Tramita no Congresso Nacional, atualmente na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, da Câmara dos Deputados, a proposta de texto legal que regulamenta o ingresso do seguro obrigatório de responsabilidade civil para os profissionais médicos, no universo jurídico brasileiro.

É o Projeto de Lei Complementar n° 137 de 1996, que acresce ao artigo 20 do Decreto-lei n° 73, de 21 de novembro de 1966, a alínea "m".

Em que pese existirem, aparentemente, ao olho leigo, aspectos positivos nesta forma de contrato, os quais trazem a também aparente impressão de segurança ao profissional médico, às clínicas e aos hospitais, esta forma de seguro pode ser extremamente nociva a estas entidades e profissionais.

Muitas razões fundam a rejeição a este modelo de seguro, especialmente com relação ao médico, que ficará altamente exposto, caso esta modalidade seja adotada como norma obrigatória para sua classe profissional.

O seguro é uma das maneiras mais baratas de socializar o risco. O seguro de responsabilidade civil, atualmente, não se encontra perfeitamente definido e regulamentado pelas seguradoras no Brasil e a nova lei em discussão, não esclarecerá possíveis questionamentos, tampouco tornará a matéria menos nociva aos profissionais médicos.

O texto legal em elaboração é fruto de forte lobby das companhias seguradoras, que querem explorar no Brasil, este mercado, que é um gordo filão já existente em outros países, notadamente nos Estados Unidos, ainda que lá não seja obrigatório.

Ocorre que o modelo americano é aplicado em uma sociedade e em um sistema jurídico absolutamente diverso do nosso.

Assim, mesmo que o texto legal defina a amplitude e a extensão da cobertura deste seguro, ocorrerão dúvidas e incertezas e, certamente, os interesses da classe médica serão atingidos de forma expressiva. Ainda mais se a contratação for obrigatória.

A matéria que envolve o tema má conduta profissional médica é extremamente complexa e cercada de alta indagação jurídica .

A justificativa do projeto de lei e do próprio texto da lei em estudo reconhecem este fato ao proporem que as indenizações pelas seguradoras somente serão devidas ante prova cabal da responsabilidade civil dos prestadores de serviço de assistência à saúde por omissão, negligência, imperícia ou imprudência.

Cada fato ou acusação de má conduta profissional tem as suas peculiaridades. Na ciência médica, nem tudo é o que parece ser.

Em nosso sistema jurídico, diversamente do sistema americano, facilmente as seguradoras encontrarão meios processuais para se esquivarem de suas obrigações contratuais, posto que o seguro de responsabilidade civil para profissionais médicos exigirá prova inequívoca de culpa por parte do prestador de serviço médico ou admissão espontânea de prática desta má conduta profissional.

A configuração desta má conduta, na prática, não é simples e, geralmente, redunda em processos com aprofundada análise jurídica dos fatos e exaustiva investigação probatória.

As seguradoras, portanto, ao figurarem como parte passiva, não teriam dificuldades e não exitariam em levar inúmeros casos para discussões judiciais intermináveis, o que viria em prejuízo do segurado e do próprio beneficiário do seguro.

No ínterim da discussão, o médico não estaria isento dos aborrecimentos e encargos financeiros relativos à sua defesa e à instrução probatória e, a todo tempo, figuraria como parte solidariamente responsável no processo, conjuntamente com a seguradora, na forma do artigo 101 do Código de Defesa do Consumidor.

O contrato de seguro não garante que o ressarcimento pleiteado pelo beneficiário - autor da reclamação indenizatória - se limite aos valores segurados. Na realidade, o que se observa na maioria dos contratos de seguro desta natureza é que o valor do prêmio normalmente é bastante inferior aos valores que têm sido fixados a título de indenização pelos nossos Tribunais.

Ademais, necessária reflexão acerca da questão que envolve a legitimidade em requerer a reparação de danos advindos da má conduta profissional de um médico.

Além do próprio paciente, seus familiares também poderão pleitear indenização, sendo que dentre estes poderão estar compreendidos: pais, irmãos e irmãs, filhos e filhas, noras, cunhados, netos e netas, avôs e avós, sobrinhos e sobrinhas, tios e tias e demais pessoas que possam sentir –se lesadas, pois, frise-se que os danos advindos de uma má conduta profissional não são apenas materiais, mas também e principalmente morais, os quais são mensurados de forma subjetiva.

Na hipótese de diversas pessoas pleitearem por uma indenização pelos danos decorrentes de uma má conduta profissional de um médico, em conjunto ou separadamente, o contrato de seguro terá um limite de cobertura e os valores que ultrapassarem este limite serão de encargo do segurado.

