RESUMO: O presente trabalho aborda o problema da responsabilização do Estado por danos decorrentes de movimentos multitudinários, classificando tal responsabilidade como de natureza objetiva. Também trata da responsabilidade civil geral e do Estado, bem como distingue os movimentos multitudinários de outros institutos afins.

 

SUMÁRIO - 1. Introdução. 2. Responsabilidade civil. 2.1. Noções. 2.2 Conceito. 3. Responsabilidade do Estado. 3.1. Conceito. 3.2. Fundamentos. 3.3. Breve evolução histórica da responsabilidade do Estado. 3.4. Causas excludentes da responsabilidade do Estado. 4. Movimentos multitudinários. 4.1. Características dos movimentos multitudinários. 4.1.1. Os movimentos multitudinários são movimentos perpetrados por particulares. 4.1.2. As pessoas que perpetram movimentos multitudinários têm interesses convergentes. 4.1.3. Os movimentos multitudinários são decorrentes de fatos sociais, políticos e econômicos. 4.1.4. Os movimentos multitudinários causam danos em propriedade pública ou particular, como também em pessoas físicas. 4.1.5. Os movimentos multitudinários, enquanto tais, não configuram conduta penal. 4.1.6. Quantidade de pessoas participantes do movimento multitudinário. 4.2 Traços distintivos entre os movimentos multitudinários e os demais movimentos de massa. 4.2.1. Rixa. 4.2.2. Linchamento. 4.2.3. Movimentos ufanistas. 4.2.4. Terrorismo. 4.2.5. Revolução política. 4.2.6. Atos de guerra. 4.2.7. Represália. 4.2.8. Piquete grevista. 4.2.9. Saque e depredação. 4.2.10. Movimentos populares. 5. Responsabilidade do Estado por movimentos multitudinários. 5.1. Natureza jurídica da responsabilidade do Estado. 6. Conclusões. Referências bibliográficas. Anexo.

1. Introdução

A atividade estatal, quer seja por meio de uma conduta positiva (comissiva), quer seja negativa (omissiva), cria um risco para os administrados. Logo, se dos atos praticados por estes agentes, no exercício de suas funções, sobrevier algum dano ao particular, o Estado terá obrigação de indenizar.

Trata-se de uma responsabilidade estatal extracontratual, de cunho patrimonial, pois visa à reparação de danos, decorrentes de condutas lícitas ou ilícitas, comissivas ou omissivas, dos agentes públicos.

A responsabilidade do Estado por conduta omissiva, para muitos autores, tem como fundamento os artigos 15 e 159 do Código Civil, ou seja, mister se faz a demonstração da culpa do agente estatal para que haja a responsabilidade; para outros, no entanto, tal conduta está perfeitamente amparada pela Constituição Federal, em seu artigo 37, § 6º, que se refere à teoria do risco administrativo, sendo desnecessária a prova da culpa por parte do Estado; responsabilidade objetiva, pois.

Essa polêmica em torno da natureza jurídica da responsabilidade estatal por conduta omissiva é pertinente quando se estudam os movimentos multitudinários e a responsabilidade do Poder Público.

Tais movimentos de massa são perpetrados por particulares, com interesses convergentes, praticando uma conduta penal, inseridos em um contexto de anormalidade socio-econômica ou política, que causam danos a particulares.

Esses movimentos distinguem-se de outros, praticados por um grupo de pessoas, pois possuem características peculiares e imprescindíveis para que se configurem como tal e ensejem a responsabilidade do Estado.

O Poder Público, nesse contexto, que não agiu quando deveria agir para evitar a eclosão de tais movimentos ou não obstou a sua ocorrência, foi omisso em seu dever de garantir a ordem pública, a integridade física dos cidadãos e de zelar pela propriedade particular de seus administrados, devendo, por conseguinte, reparar os danos suportados pelos particulares, os quais não concorreram para a eclosão de tais movimentos, não sendo justo que estes suportem sozinhos os prejuízos ante as garantias a eles conferidas pela Carta Magna.

Não obstante a evolução histórica da responsabilidade civil do Estado, não há ainda uma legislação específica que regule a responsabilização do Poder Público pelos danos decorrentes de movimentos multitudinários, o que diferencia o Brasil de outros países que já a possuem como, por exemplo, a Argentina.

