Sob qualquer perspectiva que se pretenda analisar o problema do direito e de sua relação com a moral, o tema sempre pressupõe uma dúvida: sobre o papel do jurista no processo de realização do direito, uma vez que é da sua atividade hermenêutica vinculante que decorre um dos instrumentos mais eficazes para que o desenho de um modelo sócio-institucional justo, livre e solidário não seja sacrificado em função de interesses arbitrários e injustificadas interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social.

É matéria, esta da função interpretativa, em que o ser humano na sua dimensão ético-social, a prudência, a equidade e a justiça do caso concreto têm primazia. E porque todos os operadores jurídicos têm uma filosofia de vida e do direito – embora alguns deles, ou talvez muitos, não o saibam – encontramo-nos, nesse âmbito da interpretação e aplicação jurídica, com o problema da necessária interferência e inclusão de elemento valorativo no ato de julgar, ou seja, da iniludível e por vezes dissimulada relação entre o moral e o jurídico.

Daí que parece haver um sentido comum de que o direito moderno  segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a moral, ou seja, de que não se tornou exclusivamente instrumental como pretendem algumas variantes do positivismo jurídico. E porque o fenômeno jurídico não surgiu do “nada”, a ética parece estar intimamente ligada ao direito: todas as normas jurídicas foram criadas a partir de um juízo ético surgidos para harmonizar os vínculos sociais relacionais que estabelecemos ao longo de nossa secular existência.  

De fato, é essa pretensão de correção moral que permite distinguir entre o direito e a força bruta, que permite distinguir (ou não) entre a ordem de um delinquente (“a bolsa ou a vida”) e a ordem de cobrança de uma determinada contribuição, enfim, que permite considerar o direito como uma estratégia sócio-adaptativa, uma praxis ético-social destinada a gerar discursos jurídicos materialmente justos e com potencial capacidade de consenso para a solução de determinados problemas práticos relativos aos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.

Essa inerente pretensão de correção formulada pelo direito compreende uma pretensão de justiça que, em essência, nada mais é do que a correção com respeito a liberdade, igualdade e fraternidade, isto é, com a eqüitativa distribuição e equilíbrio entre essas três grandes virtudes ilustradas. Com efeito, o operador do direito, em toda sua cotidiana atividade, não pode prescindir dessa dimensão axiológica. E porque o direito não somente está destinado ao conhecimento teórico da realidade jurídica senão fundamentalmente a conduta humana em sua dimensão ético-comunitária, as perguntas sobre a justiça são perguntas morais. O magistrado que realiza distribuições e equilíbrios incorretos comete, por essa via, uma falha moral e a pretensão de correção transformam essa deficiência moral em deficiência jurídica: as normas perdem seu carater jurídico se sobrepassam certos limites de injustiça.

Quando as normas negam conscientemente a vontade de justiça, quando os princípios, os valores, os direitos e as garantias consagradas na Constituição são arbitrariamente violados, carecem tais normas de legitimidade e validez, pois não se pode conceber o direito, inclusive o direito legislado, de outra maneira que não esteja destinado a servir a justiça. E quando a injustiça não é oportunamente eliminada pelo legislador, corresponde ao operador do direito o dever e a coragem de deixar de efetivá-la, de negar o pretenso caráter jurídico de normas arbitrariamente impostas. Esse o papel que cabe ao jurista ( e particularmente ao juiz) na sua praxis hermenêutica. Mas podem operadores do direito educados no positivismo jurídico até aqui dominante, na aplicação do direito,  ter a pretensão de não desprezar a vinculação necessária entre direito e justiça?

Parece que sim, desde que se considere que essa vinculação ( entre o direito e a moral) está fundada na idéia de que toda a atividade do jurista-intérprete deve estar permeada pela pretensão de que suas decisões sejam moralmente corretas e justas. A ela (atividade)  lhe corresponde a intenção e o dever moral e jurídico de decidir corretamente, de que embora necessário , não é suficiente para resolver um problema jurídico o simples recurso a  artifícios legais e ao muito limitado esquema de silogismo interpretativo ou de coerência lógico-formal. A independência do operador do direito ( e do judidiário) não é outra coisa que a manifestação da autonomia do direito, comprometido eticamente com o imperativo segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências, sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria humana, permitam a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum, isto é, com a criação de um modelo sócio-institucional livre, justo e solidário que permita a constituição de uma comunidade de homens livres e iguais unidos por seu comum, legítimo e compartido submetimento ao direito e em pleno e permanente exercício de sua cidadania.

O ato de decidir contra qualquer forma de arbitrariedade ou interferência injustificada carrega consigo a virtuosa intenção de mudar um estado de coisas de conformidade com algo que se pretenda justo: com a idéia de que o homem, mesmo quando se converte em objeto de ordens estatais supraindividuais, sempre deve ser respeitado como um fim em si mesmo e não como instrumento de episódicos e injustificados interesses políticos ou de conveniência econômica, isto é, de que na qualidade de sujeito destinatário de um ato imperativo do Estado (leis, sentenças, etc.) possa participar legitimamente de sua formação por meio de eficazes medidas de controle, a fim de evitar que o abuso de autoridade ou a falta de correção moral por parte do operador do direito rompa os limites que asseguram o âmbito prático da decisão justa.

E assim deve ser porque na grande maioria das vezes estão submetidas a juízo a virtude na aplicação da Constituição, a realização da justiça concreta, a integridade do direito e a própria idéia de um judiciário autônomo e independente. Somente atuando guiado por uma justa e virtuosa pretensão de correção poderá vir o operador do direito a afirmar-se como agente histórico preocupado com a justiça e com a Constituição da República, não somente controlando toda a desregrada maquinária estatal em suas funções administrativas e legais, senão também assegurando de forma efetiva os princípios , valores, direitos  e  garantias constitucionalmente consagrados.

É preciso reconhecer que não somente desde a lex corrupta insensatamente aplicada provém o injusto real como  na  aplicação do direito intervêm , ademais da razão, os sentimentos e as emoções:  para ser um bom advogado, magistrado, promotor etc., não basta com  ter capacidade argumentativa ( com conhecer o Direito vigente) , senão que é necessário ter outras virtudes como  sentido da justiça , compaixão e valentia. Afinal, o que dá sentido ao direito não pode ser outra coisa que a perene aspiração à justiça ou, para dizer em termos mais modestos e mais realistas: a incessante luta contra toda e qualquer forma de injustiça.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Athus..Direito e moral. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 147. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/etica-e-filosofia/834/direito-moral. Acesso em 10 out. 2005.

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