RESUMO

Considerando a prática histórica da violência contra a mulher na sociedade e o alto índice de homicídio perpetrado contra este gênero no Brasil e no mundo, bem como a inclusão no mundo jurídico da Lei 13.104/2015, a qual altera o Código Penal Brasileiro para incluir mais uma modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio, o presente trabalho teve por escopo verificar os efeitos da condenação pelo crime de feminicídio, demonstrando a diferença existente entre a condenação por esse tipo penal e a condenação de homicídio qualificado por motivo torpe pela condição da vítima ser mulher. Para tanto, procedeu-se a uma pesquisa de caráter exploratório, com abordagem qualitativa, utilizando-se de procedimentos como a pesquisa documental e pesquisa bibliográfica, contemplando a legislação penal e processual penal vigente, bem como o estudo de livros e publicações voltados para o tema proposto. Ao final concluiu-se que a diferença entre as duas qualificadoras consiste na natureza objetiva (feminicídio) ou subjetiva (motivo torpe).

Palavras-chave: Feminicídio. Condenação. Homicídio. Motivo torpe.

ABSTRACT

Considering the historical practice of violence against women in society as well as the high level of murders perpetrated against this gender in Brazil and in the world, also the inclusion in the legal system of law 13,104/2015, which alters Brazilian Penal Code to add another type of aggravated murder, the “feminicide”, the present paper aimed to study the effects of the condemnation for committing this crime, demonstrating the difference between the condemnation for this penal norm compared to the one applied to aggravating a murder based on the motivation of the crime being prejudice against a female victim. In order to achieve the mentioned goal, bibliographical research was carried out together with study of articles on the topic. In the end it was concluded that the difference between the two qualifiers is based on the objective (feminicide) or subjective (vile motive) nature.

Key-words: Feminicide, Condemnation, Homicide, aggravating factor related to the circumstance of cruelty

 

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva verificar os efeitos da condenação pelo crime de feminicídio, tendo como problemática a diferença existente entre a condenação por esse tipo penal e a condenação por homicídio qualificado por motivo torpe pela condição de a vítima ser mulher.

Todavia, procurou-se demonstrar também a coexistência das qualificadoras supracitadas na aplicação da pena.

Com isso, espera-se que esse estudo possa facilitar a compreensão de conceitos e concepções dessas duas qualificadoras do crime de homicídio, para que se tornem mais visíveis suas diferenças, ressaltando as diretrizes para sua aplicação.

Primeiramente será feita uma compilação de textos histórico-legislativos sobre a violência contra a mulher no Brasil, conceituando nos tópicos seguintes crime hediondo, homicídio qualificado, qualificação por motivo torpe e qualificação por feminicídio (Lei 13.104/2015), iniciando por seu conceito.

  Em um segundo momento se dissertará sobre as circunstâncias para caracterização do feminicídio, bem como sobre as circunstâncias para caracterização de homicídio qualificado por motivo torpe pela condição de a vítima ser mulher, os quais se constituem o ponto central da pesquisa.

Pretende-se também apresentar dados estatísticos produzidos por órgãos que trabalham no combate ao crime em tela, a fim de tornar mais efetiva à compreensão do referido trabalho acadêmico.

Ressalta-se que se trata de uma pesquisa exploratória com abordagem qualitativa, utilizando-se de instrumentos como a pesquisa documental e a pesquisa bibliográfica em obras autores consagrados no meio jurídico que visa esclarecer sobre o tema proposto, além de dar ênfase a questão de suma importância que é o feminicídio. Destarte, utilizou-se também leis, sumulas, jurisprudências, bem como a pesquisa em periódicos.

Por fim, se vislumbrará o feminicídio como mais uma ação interventiva estatal na tentativa de combater à violência de gênero, demonstrando-se ainda as ações adotadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público referentes à norma jurídica exposta.

 

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DO COMBATE A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL

Historicamente, a hierarquia velada entre homens e mulheres confere ao sexo feminino um papel social de inferioridade em relação ao masculino. Isso se reflete na prática recorrente de violência de gênero que vitima mulheres até os dias atuais no Brasil e no mundo.

Dessa forma, as leis cumprem um papel fundamental de forma preventiva e repressiva e sua evolução e aplicação é de extrema importância no combate à violência contra a mulher, conforme demonstrado abaixo.

Base do direito no período colonial e também durante a época do império no Brasil, as Ordenações Filipinas traziam em seu Livro V, título XXXVII, cujo título era “Do que matou sua mulher, pô-la achar em adultério”, a seguinte descrição: “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella....” (Ordenações Felipinas, título XXXVII).