Dessa forma, é necessária uma análise sistemática da legislação pátria, da doutrina e da jurisprudência para identificar quais os movimentos de multidão que autorizam a responsabilização do Estado e qual a natureza jurídica desta responsabilidade.

2. Responsabilidade civil

2.1. Noções

O instituto da Responsabilidade Civil teve sua origem no direito romano, partindo-se da idéia de vingança privada e surgindo, posteriormente, a partir da intervenção do Poder Público, com a Lei das XII Tábuas, a reparação e, por fim, com a Lex Aquilia, em que a responsabilidade era proporcional ao dano causado, introduzindo-se, então, o elemento culpa como fator decisivo para a responsabilização.

Nesse contexto, surgiu o Código Civil brasileiro, em 1916, adotando a teoria da culpa, estatuída nos artigos 15 e 159.

2.2. Conceito

Para Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge, a responsabilidade civil "é a situação em que se encontra alguém que, tendo praticado um ato ilícito, é obrigado a indenizar o lesado dos prejuízos que lhe causou".

Partindo-se do texto legal, é pressuposto para a responsabilidade civil a existência do dano, ou seja, é necessário que alguém, agindo de forma comissiva ou omissiva, cause dano a terceiro.

Assim, o causador do dano tem o dever de reparar os prejuízos sofridos pelo lesado, para que este volte ao status quo ante, sendo certo que a indenização representa uma sanção de ordem pecuniária.

3. Responsabilidade do Estado

3.1. Conceito

A responsabilidade civil do Estado consiste na obrigação da Administração Pública de indenizar os particulares pelos danos causados pelos seus agentes.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro define que "a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados em decorrência de comportamentos comissivos e omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos".

3.2. Fundamentos

O fundamento da responsabilidade do Estado tem duas vertentes: a que decorre de atos lícitos e a que resulta de atos ilícitos. A primeira tem por base o princípio da igualdade de todos os administrados perante os encargos públicos; a segunda, o princípio da legalidade, segundo o qual aquele que age de maneira contrária à lei e, ao fazê-lo, causa dano a alguém, está obrigado a reparar o dano.

Como preleciona a renomada Maria Sylvia Zanella Di Pietro: "Ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade exige sempre um ato ilícito (contrário à lei), no direito administrativo ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maiores do que o imposto aos demais membros da coletividade".

Neste caso, se o dano sobrevier de atos lícitos causados pelos agentes a serviço da Administração Pública, a indenização será devida pela comunidade como um todo, pois o ato ou fato administrativo é de interesse coletivo, sendo o lesado ressarcido com o dinheiro proveniente dos tributos arrecadados pelo Estado.

Todavia, o fundamento da responsabilidade por atos ilícitos decorre da infringência do Princípio da Legalidade, quer dizer, o agente público pratica um ato contrário à lei ou deixa de praticá-lo quando imposto por lei, causando danos a alguém. Tal reparação será devida pelo Estado, ressalvada ação de regresso contra o agente, autor da conduta ilícita, devendo este ressarcir o prejuízo experimentado pelo erário.

Dessa forma, tal instituto implica o dever de indenizar quer sejam os prejuízos causados aos particulares decorrentes de atos ilícitos, quer os advindos de atos lícitos.

3.3. Breve evolução histórica da responsabilidade do Estado

Até próximo do final do século XVIII vigorava a irresponsabilidade do Estado por danos causados por seus agentes a particulares ante a noção de que tal responsabilidade seria incompatível com a idéia de soberania (relembre-se que o rei governava por direito divino). Prevaleciam, como marcas desse tempo, cunhadas pelo absolutismo, as expressões the king can do no wrong e LEtat cest moi.

Todavia, a partir da Revolução Francesa, marcada por revoltas que ocasionaram danos a bens particulares, aquela idéia passou a ser freqüentemente questionada, surgindo, então, como técnica para agasalhá-la a teoria que diferenciava os atos da administração pública entre atos de império e atos de gestão, os primeiros não passíveis de gerar responsabilidade, ao passo que os últimos poderiam gerá-la.

Surgiu, posteriormente, a teoria da culpa civilística, que aplicava à responsabilidade do Estado a mesma matriz empregada pelo direito privado, ou seja, era a culpa do agente estatal que levava àquela responsabilização, certo que num primeiro momento apenas o funcionário respondia perante o lesado. Num segundo momento, também o Estado.

