A Constituição Federal, em seu artigo 14, § 9º, prevê que lei complementar deverá disciplinar outros casos de inelegibilidades que não estejam descritos no rol constitucional, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato e abusos de poder.

A Lei complementar 64/90 veio regular as hipóteses em que uma pessoa não possa ser eleita provisória ou definitivamente e dentre elas regulamentou em seu artigo 1º, inciso I, alínea “e”, a inelegibilidade daqueles “que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de três anos, após o cumprimento da pena”.

Inicialmente, aparenta o presente dispositivo legal livrar dos cargos eletivos aqueles que caminham na contramão da conduta esperada do homem que pensa em representar interesses alheios de maneira proba, e de criminosos declarados por uma decisão judicial da qual não caiba recurso algum.

Entretanto, uma interpretação literal do texto aludido contraria a intenção do constituinte originário e, de outro lado, do legislador, já que não são apenas os delitos difundidos no preceito que agridem a moralidade, a probidade e os valores éticos, morais e sociais que devem guardar o titular de uma carreira eletiva.

De fato, a alta lesão ao sentimento mínimo de justiça ocasionado pela prática dos crimes mencionados, inclusive por tráfico de entorpecentes, que é hediondo, não condiz com o rol fechado e meramente taxativo da lei. Deve abranger outras figuras semelhantes ou de maior potencial ofensivo à coletividade. Não há razão para não acrescer outros delitos como, por exemplo, o homicídio, as lesões corporais leves, graves e gravíssimas, o estupro; enfim, uma extensa gama de ataques a bem jurídicos que igualmente vem barrar o acesso ao mandato para uma pessoa que deveria vir a proteger interesses alheios e não prezar por sua destruição, guiado por uma vida pregressa deturpada, imoral, além de criminosa.

Joel J. Cândido (- in – Direito Eleitoral Brasileiro. 10ª ed. Bauru, São Paulo: Edipro, 2002, pg. 126) atesta, na mesma esteira de idéias que: “Se o critério é a gravidade dos delitos, alguns crimes contra a saúde pública (arts. 167, § 1º; 270); alguns crimes contra os costumes (arts. 213, c/c o art. 223, parágrafo único e art. 214, caput, c/c o art. 223, parágrafo único) e os crimes de genocídio, da Lei nº 2.889, de 1º. 10. 1956, por exemplo, têm a mesma ou maior gravidade que os crimes de tráfico de entorpecentes e, de igual sorte, são absolutamente incompatíveis com o exercício de mandato eletivo, mas não foram incluídos neste elenco que gera uma inelegibilidade maior”.

A questão, então, deve ser analisada sob a seguinte ótica: apesar de ser uma hipótese de inelegibilidade e dever ser interpretada restritivamente, já que limita direitos como pensa a doutrina, não há óbice para que sua letra seja alargada.

Na realidade, a existência de condição para ser votado restringe o direito político do cidadão de participar dos negócios do Estado e representar a nação, seja no Poder Executivo ou Legislativo. Ocorre que, entretanto, não é possível que o artigo pré-falado seja considerado uma cláusula “pétrea”, imodificável, em seu sentido interpretativo, se não atende o próprio fim para o qual foi criado: a proteção da sociedade. Não há motivo algum para que um indivíduo que cometa crime contra a economia popular seja inelegível e, outro, que seja estuprador, homicida, seja adorado e estimulado a tomar o poder e representar o povo diante de uma falha legislativa de uma década e que prevalece até os dias atuais.

Deveras, a Constituição Federal estatuiu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, o que quer dizer que a representatividade adequada através de indivíduos idôneos e não criminosos faz parte de uma vida digna de governados que, direta ou indiretamente, serão influenciados pelas atitudes tomadas por eles (eleitos - já que em tese representam os anseios das pessoas). De outro lado, a vida destituída de dignidade em seu sentido amplo, aqui considerada a representação adequada, retira do cidadão o fomento para sua sobrevivência (uma vez que criminoso algum se preocupará com alimentação, saúde, emprego, enfim, com a vida de outrem, mas somente em utilizar o poder como um trampolim para o desenvolvimento dos ilícitos que praticou, pratica e sempre praticará, ainda mais na situação de eleito). Toda sociedade precisa de sustento moral, econômico, social e religioso, o que não provém de delinqüentes no poder.

De outra feita, como o intérprete deve observar a finalidade social a que veio a lei e o atendimento do bem comum(art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil – sobrenorma aplicável a todo o ordenamento jurídico) – resguardar a população de representantes “bandidos e sem escrúpulos” – é que os crimes a serem considerados pelo presente artigo devem ser incluídos em um rol meramente exemplificativo, sendo somente um guia para o intérprete. Aliás, o legislador disse menos do que deveria.

Assim, amparado pela própria Carta Constitucional, pelo próprio ordenamento jurídico e, principalmente, por um sentimento de justiça inerente ao ser humano, o presente dispositivo legal já ultrapassado, não poderá permitir a eleição de candidato se cometeu qualquer crime e foi condenado com sentença transitada em julgado.

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Como citar o texto:

MINIKOWSKI, Paulo Aurélio Perez..A correta interpretação do artigo 1º, I, "e", da Lei de Inelegibilidades. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 126. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-eleitoral/583/a-correta-interpretacao-artigo-1-i-e-lei-inelegibilidades. Acesso em 16 mai. 2005.

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