Da mesma forma, as mulheres estavam sujeitas ao poder disciplinar do pai ou marido, constando no Livro V, Título XXXVI, item 1, das Ordenações supracitadas que “eram isentos de pena aqueles que ferissem as mulheres com pau ou pedra, bem como aqueles que castigassem suas mulheres, desde que moderadamente”. Nesse mesmo contexto, no Brasil Imperial, o Código Criminal de 1830 punia o adultério da esposa com pena de prisão de um a três anos, com trabalhos forçados, o que representava uma evolução, já que suprimia a punição privada anteriormente existente e dava vez à interferência Estatal.         Destarte, apesar de suprimir a licença para matar e castigar existente nas Ordenações Filipinas, a desigualdade na aplicação da lei era visível, pois, o adultério cometido pela mulher casada seria crime em qualquer circunstância, no entanto, para o homem casado, apenas constituia crime se o relacionamento extraconjugal fosse estável e público. 

Já o Código Penal de 1890, previa a isenção de pena para o autor em razão da completa privação dos sentidos e de inteligência no momento do cometimento do crime, em seu artigo 27, parágrafo 4º, sendo o réu entregue à família ou recolhido em hospital. Eram crimes cometidos em legítima defesa da honra.

Instituído pelo Decreto-Lei nº 2.848, de 07/12/1940, o Código Penal Brasileiro traz em seu bojo a previsão de penalidade para diversos tipos penais que são praticados contra mulheres e hoje apresentam enquadramento específico na Lei nº 11.340/2006, tais como maus tratos, lesão corporal, ameaça, injuria, etc.

Anterior à publicação de tal lei, o Brasil editou, em primeiro de agosto de 1996, o decreto 1.973 promulgando a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. O artigo 1, capítulo I, da referida Convenção afirma: “Art. 1. Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. (Brasil, 1996)

Logo, dentre estes direitos está presente o direito a vida, garantido também no artigo 5°, caput da Constituição Federal.

A Lei Maria da Penha, aprovada em agosto de 2006 (Lei 11.340/06), criou mecanismos para reprimir a violência doméstica e familiar contra a mulher, afirmando em seu Título I, Artigos 1° ao 3°:

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

Por fim, foi instituída no Brasil a Lei 13.104/2015, conhecida como Lei do Feminicídio, a qual criou uma qualificadora para o homicídio, nos termos do artigo 121, parágrafo 7º do Código Penal Brasileiro, além de alterar a Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), surgindo como uma resposta à sociedade brasileira, uma vez que passa a tratar o homicídio de mulheres como crime hediondo, assegurando punições mais severas aos autores de tal crime.

 

3 HOMICÍDIO, UM CRIME HEDIONDO

Primeiramente faz-se necessário conceituar crime hediondo:

Nesse contexto Cleber Masson, em seu livro Código Penal Comentado, afirma que “é todo aquele que se enquadra no rol do artigo 1° da Lei 8.072/1990, na forma consumada ou tentada”. (MASSON, 2012, p. 114).

Quanto ao crime de Homicídio, este consiste em “matar alguém”, de acordo com artigo 121 do Código Penal.

Sobre tal delito, Fernando Capez (2019, p. 60), em seu livro Curso de Direito Penal, parte especial, traz o seguinte conceito: “homicídio é a morte de um ser humano provocado por outro ser humano. É a eliminação da vida de uma pessoa praticada por outra. O homicídio é crime por excelência”.

Nessa mesma linha, Cleber Masson assim aduz:

Homicídio é a supressão da vida humana extrauterina praticada por outra pessoa”, afirmando ainda que “A vida constitui-se em direito fundamental do ser humano, consagrado no artigo 5° da Constituição Federal. Trata-se de direito formal e materialmente constitucional, com caráter supraestatal. (MASSON, 2012, p. 494 e p. 495)

 

3.1 Qualificadoras do Crime de Homicídio

Previsto no artigo 121, § 2°, incisos I a VII do Código Penal Brasileiro, o homicídio qualificado é aquele cometido em circunstâncias que o tornam mais grave, portanto, havendo maior rigor na aplicação da pena.

Tais circunstâncias são:

Art. 121. Matar alguém:

Homicídio qualificado

§ 2º Se o homicídio é cometido:

I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

II - por motivo fútil;

III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível à defesa do ofendido;

V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

Feminicídio (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)

VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição: (Incluído pela Lei nº 13.142, de 2015).

