Resumo

O presente artigo tem como foco o tráfico de pessoas sob o ângulo dos esforços na prevenção e eliminação dessa prática, apontando alguns aspectos que norteiam a atual discussão, ou seja, o delito tem diversas finalidades, todas envolvendo violações de direitos humanos. Ele pode estar ligado à superexploração do trabalho rural, urbano e doméstico, à escravidão contemporânea, ao comércio de órgãos, aos casamentos forçados e à adoção ilegal de crianças, por exemplo. Entretanto, a forma de exploração mais comum é a sexual. A metodologia adotada foi uma pesquisa de nível descritivo, utilizando como meios de investigação a pesquisa bibliográfica e documental. Os resultados obtidos mostram a importância de integrar as pessoas vulneráveis a políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas, com a concentração de esforços na conscientização e repressão dessa modalidade de crime organizado.

Palavras-Chave: Tráfico de Pessoas, Direitos Humanos e Exploração Sexual.

Introdução

A normativa internacional mais utilizada para caracterizar o tráfico de pessoas foi assinada na cidade de Palermo, Itália, em 2000. Este instrumento propõe aos países aderentes internalizarem seus preceitos, estimulando a elaboração de leis internas e de políticas públicas de prevenção. Desse modo, o tráfico significa de acordo com o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (também conhecido como Protocolo de Palermo):

“O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”[i].

O Brasil ratificou o Protocolo de Palermo em 2004, e a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas formulada em 2006, adotou a mesma definição. Uma das principais características do tráfico de pessoas é a violação dos direitos fundamentais da pessoa humana, visto que as pessoas traficadas são privadas de sua dignidade, sofrendo privação de liberdade, exploração e violência. Alguns autores apontam elementos de ordem política, econômica, social e cultural como fatores que corroboram para captação de mulheres para o tráfico de pessoas. Essa prática criminosa fere a dignidade da pessoa humana, garantia constitucional prevista na Constituição Federal Brasileira de 1988.

Este trabalho tem por objeto de estudo os desafios para o enfrentamento do tráfico de pessoas. Nesse sentido, o problema da pesquisa foi formulado visando entender: “Como o crime organizado atua e quais os meios utilizados para atrair vítimas?”.

Assim, a pesquisa buscou: descrever o modo de operação das organizações criminosas; apontar o perfil das vítimas e verificar os objetivos dos traficantes de pessoas.

O interesse pelo tema ocorreu a partir do conhecimento de estatísticas elevadas de vítimas dessas organizações criminosas. Dessa forma, despertou-se a curiosidade de verificar as dificuldades enfrentadas pelo Estado para o enfrentamento, prevenção e eliminação do tráfico de pessoas, objetivando uma reflexão crítica de um problema social relevante.

Método ou Formalismo

A presente proposta caracteriza-se como uma pesquisa de nível descritivo, buscando compreender o tema proposto a partir de uma visão dialética da realidade. Para tanto, a metodologia utilizada como meios de investigação foi à pesquisa bibliográfica e documental.  Nesse aspecto, o modo como foi escolhido o fenômeno a ser pesquisado deveu-se a repercussão nacional e internacional do tema, visto que o tráfico de pessoas é um dos maiores problemas enfrentados na sociedade de hoje e representa um tema relevante para o Brasil, por sua incidência dentro do território nacional. Desse modo, a proposta deste estudo é fomentar uma reflexão sobre o tráfico de pessoas, adentrando a problemática do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Trata-se de uma temática complexa e pouco debatida, entretanto, de grande relevância.

Resultados e Discussões

O tráfico de pessoas é uma forma moderna de escravidão. E suas vítimas têm um perfil comum, a despeito das formas de exploração serem diferentes. De acordo com a Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil o tráfico de pessoas para fins sexuais é, predominantemente, de mulheres e adolescentes, afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 anos (PESTRAF, 2002, p. 55). Em geral, são jovens, de baixa renda, vivendo em precárias condições habitacionais, com pouca escolaridade, que começaram a trabalhar cedo e migram porque não têm condições de sobrevivência digna em seus lugares de origem. Essas múltiplas carências e o desejo de uma vida melhor as torna alvos fáceis dos criminosos. Por isso, costuma-se dizer que acabaram traficadas porque estavam vulneráveis, ou seja, em uma situação social, econômica e educacional que as privou de opções sólidas de emprego.

Nesse contexto, o modo de operação do crime organizado passa pela captação das vítimas, transporte e acolhimento nos locais de destino. Para tanto, as organizações criminosas atuam em diversos locais, tais como academias, agências de modelos, bares e restaurantes, buscando pessoas em potencial. Depois de localizar um alvo, o aliciador utiliza todas as formas para convencê-la da grande oportunidade ofertada. E diante das precariedades e da luta diária pela sobrevivência, essas mulheres acabam aceitando propostas que “caem do céu”, sem fazer muitos questionamentos ou buscar garantias.