Nessa evolução surgiu a teoria da faute du service, que já trabalhava com a idéia de que a culpa seria do serviço público e não mais do agente estatal. Isto é: ainda que não se pudesse identificar o servidor faltoso a responsabilidade do Estado exsurgiria da falha, em si, do serviço, porque este não funcionara ou funcionara mal ou tardiamente.

Por fim, desenvolveu-se a teoria do risco administrativo, a partir da idéia de que o Estado não deveria indenizar o dano apenas quando este resultasse de culpa do agente estatal ou de falha do serviço, vale dizer, de ato ilícito. Também a prática de atos lícitos poderia ser causa de dano e, por conseguinte, não era mais a culpa (quer do serviço, quer do servidor) a matriz dessa responsabilidade, mas o risco que toda atividade estatal implica para os administrados.

Essa última concepção, que se afastava da idéia de culpa, levava a outra: o Estado seria responsabilizado sempre que seu agir configurasse um risco para o administrado e que desse risco tivesse resultado um dano. A responsabilidade, portanto, se objetivava. Bastava, em outras palavras, que o lesado provasse a conduta do agente estatal, o dano e o nexo de causalidade entre ambos.

O direito brasileiro acompanhou essa evolução adotando as teorias que se sucediam e que melhor se ajustavam ao tempo corrente.

Na década de 30, os danos causados por atos criminosos praticados pelos prepostos do Estado que ultrapassavam os limites de suas atribuições não eram indenizáveis pelo Estado, pois se entendia que ao se excederem os mesmos perdiam a qualidade de prepostos do Estado, uma vez que este não concorreu para o evento danoso, respondendo, assim, o agente, pessoalmente.

Justifica-se esta esquiva do Poder Público pois naquela época ocorreram inúmeras revoluções, como por exemplo a Revolução de 1932, ocasião que o Estado foi isento de responsabilidade quando da existência de excesso culposo ou doloso dos militares.

Após a Constituição Federal de 1967, o Estado passou a responder objetivamente pelos atos de seus agentes, não mais precisando perquirir sobre a culpa do Estado, sendo certo que com o advento da Carta Magna de 1988 houve uma ampliação da responsabilidade estatal na medida em que o preposto do Estado deixou de ser apenas o funcionário público para ser o agente público.

Também o Código Civil, no seu artigo 15, estatuiu a responsabilidade decorrente da culpa (subjetiva, portanto); as Constituições Federais, a partir da de 1937 (artigo 158), incorporaram a idéia de responsabilidade por risco (vale dizer, objetiva).

3.4. Causas excludentes da responsabilidade do Estado

A responsabilidade civil estatal decorrente de falha na prestação do serviço público será elidida, no entanto, em determinadas situações, quando não houver nexo causal entre a conduta omissiva ou comissiva do agente do Estado e o dano suportado pelo particular. Esta exclusão de responsabilidade ocorrerá diante da força maior, do caso fortuito, do estado de necessidade e da culpa exclusiva da vítima ou de terceiro.

A força maior trata-se de fenômeno natural, absolutamente estranho ao comportamento humano, tal como: chuvas torrenciais, maremotos, secas, ou seja, são eventos da natureza, imprevisíveis e inevitáveis, capazes de causar dano ao particular.

Note-se que o Estado se torna impotente diante da imprevisibilidade e da falta de conhecimento das causas determinantes de tais fenômenos, o que, por conseguinte, justifica a exclusão de sua obrigação de indenizar eventuais danos por eles causados. É o que se extrai da lição de Toshio Mukai:

"A força maior, acontecimento de natureza imprevisível e irresistível, também provoca a exclusão da responsabilidade estatal. Isto porque se o evento danoso foi provocado pela queda de um raio, isto é, por força maior, não será possível comprovar o nexo causal entre o ato estatal e o dano. E, como já afirmado, sem essa relação de causalidade não se configura a responsabilidade estatal".

Por outro lado, se durante a prestação do serviço público o Estado deixar de realizar ato ou obra de caráter indispensável, sobrevindo evento natural que cause danos a particulares pela falta daquele ato ou obra, o Poder Público estará obrigado a compor os prejuízos sofridos, eis que configurado o nexo de causalidade entre o ato omissivo e o dano, o que gera a responsabilidade estatal, porquanto a causa do dano não será apenas a situação caracterizadora de força maior, mas o desleixo do estado em, sendo possível prever tal fenômeno e suas conseqüências, e evitá-las, nada ter feito.

