Finalmente, Paulo Maluf foi preso, juntamente com seu filho Flávio. Era uma prisão há muito esperada. Por isso mesmo, foi feita sob os holofotes da mídia eletrônica e com direito a entrevistas concedidas no atropelo da constrangedora caminhada que separa o espaço de liberdade individual do interior sombrio do cárcere, onde impera o poder de controle total exercido pelo Estado sobre a liberdade física do cidadão considerado infrator da lei penal.

O conhecido político paulista - já desacreditado por inúmeras e velhas denúncias de corrupção - vinha driblando a polícia e a própria justiça criminal, desde os anos 60. As denúncias, muitas delas estribadas em prova documental, eram sempre rechaçadas com veemência pelo acusado. Sempre negou a prática de qualquer ato de corrupção e a existência de contas bancárias no exterior, mesmo diante de documentos comprobatórios.

Chegou ao desplante de negar sua própria assinatura num documento bancário referente a uma de suas contas num banco estrangeiro. Foi uma cena ridícula, veiculada pela mídia eletrônica e marcada pelo deboche. Afinal, todo o homem público tem o dever de se conduzir com o mínimo de respeito e de seriedade em face da opinião pública. Nunca foi o caso de Paulo Maluf, que tratou os eleitores e a opinião pública em geral com descaso e sem qualquer compromisso com a verdade.

Na verdade, desde os tempos da ditadura militar, quando exerceu mandatos biônicos nos executivos da cidade e do Estado de São Paulo, Paulo Maluf ficou conhecido por inúmeros atos de improbidade administrativa: fuscas indevidamente doados a jogadores de futebol campeões do mundo; ambulâncias distribuídas a centenas de prefeituras brasileiras; hospedagens em hotéis de luxo para prefeitos e políticos de todo o Brasil receberem comendas e homenagens sem qualquer valor ou significado; flores para suas respetivas mulheres; 500 milhões de dólares fraudulentamente desperdiçados no absurdo projeto PAULIPETRO, que abriu poços fantasmas em diversos municípios brasileiros, sem que tivesse produzido uma gota sequer de petróleo.

Todo este despudorado processo de aliciamento e de corrupção foi praticado com um único objetivo político: pavimentar seu projeto pessoal de se eleger presidente da República, no Colégio Eleitoral dos tempos da ditadura militar.

Nos últimos anos, o foco das denúncias concentrou-se num provável desvio de recursos financeiros de obras públicas construídas, em sua última administração na Prefeitura de São Paulo, a partir de licitações com preços altamente superfaturados. A obra do túnel Airton Sena teria sido a principal fonte de apropriação indébita desses recursos remetidos ao exterior. Há forte evidência de que os mais de 300 milhões de dólares descobertos em suas contas bancárias fora do país tenham origem em recursos desviados dos cofres públicos paulistanos.

Pelo menos, ficou comprovado que Paulo Maluf e seu filho Flávio transferiram ilegalmente para a conta Chanani, do Banco Safra de Nova Iorque, a considerável importância de 161 milhões. Diante dessa prova inequívoca de crimes financeiro, de evasão de divisas e de lavagem de dinheiro, os acusados tentaram silenciar o também acusado e agora colaborador da justiça, Vivaldo Alves, doleiro responsável pela operação criminosa.

Com a gravação da conversa entre o doleiro e Flávio Maluf, caiu a cortina de fumaça da impunidade que sempre protegeu Paulo Maluf e, lamentavelmente, ainda continua protegendo a maior parte dos criminosos de colarinho branco. São os que não roubam pão, nem galinhas, nem tênis, nem mesmo automóveis estacionados nos pátios de igrejas, de supermercados ou nas ruas de nossas cidades, mas são os que assaltam e lesam os cofres da nação brasileira em bilhões de reais.

São crimes praticados por meio de complexas e tortuosas operações contábeis e financeiras, sempre à sombra da lei e por agentes que comandam a própria vida econômico-social. Apresentam-se aos olhos da sociedade como respeitáveis homens públicos e empresários privados. Isto dificulta a ação da polícia e da justiça. Daí, a impunidade da delinqüência econômicofinanceira em nosso país. Leis existem, mas faltam condições operacionais. Em muitos casos, na verdade, o que falta é vontade política para aplicá-las com a mesma eficácia e severidade com que são aplicadas as leis que punem a criminalidade comum contra o patrimônio particular, o tráfico, contra a pessoa ou contra liberdade sexual.

Daí o mérito da decisão da juíza federal Sílvia Maria Rocha, que teve a coragem e a sensibilidade éticojurídica de decretar a prisão preventiva dos dois acusados de crimes econômicofinanceiros tão graves e repugnantes. Não se trata de defender a prisão provisória como instrumento sistemático de se promover a justiça criminal, mas de aplicá-la a casos de excepcional gravidade, como aliás já se faz em relação aos acusados da chamada delinqüência hedionda. Para estes, de forma discriminatória, a lei chega ao máximo da severidade de não lhes permitir a concessão de liberdade provisória.