Muitas pessoas caem na rede do tráfico de pessoas a partir de propostas totalmente enganosas de emprego e condições de vida no local de destino. A figura do aliciador, o qual é um dos agentes integrantes do tráfico de pessoas, é de fundamental importância para o recrutamento de pessoas, este desempenha a função de utilizar os mais diversos artifícios para convencer a vítima. Dentre as propostas mais comuns apontadas estão as promessas de uma vida melhor em outro país ou região, casamento, fama, viagens, carreira de modelo, entre outras.

Outro ponto importante a ser citado são as dívidas até então desconhecidas pela pessoa, no local de desembarque, a mesma toma ciência das custas da viagem, bem como de outras taxas que devem ser pagas. Logo, o passaporte e qualquer documento de identificação são retidos, restringindo o direito de ir e vir da pessoa.

Durante o período de cativeiro essas pessoas sofrem diversos tipos de ameaças, abusos e exploração. Portanto, vendo-se acuada, não dominando o idioma local, temendo ser presa diante da ilegalidade da sua situação no país, bem como a ausência de documentação, as vítimas sujeitam-se as exigências dos algozes, tem seu corpo explorado e somente quando quitam suas dívidas podem ser livres novamente.

É importante salientar que o Protocolo Adicional relativo ao Tráfico de Pessoas protege até as pessoas que deram seu consentimento e foram de livre e espontânea vontade, pois o consentimento da vítima será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer forma de ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, ou seja, se houver emprego de qualquer um dos meios referidos no Art. 3º, alínea “a”. No Brasil, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas vai além e considera o consentimento dado pela vítima irrelevante em todos os casos, independente dos meios utilizados.

Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho – OIT, quase 1 milhão de pessoas são traficadas no mundo anualmente com a finalidade de exploração sexual, sendo que 98% são mulheres. O tráfico chega a movimentar 32 bilhões de dólares por ano, sendo apontado como uma das atividades criminosas mais lucrativas.

O objetivo dos criminosos é a exploração do trabalho para obtenção de lucro. Assim, as organizações criminosas usam técnicas de logística, marketing e fazem uso da tecnologia para obter melhores resultados. De acordo com o Professor Damásio de Jesus[ii], fundamentado em dados da Organização para o Controle de Drogas e Prevenção do Crime, o tráfico de pessoas ocuparia o terceiro lugar na escala de valores da economia criminosa, ficando atrás apenas do tráfico de drogas e contrabando de armas.

De modo geral, essa conduta delituosa possui alta rentabilidade e baixa visibilidade, visto que algumas pessoas ao retornarem dessa situação de exploração, isolam-se e preferem não falar com ninguém, ou seja, nem com a polícia ou redes de enfrentamento, pois evitam recordar as situações vexatórias as quais foram submetidas, bem como não querem ser estigmatizadas nas comunidades onde residem, temendo rejeição da família e da comunidade. Outras preferem não tocar no assunto e algumas fantasiam para disfarçar os dissabores vividos na exploração. Dependendo do tempo a que essas pessoas são submetidas à exploração, como foram de sobrevivência, acabam desenvolvendo relações afetivas e de colaboração com os exploradores. Há casos em que as vítimas tornam-se potenciais aliciadores, dirigindo-se a suas cidades de origem e recrutando jovens com promessas lucrativas.

Conforme Hazeu (2007), não diferente do contexto global, a região amazônica, por exemplo, sofre, desde a época da borracha até os dias de hoje, da lógica dos modelos de desenvolvimento econômico (extração e exploração dos recursos naturais, grandes projetos de energia e de infraestrutura) e de políticas de segurança nacional. No decorrer de cada plano de investimento, traficantes se organizavam para aproveitar da necessidade de deslocamento de homens e mulheres, a maioria proveniente de famílias pobres, massacradas pela seca, conflitos de terra e péssimas condições de vida em outras regiões do país. Instalou-se a lógica do aviamento, do trabalho escravo e do tráfico de pessoas. Cada incentivo e investimento para mineração, extração de minérios, madeira ou outros produtos da floresta, abertura de estradas, hidrelétricas, etc., de certa forma, tornou-se uma “política pública de incentivo ao tráfico de pessoas”.