Essa situação se verifica no exemplo trazido à colação por Maria Sylvia Zanella de Pietro e na decisão jurisprudencial que se seguem:

"Quando as chuvas provocam enchentes na cidade, inundando casas e destruindo objetos, o Estado responderá se ficar demonstrado que a realização de determinados serviços de limpeza dos rios ou dos bueiros e galerias de águas pluviais teria sido suficiente para impedir a enchente".

"INDENIZAÇÃO. Responsabilidade civil do Estado - Incêndio em residência ocasionado por queda de árvore sobre fiação - Responsabilidade da Prefeitura que restou comprovada - Recurso não provido (Acórdão n. 176.407-1-Araraquara. Relator: José Osório. 04 de dezembro de 1992)".

A responsabilidade continua a ser de natureza objetiva, todavia sendo possível ao Estado a prova de eventual situação excludente, o que afastaria o nexo causal entre a conduta e o dano.

O caso fortuito, segundo a corrente doutrinária predominante, constitui-se de uma atividade eminentemente humana, proporcionadora de resultado danoso e alheia à vontade do agente, embora por vezes previsível e até mesmo evitável. Nesse sentido é a definição dada por Antonio A. Queiroz Telles: "O caso fortuito é, no sentido exato de sua derivação (acaso, imprevisão, acidente), o caso que não se poderia prever e se mostra superior às forças ou vontade do homem, quando vem, para que seja evitado".

Assim, mormente pela dissociação dessa atividade humana da vontade do Poder Público é que este não poderá ser responsabilizado pelos danos daquela resultantes. Desta forma, será afastada a responsabilidade estatal pela ausência do nexo de causalidade entre o dano suportado pelo particular e o evento danoso, que não se deu por conduta do Estado.

Por outro lado, não basta a simples alegação do Poder Público de ocorrência de caso fortuito para se eximir da responsabilidade civil, sendo necessário que arque com o onus probandi de tal alegação e, não se desincumbindo deste, será responsabilizado objetivamente, nos termos da Constituição Federal.

Ressalte-se, por derradeiro, que a força maior e o caso fortuito estão previstos conjuntamente no artigo 1.058 do Código Civil e, diante da imprecisão do texto legal que não os distingue, estas expressões são objeto de divergência doutrinária quanto à sua definição, havendo doutrinadores renomados que entendem que a força maior consiste em ações humanas e que o caso fortuito refere-se a eventos da natureza, exatamente o contrário do que entende a corrente dominante, a qual adotamos.

Outra excludente da responsabilidade estatal é o estado de necessidade, que se verifica diante de situações de perigo iminente, não provocadas pelo agente, tais como guerras e sedições, quando se faz necessário um sacrifício do interesse particular - que não é absoluto - em função do Poder Público, titular do interesse coletivo, que poderá intervir na esfera particular a fim de defendê-lo.

Nessas situações anômalas, se os atos praticados pelos agentes estatais eventualmente causarem danos ao administrado, não ensejarão a obrigação do Estado de indenizar, por força do status necessitatis, que tem como fundamento jurídico o princípio da supremacia do interesse público, caracterizado pela prevalência da necessidade pública sobre o interesse particular.

Conclui-se desta forma que o Poder Público, dotado de discricionariedade para defender o interesse público e intervir na esfera particular diante de fatos excepcionais, estará isento de reparar os danos sofridos pelos administrados em decorrência de sua atuação nesse sentido.

A culpa da vítima ou de terceiro também excluirá a responsabilidade estatal, pois, havendo prova de que a vítima ou um terceiro agiu com culpa exclusiva na produção do evento danoso, o Estado ficará excluído da responsabilidade de indenizar os danos, por haver uma quebra do nexo de causalidade, pois o Poder Público não pode ser responsabilizado por um fato a que, de qualquer modo, não deu causa.

Essas excludentes decorrem de um princípio lógico de que ninguém poderá ser responsabilizado por atos que não cometeu ou para os quais não concorreu.