No caso dos acusados Maluf, parece claro que a prisão preventiva, decretada para assegurar a normalidade dos atos de instrução criminal é perfeitamente necessária, nos termos do art. 312, do CPP. Em liberdade, os acusados continuariam a dificultar a ação da justiça, como aliás assim procederam até o presente momento. Como é comum no caso de delinqüência econcômicofinanceira, Paulo Maluf nunca se mostrou disposto a admitir fatos, a cooperar com a justiça, nem a reparar o dano causado. Ao contrário, sua atitude foi sempre pautada pelo deboche, pelo sarcasmo, pela arrogância e pela ofensa à Instituição do Ministério Público e da própria Justiça Criminal.

Não devemos esquecer que a legitimidade éticojurídica da justiça criminal decorre de seu compromisso em assegurar os princípios da segurança coletiva e do bem estar social, para que os indivíduos possam conviver num espaço de normalidade social. E é evidente que esses princípios foram objeto de grave e profunda lesão material pelas ações praticadas por ambos.

Parece-nos que a prisão se justifica e se torna necessária, também, para garantir a ordem econômica, gravemente lesada pela ação dos acusados. Esta foi uma opção feita pelo legislador, em 1994, ao inserir mais este fundamento de prisão preventiva no texto original do mencionado art. 312, do CPP. É uma disposição processual muito pouco observada pelos tribunais, apesar do discurso acadêmico de que é preciso reprimir com efetividade a delinqüência econômicofinanceira. Na verdade, o dispositivo legal tem se mantido em desuso, sob o argumento repisado de que esta categoria de criminosos tem família, residência fixa, ocupação lícita e definida, passaporte para entregar e que, portanto, não representa perigo para a coletividade. Em resumo, salvo exceções, a posição reiterada dos tribunais é que para estes criminosos não há necessidade de prisão provisória, de qualquer espécie.

A nosso ver, as enormes fraudes financeiras e os atos de corrupção de centenas de milhões de reais ofendem a ordem econômica com tamanha profundidade, que abre uma chaga permanente no plano do ordenamento jurídicopenal. Se isto é verdadeiro, não há dúvida sobre a conveniência e a legitimidade políticojurídica da prisão preventiva decretada para proteger e garantir a ordem econômica, conforme prevê o referido dispositivo processual. É preciso desestimular a prática da delinqüência econômicofinanceira em nosso país e isto somente ocorrerá com a repressão firme, legal e severa dos grandes respeitáveis criminosos.

É preciso repensar essa equivocada condescendência de nossos tribunais em relação a esta forma de delinqüência e de criminosos. Estes atuam com base num estimulante prognóstico de impunidade criminal. Sabem da dificuldade dos órgãos de investigação de da própria justiça criminal de processá-los e de condená-los. Caso isto venha a acontecer, contam ainda com o salvo conduto do passaporte, levado às pressas a juízes e tribunais com a promessa de não deixarem as fronteiras do país. Em muitos casos de graves delitos desta natureza, de forma paradoxal e com a condescendência da própria justiça, o passaporte tem se transformado num documento de compromisso judicial de não cruzamento de fronteiras nacionais e símbolo de verdadeira garantia individual de liberdade provisória, comparável ao instituto do hábeas corpus.

É claro que Paulo Maluf e seu filho Flávio têm direito ao devido processo legal e à ampla defesa. Seus advogados irão bater às portas dos Tribunais para buscar a concessão de liberdade provisória. Até é possível que consigam. Afinal, possuem passaporte e apresentam os requisitos meramente formais para o benefício. No entanto, a questão deve ser examinada, também, sob o aspecto substancial, no sentido de se saber se há efetiva necessidade de se mantê-los sob prisão processual.

Para uma resposta ética e juridicamente correta, pautada na hermenêutica da eqüidade, é preciso não esquecer que, atualmente, as prisões brasileiras abrigam mais de 100 mil presos provisórios, para os quais a justiça criminal encontrou o necessário fundamento jurídico para encarcerá-los, antes do julgamento final do processo. Em conseqüência, se partirmos do pressuposto de legitimidade políticojurídica do instituto da prisão provisória, necessário para manter a convivência social em nível de normalidade, devemos admitir que pode e deve ele também ser aplicada aos autores de graves crimes econômicofinanceiros.

Se a igualdade é um princípio consagrado na Constituição Federal, é preciso que o instituto da prisão preventiva seja aplicado com a necessária eqüidade, sem discriminar o tostão do milhão. Afinal, cadeia não foi feita apenas para pobre, principalmente, no Estado Democrático de Direito.

 

Como citar o texto:

LEAL, João José..A Prisão de Paulo Maluf e a Legitimidade da Prisão Provisória. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 144. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/787/a-prisao-paulo-maluf-legitimidade-prisao-provisoria. Acesso em 17 set. 2005.

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