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

Dessa forma, segundo Fernando Capez (2019) são causas especiais de majoração da pena, relacionadas aos “motivos determinantes do crime e aos meios e modos de execução, reveladores de maior periculosidade ou extraordinário grau de perversidade do agente”.

Como forma de dar ênfase ao tema proposto, trabalhar-se-á somente as qualificadoras por motivo torpe e feminicídio apresentadas a seguir.

 

3.2 Qualificadora por Motivo Torpe

A torpeza nas palavras de Guilherme Nucci (2017, p.36) “é motivo repugnante, objeto vil, que causa repulsa excessiva a sociedade”.

Nos termos de Fernando Capez “torpe é o motivo moralmente reprovável, abjeto, desprezível, vil, que demonstra a depravação espiritual do sujeito e suscita a aversão ou repugnância geral”.

A qualificadora por motivo torpe encontra assento no art. 121, § 2°, inciso I do Código Penal, com pena de doze a trinta anos de reclusão e, de acordo com O artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal é de competência do tribunal do júri, visto que está inserido nos crimes dolosos contra a vida.

Tem-se como exemplo de Homicídio qualificado por motivo torpe o praticado em circunstâncias derivadas de inveja, despeito, cobiça, concupiscência, etc.

Assim, é entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça que o ciúme, por si só, sem outras circunstâncias, não caracteriza o motivo torpe. (HC 123.918/MG, AgRg no AREsp 569047/PR).

Da mesma forma, “Prevalece o entendimento jurisprudencial de que a vingança, por si só, não configura motivo torpe, salvo quando comprovado que tal sentimento restou inspirado por razões injustificáveis e repugnantes." (SCHMITT, 2012, p. 209)

 

3.3 Qualificadora por Feminicídio (Lei 13.104/2015)

“O feminicídio, nos moldes a que se refere o novo texto, pode ser definido como uma qualificadora do crime de homicídio, decorrente de duas situações autônomas entre si, a violência doméstica e familiar contra a mulher (sem necessidade de demonstração de motivação de gênero e, portanto, de natureza objetiva) ou da situação de menosprezo ou discriminação à condição de mulher.” Este é o conceito apresentado no livro Violência Contra a Mulher, Um Olhar do Ministério Público do Brasil, página 136.

Fernando Capez (2019, p. 128) apresenta o seguinte conceito:

Feminicídio é o homicídio doloso praticado conta a mulher por “razões da condição de sexo feminino”, ou seja, desprezando, menosprezando, desconsiderando a dignidade da vítima por ser mulher, como se as pessoas do sexo feminino tivessem menos direito do que a do sexo masculino.

Quanto a Lei 13.104/2015, esta não introduziu um crime novo ao Código Penal, e sim um agravante ao crime de homicídio, acrescentando o inciso VI ao artigo 121 do Código supracitado, além de alterar a categoria dos crimes hediondos (lei nº 8.072/90), acrescentando o feminicídio.

O dispositivo traz a seguinte redação:

Feminicídio (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I- violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Aumento de pena

§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” (NR)

O art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte alteração:

Art. 1º

I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV, V e VI);

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.

Brasília, 9 de março de 2015; 194º da Independência e 127º da República.

Ressalta-se que o advento da nova circunstância qualificadora gerou conflitos quanto a sua constitucionalidade, surgindo também, no ordenamento jurídico brasileiro, divergências quanto à natureza da qualificadora do feminicídio, em que a corrente majoritária afirma tratar-se de qualificadora objetiva.

Sobre isso, Guilherme Nucci (2017), em seu livro “Curso de Direito Penal, parte especial” dispõe que a qualificadora do feminicídio é objetiva, visto que se encontra relacionado ao gênero da vítima, além de sustentar que a ideia de qualificadora subjetiva (motivo torpe) não está relacionada com a motivação do homicídio.

Outrossim, o feminicídio possui requisitos específicos que esclarecem quando a morte da mulher deve ser considerada “em razão da condição do sexo feminino”, os quais estão previstos no § 2°-A, incisos I e II, com a seguinte explicação trazida por Rogerio Sanches: “I – violência doméstica e familiar (art. 5º da Lei nº 11.340/06); II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher (neste caso tipo se torna aberto, pois compete ao julgador estabelecer, diante do caso concreto, se o homicídio teve como móvel a diminuição da condição feminina).”