A presença do seguro é um incentivo ao ajuizamento especulativo de demandas judiciais, criando uma verdadeira "indústria" da indenização e, também, uma forma de utilização, pelo judiciário, da lei do menor esforço, posto ser mais fácil forçar a utilização do seguro do que investigar o fato.

A utilização do seguro - sem haver a propositura de uma demanda judicial - por parte do médico, implica no reconhecimento da culpa. Ou a seguradora pagaria indenização por erro médico, ou mesmo por erro profissional escusável , se o médico não agiu com culpa?

Porém, o reconhecimento espontâneo da culpa raramente poderá ser feito sem prejuízo da imagem ético-profissional, sem abalo à reputação profissional e comunitária do prestador do serviço médico, bem como de suas relações perante o CRM, além de ter reflexos na esfera criminal, cuja abrangência o seguro não evita.

Tudo isso sem falar na questão de natureza ética que envolve a relação médico-paciente e na questão do aumento do custo dos serviços médicos que a implantação do seguro de responsabilidade civil acarretaria, como acontece nos Estados Unidos.

Outro fator que deve ser levado em consideração é o fato de que, diante de uma ação judicial de cunho indenizatório, o profissional médico fica adstrito aos profissionais credenciados pelas seguradoras para elaborar sua defesa.

Verifica-se, portanto, uma grande insegurança e um elevado grau de risco para o profissional médico, posto não ser possível escolher um profissional da sua confiança para a elaboração de sua defesa, ou, querendo eleger este profissional, terá que arcar com o ônus desta contratação, frente à limitação quanto aos valores referentes aos honorários, colocado pelas seguradoras.

Finalmente, tem-se ainda a questão do ato médico no tempo. É cediço que em diversos casos, possíveis danos advindos de um ato médico, podem levar anos para serem percebidos pelo paciente, ou mesmo que o paciente perceba desde logo, pode levar anos para decidir por pleitear uma indenização, judicial ou extrajudicialmente.

A cobertura do contrato abrange possíveis condenações decorrentes de atos médicos praticados antes da sua contratação? E nos casos em que o pedido de indenização ocorrer após o término da vigência do contrato, ainda que o ato tivesse ocorrido na vigência do mesmo?

É necessário, portanto, que os profissionais da área da saúde, notadamente os médicos, estejam atentos às peculiaridades e conflitos existentes acerca dos contratos de seguro de responsabilidade civil, sob pena de serem seduzidos por uma segurança frágil e ilusória.

Então, como fazer para conter a onda de ações de indenização que tem assolado os tribunais do país contra médicos?

Trabalhar muito em prevenção e ações jurídicas profiláticas. O médico tem que estar preparado para evitar a má conduta profissional e não assegurar-se para repará-la.

Esta é a lógica correta para atuação do médico.

Deve, também, ser estabelecida a diferença entre erro profissional (escusável, iatrogenia) e má conduta (advindo de negligência , imprudência e imperícia).

O judiciário brasileiro tem analisado, caso a caso, com responsabilidade, profundidade e interesse, as demandas que envolvem acusação por má prática profissional. Logo, a jurisprudência estará sedimentada sobre o assunto, posto que esta avalanche de ações se deve em grande parte às novidades advindas com a edição do Código de Defesa do Consumidor e, também, pela fomentação sensacionalista de matérias na imprensa, por parte dos "interessados".

A adoção de seguro (obrigatório ou não) de responsabilidade civil dos profissionais médicos não alterará o comportamento de quem não quer agir corretamente. Contra estes já existem leis que podem ser aplicadas. Para estes, o seguro é um incentivo a continuar como estão.

Antes de adotar esta modalidade de seguro, que em nada contribui para com o avanço da ciência médica e para com o exercício da medicina, urge que sejam elaborados novos textos legais definindo e regulamentando a atuação do médico e modernizando o seu código de ética profissional, normatizando seus deveres e suas obrigações de forma mais clara e elucidativa.

Assim, a adoção do seguro obrigatório de responsabilidade civil deve ser visto pela classe médica com reservas, intensificando-se ações no Congresso Nacional para acompanhar a elaboração do texto legislativo.

Este seguro não trará vantagens nem segurança aos prestadores de serviços médicos e seus usuários. A grande vantagem ficaria, com certeza meridiana, com as seguradoras, que ganhariam um mercado lucrativo e inesgotável para explorar.

(Concluído em 25/07)

 

Como citar o texto:

NEMETZ, Luiz Carlos..Seguro obrigatório de responsabilidade civil para profissionais médicos – a quem interessa?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 141. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-responsabilidade-civil/741/seguro-obrigatorio-responsabilidade-civil-profissionais-medicos-quem-interessa. Acesso em 29 ago. 2005.

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