Consoante estabelecido na Constituição Federal de 1988 a responsabilidade estatal é objetiva, sendo necessária apenas a demonstração pelo lesado da existência do nexo entre o ato do agente público e a lesão suportada pelo particular em decorrência daquele, sendo despicienda a prova da culpa do agente público. Assim, caberá ao Estado, também neste caso, para eximir-se da obrigação, a prova da culpa da vítima ou do terceiro na produção do dano. Esse entendimento é pacífico nos tribunais:

"INDENIZAÇÃO - Fazenda Pública - Responsabilidade Civil - Vítima morta em tiroteio com a polícia - Culpa exclusiva da vítima (suspeita de participação em crime de homicídio) - Abuso da autoridade não configurado - Inaplicabilidade do artigo 107 da Constituição da República de 1967 - Indenização promovida pelos familiares do falecido julgada improcedente - Recurso não provido (São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 3ª Câmara. Apelação Cível n. 121.141-1. Relator: Toledo Cesar. 24 de abril de 1990. Lex- Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. São Paulo, n.126, p.154, set/out. 1990. No mesmo sentido: Lex-Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do São Paulo. São Paulo, n. 37, p.32, nov./dez. 1975)."

Pode ainda dar-se a concorrência de culpa da vítima e do Poder Público na produção do dano efetivo e, neste caso, ambos responderão pelos danos suportados, na proporção em que para eles concorreram. Note-se que em tais casos não há a exclusão e sim uma atenuação da responsabilidade estatal, devendo a indenização ser dividida proporcionalmente com a vítima, como bem demonstram o seguinte aresto:

"INDENIZAÇÃO - ACIDENTE DE TRÂNSITO - Responsabilidade do Poder Público, que independe de prova de dolo ou culpa - Prova, entretanto, no caso, de que houve culpa concorrente do particular, autor da demanda - Reforma parcial da sentença, para ordenar o pagamento da indenização pela metade (São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível n. 263.584. Relator: Macedo Bittencourt Pinheiro Franco. 06 de outubro de 1977. Lex- Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. n.51, p.72, mar./abr. 1978)."

Firmado o entendimento da proporcionalidade do dever de indenizar do Estado, de acordo com o grau de culpa do agente, surgiu também a divergência no que concerne à fixação do quantum a ser indenizado nos casos de culpa concorrente, partindo-se para a discussão sobre se a divisão seria feita pela metade ou se proporcional ao grau de culpabilidade atribuível a cada um dos agentes. Desta forma, na ausência de previsão legal expressa, caberá aos magistrados e tribunais a análise de cada caso concreto e, de acordo com suas peculiaridades, fixar o montante devido a título de indenização a cada parte. Nesse sentido:

"RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - Morte de motociclista acidentado em via pública mal conservada - Desídia demonstrada pela ocorrência de outros acidentes no mesmo local e época - Força maior alegada e não provada - Culpa concorrente da vítima por trafegar sem capacete, certo que a morte se deu por traumatismo craniano - Redução da indenização em 25%" (São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 8ª Câmara Cível. Apelação n. 139.595-1. Relator: Desembargador José Osório. 21 de novembro de 1990. Revista dos Tribunais. São Paulo, n. 667, p. 95, maio 1991)".

Nesse passo, também o Estado se eximirá da obrigação de indenizar quando comprovar que houve culpa exclusiva da vítima ou de terceiro para a ocorrência dos danos indenizáveis, uma vez que o texto do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal estabelece que o Estado será responsabilizado civilmente tão somente pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem (omissiva ou comissivamente) a terceiros.

Assim, sendo demonstrado pelo administrado lesado que o serviço público não funcionou, funcionou mal ou funcionou tardiamente, tendo, pois, o Poder Público causado diretamente o dano ou permanecido inerte diante da conduta danosa de terceiro, verificado estará o mau funcionamento do serviço público, aplicando-se a teoria da faute du service que, segundo a corrente mais moderna, que seguimos, enseja a responsabilidade objetiva.

4. Movimentos multitudinários

Os sociólogos estudam os movimentos de multidão sob ângulo diverso do jurídico, expressando-se da seguinte forma: "A multidão é um monstro sem cabeça, porque dentro da multidão o indivíduo se despersonaliza e acaba agindo de um modo que contraria a sua conduta isolada".

Partindo desse conceito, a autora Sônia Sterman dá um enfoque jurídico ao tema e conclui que "os movimentos violentos produzidos pelas multidões nada mais são que a liberação do irracional do inconsciente de cada indivíduo que foi reprimido pelo movimento político-social anterior" , não deixando de ressaltar que não pretendia eleger um conceito único de multidão, até mesmo porque este conceito sofrerá variações de acordo com a época histórica e com o ordenamento vigente.