 

4 CONDENAÇÃO POR FEMINICÍDIO X CONDENAÇÃO DE HOMICÍDIO POR MOTIVO TORPE COM VÍTIMA MULHER

Como já citado anteriormente, para que a morte da mulher seja considerada em razão da condição do sexo feminino é preciso que se enquadre em um dos dispositivos do parágrafo segundo, incisos I e II da norma supramencionada, quais sejam: violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher, respondendo o autor nos termos da lei, com pena de doze a trinta anos, aumentadas de um terço até a metade se o crime for praticado segundo o § 7°, incisos I, II e III.

Já o enquadramento por motivo torpe, ou seja, por motivo repugnante, reprovável, abjeto, desprezível, pode ou não ocorrer no contexto de violência doméstica, com pena de reclusão de doze a trinta anos e a motivação é pessoal.

Por serem considerados crimes de extrema gravidade, tanto o feminicídio quanto o homicídio qualificado por motivo torpe se entraram na classificação de crimes hediondos, recebendo um tratamento mais rigoroso, tendo como características serem inafiançáveis e insuscetíveis de graça, anistia ou indulto.

Ressalta-se que antes do advento da norma em comento, o homicídio de mulher pelo fato de ser mulher se caracterizava homicídio qualificado por motivo fútil ou torpe, sem punição especial, porém, segundo Capez (2019, p. 129) “após a Lei 13.104/2015, tal motivação acarreta a adequação típica do fato ao art. 121, § 2°, VI, do Código Penal”.

Destarte, as duas qualificadoras podem coexistir na aplicação da lei e o enquadramento em uma ou outra qualificadora do crime de homicídio depende da natureza subjetiva (motivo torpe, praticado por motivo pessoal) ou objetiva (feminicídio, incidente nos crimes praticados contra mulher por razões da condição do gênero feminino e segundo as diretrizes da lei), em que o animus do agente não é objeto de análise, de acordo com o Recurso Especial n° 1.707.113-MG, publicado em 07/12/2017, tendo como relator o Ministro Felix Fischer.

Ademais, de acordo com o informativo 625 do STJ, não caracteriza bis in idem o reconhecimento das qualificadoras de motivo torpe e de feminicídio.

Assim, a fim de demonstrar a aplicação da lei e como forma de agregar conhecimento ao presente estudo, apresenta-se abaixo o entendimento da 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal quanto à coexistência das qualificadoras em questão:

PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. RÉU PRONUNCIADO POR HOMICÍDIO COM MOTIVO TORPE. MORTE DE MULHER PELO MARIDO EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. PRETENSÃO ACUSATÓRIA DE INCLUSÃO DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO. PROCEDÊNCIA. SENTENÇA REFORMADA. 1 Réu pronunciado por infringir o artigo 121, § 2º, inciso I, do Código Penal, depois de matar a companheira a facadas motivado pelo sentimento egoístico de posse. 2 Os protagonistas da tragédia familiar conviveram sob o mesmo teto, em união estável, mas o varão nutria sentimento egoístico de posse e, impelido por essa torpe motivação, não queria que ela trabalhasse num local frequentado por homens. A inclusão da qualificadora agora prevista no artigo 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal, não poderá servir apenas como substitutivo das qualificadoras de motivo torpe ou fútil, que são de natureza subjetiva, sob pena de menosprezar o esforço do legislador. A Lei 13.104/2015 veio a lume na esteira da doutrina inspiradora da Lei Maria da Penha, buscando conferir maior proteção à mulher brasileira, vítima de condições culturais atávicas que lhe impuseram a subserviência ao homem. Resgatar a dignidade perdida ao longo da história da dominação masculina foi a ratio essendi da nova lei, e o seu sentido teleológico estaria perdido se fosse simplesmente substituída a torpeza pelo feminicídio. Ambas as qualificadoras podem coexistir perfeitamente, porque é diversa a natureza de cada uma: a torpeza continua ligada umbilicalmente à motivação da ação homicida, e o feminicídio ocorrerá toda vez que, objetivamente, haja uma agressão à mulher proveniente de convivência doméstica familiar. 3 Recurso provido. (TJ-DF - RSE: 20150310069727, Relator: GEORGE LOPES LEITE, Data de Julgamento: 29/10/2015, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 11/11/2015 . Pág.: 105)

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em razão de o Brasil ocupar o quinto lugar no ranking mundial da violência contra a mulher, da sociedade brasileira ainda comportar discriminação contra o gênero feminino de forma expressa ou velada, bem como misoginia e patriarcalismo, além dos altos índices de feminicídio, fez-se necessário à implantação da Lei 13.104/15, assim como a implantação de outros meios jurídicos preventivos e repressivos com relação à prática da violência contra a mulher.

