É frustrante ver a UNE, com uma história admirável de lutas em favor da liberdade política, promover uma manifestação contra a corrupção e a política econômica do atual governo e, ao mesmo tempo, promover a defesa do Presidente Lula. A mesma frustração sentimos em relação à participação da CUT, do MST e outras organizações sindicais, no movimento peleguista ocorrido no último dia 16, em Brasília.

Quanto à UNE, seus atuais dirigentes lançaram nas latas de lixo da capital federal todo um legado construído ao longo da história estudantil de nosso país, com sacrifício e com muito combate. Uma história de conquistas sociais e de liberdades políticas muitas vezes pagas com o sangue da militância estudantil.

É difícil compreender a posição assumida pela UNE, pela CUT e demais organizações sindicais e sociais. Tudo leva a crer que a manifestação foi um produto explícito do fisiologismo e do paternalismo da burocracia estatal operada pelo atual governo. Afinal de contas, a entidade estudantil acabara de receber mais de um milhão de reais do governo federal e a CUT nunca viu tantos recursos para seus “programas sociais”, cujas transferências já foram objeto de glosa pelo TCU.

Indiscutivelmente, foi uma manifestação turbinada pelo combustível ideológico do fisiologismo mais nocivo. O pior é que, com a tal manifestação transportada por ônibus pagos pelas entidades (na verdade, com recursos recebidos do próprio governo), o Presidente Lula imagina estar governando com o apoio do povo brasileiro. Por sua vez, os dirigentes das referidas entidades de classe imaginam-se, também, legítimos representantes e líderes de suas respectivas categorias. Isto explica o discurso do Presidente: não sabe de nada e não se considera responsável pelo atual mar de corrupção.

É verdade que a UNE, hoje, não passa de um braço do PCdoB na condução do movimento universitário. Nos últimos anos, já não consegue representar a classe com a mesma legitimidade política dos históricos tempos de luta contra o Estado autoritário. Na esteira desse processo de deterioração política, a manifestação do dia 16 representou a falência da legitimidade dos atuais dirigentes da UNE. Isto porque, além do fisiologismo político, foi ela marcada por uma contradição explícica: condenar a política econômica do atual governo e, ao mesmo tempo, defender e manifestar apoio ao Presidente Lula.

Como se não o sistema de governo não fosse o presidencialista. Como se o Presidente Lula não fosse o responsável pelos atos de seus ministros, por ele escolhidos e nomeados. Como se o ministro Palocci e Henrique Meirelles não lhe fossem subordinados. Ou o Presidente concorda plenamente com a política econômica de seus ministros ou deve demiti-los.

Aliás, o Presidente é também responsável por todos os atos cometidos pelo seu ex-ministro José Dirceu. Se este, no exercício de sua função ministerial, praticou qualquer ato de corrupção para dar sustentação política ao governo, assim o fez com o conhecimento e, no mínimo, com a conivência do Presidente Lula. Isto já seria suficiente para se atribuir responsabilidade ao Chefe do Executivo pelos atos de corrupção que a UNE e as demais entidades condenaram na manifestação de Brasília.

A manifestação da UNE só agradou ao presidente Lula, que convidou os caciques estudantis e sindicais para um “encontro para platéia”, ocorrido logo após os discursos recheados de chavões e palavras de ordem, mas marcados pela contradição de condenar a corrupção e apoiar o principal responsável por toda essa crise política.

Mas não agradou ao povo e, em especial, históricas lideranças políticas e estudantis. Duarte Pacheco, vice-presidente da UNE (1963-64), em recente artigo, escreveu que “o Presidente Lula não pode ser desvinculado sequer das decisões e iniciativas de seu partido, o PT. Mesmo tendo deixado de ser o presidente formal do partido há vários anos, Lula continuou sendo o presidente de fato e o principal e incontestado líder da tendência Articulação. É insustentável, portanto, a tentativa patrocinada pelas entidades que se manifestaram em Brasília, de separar o criador de suas criaturas.” Para o histórico militante universitário, os atuais dirigentes da UNE defendem a apuração de “todas” as denúncias de corrupção, “mas excluem a apuração das denúncias que por acaso envolvam diretamente o presidente Lula.”

A conclusão de Duarte Pacheco deixa um alerta que merece a reflexão dos que se preocupam com a situação política brasileira: “como ex-diretor da UNE entre julho de 1963 e abril de 1964, não posso deixar de entristecer-me ao verificar que a gloriosa entidade dos estudantes universitários brasileiros vem embarcando numa nova fase “governista” ou “ministerialista”, como a que maculou sua história pouco tempo depois da democratização de 1946.

 

Como citar o texto:

LEAL, João José..Manifestação da UNE contra a Corrupção: Fisiologismo e Peleguismo Ideológico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 142. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/756/manifestacao-une-contra-corrupcao-fisiologismo-peleguismo-ideologico. Acesso em 6 set. 2005.

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