A mesma autora destaca, ainda, a definição dada por José Cretella Júnior como sendo a mais abrangente até então firmada, sendo que, para aquele, os movimentos multitudinários são "deslocamentos de povos ou de parte da população, como conseqüência de fatos sociais, políticos ou econômicos que ocorreram num dado momento histórico" .

4.1. Características dos movimentos multitudinários

Tentaremos destacar aqui as características mais marcantes dos movimentos multitudinários e, a partir daí, diferenciá-los dos demais movimentos de massa:

4.1.1. Os movimentos multitudinários são movimentos perpetrados por populares

Os movimentos multitudinários somente serão perpetrados por particulares e não se caracterizarão como tal se forem praticados por militares - pois aí o movimento seria revolucionário - ou, ainda, por outros agentes públicos, sendo certo que sua ocorrência está inserida num contexto de anormalidade político-social ou econômica.

4.1.2. As pessoas que perpetram movimentos multitudinários têm interesses convergentes

Nos movimentos multitudinários, que são conseqüências de anomalias sociais, políticas ou econômicas, seus integrantes esboçam um descontentamento com fatos sociais, havendo convergência de interesses entre eles. Desta forma, os participantes não brigam entre si, mas agem de forma conjunta, objetivando o mesmo fim e, por conseqüência, causam danos à propriedade particular ou à integridade física de terceiros.

4.1.3. Os movimentos multitudinários são decorrentes de fatos sociais, políticos ou econômicos

Os movimentos multitudinários são parte integrante de uma evolução histórica de um contexto de reivindicações sociais, como bem assevera Elias de Oliveira, invocando seus conhecimentos da psicologia criminal:

"Sob o ponto de vista psicológico, corporações outrora não sindicalizadas, pululantes nos tempos antigos, na Idade Média e na Renascença, trepidantes e impetuosas, posto que, hoje, sob nova forma surjam armadas pelo sindicalismo, para a luta, sem trégua, das chamadas reivindicações sociais. E, quando se aglomeram nas ruas para reclamar, delas se formam, quase sempre, massas tumultuárias que cometem crimes".

4.1.4. Os movimentos multitudinários causam danos em propriedade pública ou particular, como também em pessoas físicas

A Constituição Federal consagrou o direito à vida, à segurança e à propriedade no rol dos direitos fundamentais, inseridos no artigo 5º caput e inciso XXII, isto é, com eficácia e aplicabilidade imediatas e só encontrando limites legais nos demais direitos e garantias igualmente consagrados pela Carta Magna.

Destarte, se o Poder Público, quando lhe era possível, deixa de evitar danos causados por atitudes ilícitas praticadas por um aglomerado humano, será obrigado a indenizar o administrado lesado, uma vez que falhou no cumprimento de seu dever de proteção da segurança, da vida e da propriedade de particulares.

Por outro lado, quanto à propriedade pública, que é bem de interesse coletivo, têm os cidadãos direito sobre ela e podem exigir que esta esteja em perfeito estado de conservação. Assim, se o Estado não tomou as medidas necessárias para assegurar a integridade desse bem, os cidadãos têm a faculdade de exigir do Poder Público providências necessárias nesse sentido. O instrumento utilizado por eles para defender o interesse público é a ação popular, prevista na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXXIII.

Também será possível a indenização de um ente político por outro, se caracterizada a omissão daquele que era o responsável pela segurança de um bem administrado por outro ente e, dessa omissão, resultou-se um dano.

4.1.5. Os movimentos multitudinários, enquanto tais, não configuram conduta penal

Os movimentos multitudinários são perpetrados por um grupo de pessoas que, diante de uma anomalia social, econômica ou política, pratica conduta que, analisada individualmente, configuraria crime ou contravenção penal, uma vez que tal conduta causa dano aos particulares.

A ausência de previsão na legislação pátria que tipifique os movimentos multitudinários como crime ou contravenção penal induz a necessidade da verificação isolada de cada ato praticado pelos integrantes do movimento que cause dano ao administrado, para aí se averiguar se constitui conduta típica, antijurídica e culpável.