Sobre tal tema, dados do Atlas da Violência Doméstica de 2019, elaborado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, demostram um crescimento expressivo de 30,7% no número de homicídios de mulheres no país durante a década de 2007 a 2017, fazendo a seguinte análise:

Verificamos crescimento expressivo de 30,7% no número de homicídios de mulheres no país durante a década em análise (2007-2017), assim como no último ano da série, que registrou aumento de 6,3% em relação ao anterior. A magnitude do fenômeno e de suas variações pode ser mais bem aferida em termos da taxa de homicídio por grupo de 100 mil mulheres, que permite maior comparabilidade temporal e entre as diferentes unidades federativas. Entre 2007 e 2017 houve aumento de 20,7% na taxa nacional de homicídios de mulheres, quando a mesma passou de 3,9 para 4,7 mulheres assassinadas por grupo de 100 mil mulheres. Nesse período, houve crescimento da taxa em 17 Unidades da Federação. Já no recorte de 2012 a 2017, observamos aumento de 1,7% na taxa nacional e um aumento maior ainda de 5,4% no último ano, período em que se verificam taxas ascendentes em 17 UFs em relação a 2016. Considerando o período decenal, Rio Grande do Norte apresentou o maior crescimento, com variação de 214,4% entre 2007 e 2017, seguido por Ceará (176,9%) e Sergipe (107,0%). Já no ano de 2017, o estado de Roraima respondeu pela maior taxa, com 10,6 mulheres vítimas de homicídio por grupo de 100 mil mulheres, índice mais de duas vezes superior à média nacional (4,7). A lista das unidades federativas onde houve mais violência letal contra as mulheres é seguida por Acre, com taxa de 8,3 para cada 100 mil mulheres, Rio Grande do Norte, também com taxa de 8,3, Ceará, com taxa de 8,1, Goiás, com taxa de 7,6, Pará e Espírito Santo com taxas de 7,5.

Para dar maior visibilidade ao problema, dados compilados pela ENASP/CNMP nos anos de 2015 a 2017, referentes aos inquéritos instaurados por feminicídio demonstram que de 2015 a 2016 as denúncias de feminicídio chegaram a 53%, somados a 41% de investigações em curso, 3% de arquivamento e 3% de desclassificação do crime. Já de 2016 a 2017, as denúncias totalizaram 50%, somados a 43% de investigações em curso, 4% de arquivamento e 3% de desclassificação do crime.

Da mesma forma, de acordo com o site “Senado Notícias”, segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 449 casos de feminicídio em 2015 e mais de 621 em 2016.

Além disso, segundo dados do conselho nacional de justiça, em 2018, o aumento foi de 34% em relação a 2016, passando de 3.339 casos para 4.461, o que faz, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a taxa de feminicídios no Brasil ser de 4,8 para 100 mil mulheres.

Um importante aliado na luta pela conscientização contra o feminicídio é o Conselho Nacional do Ministério Público e a Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp) que desde a vigência da lei colabora com: formulação de estatísticas referentes a esse tipo de ocorrência; diagnóstico sobre o crime em tela; lançamento do inqueritômetro e do Sistema de Cadastro de Feminicídio; metas de redução do feminicídio, além de conclamar a comunidade para enfrentar a violência praticada contra a mulher, em especial, o feminicídio, através do estimulo da escrita.

Por fim, faz-se necessário ressaltar a importância da implantação de políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade de gênero, da valorização da mulher, da fiscalização das leis vigentes e principalmente de políticas educacionais, uma vez que, a lei, por si só, não impede o acontecimento do crime.

 

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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________. Conselho Nacional do Ministério Público. Violência contra a mulher: Um olhar do Ministério Público brasileiro / Conselho Nacional do Ministério Público. – Brasília: CNMP, 2018.

________. Lei n. 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Lex: Coletânea de Legislação e Jurisprudência. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm. Acesso em: 20 de agosto de 2019.

________. Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006.  Lex. Brasília, DF, 8 ago. 2006. p. 1-4. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 10 de setembro de 2019.

________. Decreto n° 1973, de 1° de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Disponível em  https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1996/decreto-1973-1-agosto-1996-435655-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 26 de agosto de 2019.

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Data da conclusão/última revisão: 9/10/2019

 

Como citar o texto:

CARVALHO, Elaine de Souza; SILVA, Rubens Alves da..Efeitos práticos do feminicídio e a qualificação por motivo torpe. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1662. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/4597/efeitos-praticos-feminicidio-qualificacao-motivo-torpe. Acesso em 28 out. 2019.

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