Com o aumento da ânsia pela punibilidade por parte dos atores sociais, sobretudo aqueles de classes mais baixas, os quais detém maior contato com a “criminalidade comum”, a consequência natural é o direito penal de emergência como “reação” penal a condutas delituosas contemporâneas, causando o surgimento de normas que visam coibir fenômenos criminosos que geram efeitos notáveis no momento em que as normas estão em desenvolvimento.

Pode-se mencionar como exemplo de tal fenômeno penal a promulgação do popularmente denominado “Estatuto do Desarmamento”, alcunha que encontra origem no desejo governamental de desarmar a população, numa estéril tentativa de coibir os crimes cometidos com o emprego de armas de fogo com a retirada destas da população.

Desta forma, além das campanhas do desarmamento, ocorridas por volta dos anos de 2003 e vigentes até a atualidade, os cidadãos que tivessem sob sua posse armas de fogo, poderiam entrega-las aos órgãos governamentais mediante contraprestação.

Além disso, o Estatuto do Desarmamento, Lei nº 10.826/03, criou também tipos penais que visam coibir a posse e porte ilegal de armas de fogo de uso permitido ou restrito, expostos em seus arts.12 ao 18, passando por condutas de posse de arma de fogo até o comércio ilegal destas, e atribuindo ao SINARM o controle de tais mecanismos de defesa e combate.

Dentre os tipos penais, está o porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, in verbis:

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

O ordenamento brasileiro entende como “de uso restrito” as armas que só podem ser utilizadas pelas Forças Armadas, por algumas instituições de segurança, e por pessoas físicas e jurídicas habilitadas pelo SINARM, expostas no Decreto nº3.665/00, em seu Art.16, o qual impõe que serão consideras de uso restrito os calibres:

Art. 16. São de uso restrito:

(...)

III - armas de fogo curtas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, energia superior a (trezentas líbras-pé ou quatrocentos e sete Joules e suas munições, como por exemplo, os calibres .357 Magnum, 9 Luger, .38 Super Auto, .40 S&W, .44 SPL, .44 Magnum, .45 Colt e .45 Auto;

IV - armas de fogo longas raiadas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, energia superior a mil líbras-pé ou mil trezentos e cinqüenta e cinco Joules e suas munições, como por exemplo, .22-250, .223 Remington, .243 Winchester, .270 Winchester, 7 Mauser, .30-06, .308 Winchester, 7,62 x 39, .357 Magnum, .375 Winchester e .44 Magnum;

(...)”

Desta forma, da leitura dos dispositivos legais retro mencionados conclui-se que a lei em comento não pune somente o porte da arma de fogo, mas também o porte de munições e demais acessórios sem autorização e em desacordo com determinação legal.

Portanto, poder-se-ia concluir que o simples fato de portar algumas munições de pistola calibre .45 causaria um contexto fático adequado para que o agente tivesse contra si imputada a prática do delito de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, o qual, de acordo com a nova normativa da lei 8.072/90, é considerado crime hediondo, merecendo maior reprovação e maior rigor judiciário quanto a progressão de regime e demais institutos processuais e executórios da pena.

Ante o mencionado exemplo, o STF havia decidido, em 2017, no HC nº 143.449, que o porte de munição de uso permitido, desacompanhada de arma de fogo, e em pequena quantidade, merece o reconhecimento da atipicidade material, ou bagatela, pois não se vislumbra nesta hipótese uma situação em que se coloca em risco o “corpo social”. Segue ementa da decisão:

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL.ART. 12 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO (LEI 10.826/2003). POSSE IRREGULAR DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO. AUSÊNCIA DE OFENSIVIDADE DA CONDUTA AO BEM JURÍDICO TUTELADO.ATIPICIDADE DOS FATOS. RECURSO PROVIDO.

I – Recorrente que guardava no interior de sua residência uma munição de uso permitido, calibre 22.

II – Conduta formalmente típica, nos termos do art. 12 da Lei10.826/2003.

III – Inexistência de potencialidade lesiva da munição apreendida, desacompanhada de arma de fogo. Atipicidade material dos fatos.

IV – Recurso provido para determinar o trancamento da ação penal em relação ao delito descrito no art. 12 da Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento)”

Adiante, no mesmo ano, em data próxima, a Corte Suprema teve a oportunidade de ser levada a sua apreciação, no HC nº 149.450, a conduta de agente que detinha sob sua posse munição de fuzil, considerada de uso restrito, adotando igualmente a tese da atipicidade material, ante a baixa lesividade da conduta, visto que a munição estava desacompanhada de arma de fogo compatível com a sua utilização.

Logo, ressaltou a Corte que a munição não se tratava nem se quer de um material real, mas tão somente uma munição de festim, não dando causa a instauração de um estado de perigo relevante, apesar dos crimes em comento constituírem-se em tipos de perigo abstrato, isto é, independem da configuração de um perigo concreto, efetivo e real ao “corpo social”.

Segue ementa do acórdão:

“Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003). Posse de munição de uso restrito (art. 16) desacompanhada de arma de fogo compatível com a sua utilização (fuzil). Constatação pericial de que referida munição constituía simples festim. Princípio da ofensividade Direito Penal. “Nullum crimen sine injuria”. O debate em torno dos crimes de perigo abstrato. Doutrina. Comportamento do agente que não caracterizou, no caso, situação de perigo concreto. Fundamento suficiente para a concessão da ordem de “habeas corpus”. Existência, no entanto, de entendimento desta Corte diverso em tema de crimes de perigo abstrato. Princípios da fragmentariedade e da intervenção mínima do Direito Penal. Incidência, na espécie, do postulado da insignificância, que se qualifica como causa supra legal de exclusão da tipicidade penal em sua dimensão material. Precedentes do Supremo Tribunal Federal, inclusive em matéria concernente ao Estatuto do Desarmamento. “Habeas corpus” não conhecido. Ordem concedida “ex officio”. Consequente absolvição penal do paciente (CPP, art. 386, III).”

Apesar do óbvio, imperioso se faz ressaltar que, tendo em vista o caráter muitas das vezes subjetivo dos agentes operadores do direito, determinadas situações, apesar de materialmente irrelevantes, poderão ocasionar motivos determinantes suficientes para interpretações tendentes à tipificação dos crimes aqui discutidos.

É o caso, por exemplo, do agente que é encontrado dentro de uma residência em localidade dominada por facções criminosas, com cômodo repleto de munições de armas de fogo de uso restrito como pistolas e fuzis, apesar de desacompanhadas das armas de fogo equivalentes ao seu uso.

Referida conjuntura poderia afastar, com razoável grau de certeza, a aplicação do princípio da insignificância ou atipicidade material, eis que resulta na concessão de grande margem para o entendimento de que o agente estaria praticando condutas diversas do simples porte de munição, como o comércio ilegal destas.

Ante todo o exposto, logramos concluir que o porte ou posse de munição, entendido este como “intramuros” (dentro da residência do agente ou de seu local de trabalho) e aquele como “extramuros” (fora de sua residência ou de seu local de trabalho), por si só e fora de um contexto fático apto a configurar um risco de perigo de dano, ainda que não concreto, não tipifica os delitos de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso permitido ou restrito.

Data da conclusão/última revisão: 26/9/2019

 

Como citar o texto:

SILVA JUNIOR, Leonardo de Tajaribe Ribeiro Henrique da..Afinal, portar munição de arma de fogo é crime?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1660. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/4581/afinal-portar-municao-arma-fogo-crime-. Acesso em 18 out. 2019.

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