4.1.6. Quantidade de pessoas participantes do movimento multitudinário

Embora não se tenha uma determinação legal ou sociológica de quantas pessoas são necessárias para formar uma massa, José Cretella Júnior define os movimentos multitudinários como deslocamentos de povos ou de parte da população, daí se concluindo que os movimentos multitudinários são necessariamente formados por um aglomerado humano que, enfurecido e incontrolável, seja capaz de causar danos a particulares.

Desta forma, os movimentos multitudinários são formados por um ilimitado e incontável número de populares, o que torna impossível a individualização e a identificação de seus componentes.

4.2. Traços distintivos entre os movimentos multitudinários e os demais movimentos de massa

Necessária se faz a distinção entre os movimentos multitudinários e outros tipos de movimentos populares, em face da identidade de certas características que lhes são peculiares e dos diferentes efeitos jurídicos que poderão produzir.

4.2.1. Rixa

A rixa é um movimento popular que difere substancialmente dos movimentos multitudinários uma vez que esta não deriva de movimento político-social e seus integrantes possuem interesses divergentes, brigando entre si, agindo violentamente e promovendo agressões recíprocas, havendo animosidade e desavenças entre eles. Outra dessemelhança entre a rixa e os movimentos multitudinários é que aquela é um crime, configura conduta penal, diferentemente do que ocorre com o segundo, que só configuraria conduta penal se os atos de seus integrantes fossem analisados individualmente.

Entretanto, tanto os participantes de rixa como os dos movimentos de multidão poderão praticar condutas penais, tais como vias de fato e lesão corporal, que atingem a integridade física de outrem, sendo certo que, em ambos os casos, a identificação de sua autoria é muito difícil.

O Estado não poderá ser responsabilizado por possíveis danos em casos de rixa, haja vista que, se o Poder Público fosse responsável por tais danos, estar-se-ia abrindo um precedente para obrigá-lo a indenizar os danos advindos de todos os delitos, o que seria um contra-senso.

4.2.2. Linchamento

Da mesma forma, o linchamento não pode ser confundido com os movimentos multitudinários pois aquele consiste na reunião de pessoas com o propósito predeterminado de executar alguém ou castigá-lo com duras penas por ter praticado algum ato reprovável pela sociedade e pelo direito.

Observa-se que, embora haja uma manifestação de descontentamento por parte dos populares tanto nos movimentos multitudinários como no linchamento, este último somente é dirigido contra uma ou mais pessoas, supostamente autoras de crime - ou de outra conduta reprovável -, não havendo qualquer conotação de reivindicação social, mas sim de realização da justiça pelas próprias mãos, o que contraria os princípios gerais de justiça.

Logo, nossos tribunais não têm admitido a responsabilidade do Estado por ocorrência de linchamento:

"INDENIZAÇÃO. Fazenda Pública. Responsabilidade Civil. Morte e linchamento, praticado por populares, após a tentativa de estupro. Responsabilidade do estado insubsistente. Impossibilidade do Poder Público estar ostensivamente presente a fim de evitar qualquer ilícito. Verba indevida. Recurso não provido. Não está verdadeiramente o Poder Público obrigado a exibir presença ostensiva em todo e qualquer canto, hora e local do território nacional, de molde a assim supostamente obstar a perpetração de qualquer ilícito. Destarte, nenhuma a responsabilidade do Estado pelo linchamento" (São Paulo, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 184.691-1. Relator: Cunha de Abreu. 28 de janeiro de 1993. (JUIS - Jurisprudência Informatizada Saraiva. São Paulo, 2000. CD ROM n. 17)."

4.2.3. Movimentos ufanistas

Os movimentos multitudinários são decorrentes de fatos sociais, políticos ou econômicos. Por essa característica distinguem-se totalmente dos movimentos ufanistas, sendo que estes são movimentos eufóricos de parte da população, manifestando-se seus integrantes orgulhosos ou satisfeitos por algum motivo em dada ocasião, não havendo reivindicações sociais, mas tão somente de comemoração ou manifestação de patriotismo, por exemplo.

Tais movimentos diferem-se substancialm

 

Como citar o texto:

GANDINI, João Agnaldo Donizeti e Luciana Rastelli Rangel.Responsabilidade do Estado por movimentos multitudinários: sua natureza objetiva. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-publico/54/responsabilidade-estado-movimentos-multitudinarios-natureza-objetiva. Acesso em 1 mai. 2001.

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