Segundo a linha de raciocínio de Pimentel e Oliveira (2007), Manaus é apontada como rota do tráfico de mulheres levadas para a prostituição. Essa “rota” é viabilizada pela inexistência e/ou fragilidade de fiscalização por parte das polícias Federal e Rodoviária Federal, não impondo assim grandes dificuldades para os traficantes e aliciadores que buscam transpor a fronteira norte do país para alcançar, especialmente, as áreas de garimpo da Venezuela e da República Cooperativista da Guiana. E como consequência dessas fragilidades o relatório da PESTRAF (2002), apontou a BR-174 como rota internacional do tráfico de pessoas, as quais partem de Manaus para chegar à Venezuela, visando atingir a Europa.

Considerações Finais

A questão do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, tal como apresentada no decorrer desse artigo, aponta diversos fatores que colaboram para a captação das pessoas pelas organizações criminosas, bem como as formas de atuação dos traficantes no contexto local e global. Essa abordagem se fez necessária devido a atual dimensão assumida pelos problemas da exploração de pessoas, objetivando apenas o lucro.

Desse modo, verifica-se a importância de integrar as populações vulneráveis, tendo como ponto de partida uma revisão na maneira do gestor público pensar, planejar e executar políticas públicas. Sendo assim, cabe à gestão pública criar mecanismos mais eficazes que ampliem a divulgação de campanhas que esclareçam sobre os riscos, prejuízos e traumas para as possíveis vítimas. Em outras palavras, as campanhas de prevenção e conscientização sobre o tema são as principais ferramentas disponíveis para ampliar o conhecimento do que se trata essa conduta delituosa.

Um ponto fundamental passa pela capacitação de instituições públicas e privadas, operadores do direito, funcionários públicos, organizações não governamentais e a sociedade civil em geral, para combater esse crime. E outro desafio apresentado aos gestores da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas, aponta a ausência de fiscalização dos órgãos competentes e grande extensão territorial do nosso país, o que dificulta sobremaneira o combate ao tráfico. Portanto, trata-se de um tema complexo e de múltiplas variáveis, e somente com planejamento e uma abordagem sistêmica pode ser superado.

Enfim, para esse tema muitas considerações ainda podem ser tecidas. O que aqui se apresenta pretende ser apenas um ponto de partida para novos questionamentos; para a formulação de novas e promissoras alternativas de melhor abordar a questão do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 2014. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao. Acesso em: 30 abril. 2019.

______. Decreto Nº 5.948, de 26 de outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP.

HAZEU, Marcel. Políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas: a quem interessa enfrentar o tráfico de pessoas? In: Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Secretaria Nacional de Justiça. — 2ª. ed. — Brasília: SNJ, 2007.

LEAL, Maria de Lúcia e Maria de Fátima (organizadores). Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil – PESTRAF. (Relatório nacional). Brasília: Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes - CECRIA, 2002. Disponível em: http://www.cecria.org.br/pub/livro_pestraf_portugues.pdf. Acesso em: 22 nov. 2014.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA – Relatório Anual sobre o Tráfico de Pessoas no Brasil. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/traficodepessoas. Acesso em: 18 out. 2014

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. 21 milhões de pessoas são vítimas de trabalho forçado no mundo. Publicado no site: OIT - Organização Internacional do Trabalho - Escritório no Brasil. Disponível em: http://www.oit.org.br. Acesso em 25 nov. 2014.

______. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. 2a edição. Brasília: Secretaria Internacional do Trabalho, 2006.

PIMENTEL, Geyza Alves e OLIVEIRA, Rafael. Tráfico de mulheres para fins de exploração sexual comercial na fronteira Brasil-Venezuela: o caso da BR-174. In: Tráfico de Pessoas e Violência sexual / Organizado pelo Grupo de Pesquisa sobre Violência, Exploração Sexual e Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes – VIOLES/SER/Universidade de Brasília. Brasília, 2007.

PLANO NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS. Secretaria Nacional de Justiça. Brasília: SNJ, 2008.

REVISTA CONSULTOR JURÍDICO, 25 de fevereiro de 2003. Tráfico de Mulheres. http://www.conjur.com.br/2003-fev-25/professor_chama_atencao_revisao_legislacao

TERESI, Verônica Maria. Guia de referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, 2012.

[i] Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, promulgado no Brasil pelo Decreto nº. 5.017, de 12 de março de 2004.

[ii] Revista Consultor Jurídico

Data da conclusão/última revisão: 24/9/2019

 

Como citar o texto:

GUIMARÃES, Vanessa Ibiapina Lopes; NEGRÃO, Armando de Souza..Tráfico de pessoas: Desafios para o enfrentamento na cidade de Manaus/AM. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1655. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direitos-humanos/4556/trafico-pessoas-desafios-enfrentamento-cidade-manausam. Acesso em 30 set. 2019.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.