do Ministério Público, dá margem a aplicação aos recursos interpostos pela defesa, podendo, inclusive, maquinar prejuízos à ampla defesa, por supressão da hipótese recursal decorrente do entendimento jurisprudencial.

Noutra vertente, tal decisão aloca demasiada soberania aos jurados, por autorizar decisões apartadas dos elementos balizadores da busca da verdade real, e impedindo que a parte prejudicada se insurja à decisão. Dado o exposto, notamos considerável retrocesso em comparação a decisão pretérita, emanada da mesma corte.

Ressalta-se que o mencionado recurso sofreu interposição de Agravo Regimental 08/08/19, pendente de recebimento e apreciação.

Referencias:

[1] HC 313.251/RJ, relatoria do Ministro Maria Thereza De Assis Moura.

[2] RHC 117.076/PR, relatoria do Ministro Celso de Mello.

Data da conclusão/última revisão: 15/8/2019

 

Como citar o texto:

SILVA JÚNIOR, Leonardo de Tajaribe Ribeiro Henrique da..Quesito absolutório genérico e contrariedade à prova dos autos. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1646. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/4507/quesito-absolutorio-generico-contrariedade-prova-autos. Acesso em 26 ago. 2019.

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