Está fora de qualquer dúvida razoável o fato de que o tema relacionado com o problema (ontológico e/ou metodológico) do direito pode ser apreciado de diferentes formas. Pois bem, uma das vias possíveis de analisar o fenômeno jurídico parece ser a de oferecer uma reapreciação crítica sobre a gênese e a evolução, o objeto e o propósito do direito prático moderno sob uma perspectiva funcional e evolucionista, convertendo em viável a proposta (e inclusive a exigência) de novos critérios para que os setores do conhecimento no direito sejam revisados à luz dos estudos e investigações provenientes da psicologia evolucionista, da biologia evolutiva, da primatologia e da neurociência .

Nesse particular, a biologia evolutiva, as ciências cognitivas e muito particularmente a psicologia evolucionista, a primatologia e os recentes avanços da neurociência nos ensinam que o comportamento humano (individual, moral e social) se origina a partir da intercessão de nosso sofisticado programa ontogenético cognitivo com o entorno sócio-cultural em que movemos nossa existência.

Ensinam também que determinadas representações culturais devem ser vistas como algo que se sustenta em mecanismos próprios de nossa arquitetura cognitiva inata – que tem uma estrutura homogênea e integrada funcionalmente em módulos ou domínios específicos, entendido estes como redes neuronais que enlaçam zonas diversas do cérebro – e que a programação e o funcionamento desses mecanismos regulam de que modo as representações específicas se transmitem de um indivíduo a outro, distribuindo-se elas mesmas na comunidade em resposta a condições sociais e ecológicas distintas. Em uma palavra: de que é a mente humana (as bases neuronais) a que impõe constrições significativas para a percepção , transmissão e armazenamento discriminatório de representações culturais.

A um nível mais profundo, a existência de mecanismos domínio-específicos também significa que há uma considerável carga de conteúdo mental humano universal, isto é, que para certas coisas há uma só “cultura” universal . Assim : a gramática universal, a lógica do câmbio social, os (quatro) modelos elementares de vínculos sociais relacionais, o altruísmo, a cooperação , a empatia ante o sofrimento dos outros , a capacidade e necessidade inatas para inferir o conteúdo mental e predizer o comportamento dos demais, a teoria da mente, entre tantos outros.

Isso tem grande importância para a filosofia e a ciência do direito, pois, de não ser assim, de não se encontrar restringido cognitivo-causalmente o domínio das preferências humanas ( que conforma o repertório de padrões de atividade de nosso cérebro dos quais emerge nossa conduta), se pode perfeitamente admitir a alteração da natureza humana em qualquer sentido que se deseje e, em igual medida, negar a primera e básica premissa da contribuição científica de que o Homo sapiens é uma espécie biológica cuja evolução foi forjada pelas contigências da seleção natural em um ambiente bioticamente rico e de que temos um cérebro herdado por vía do processo evolutivo, gerado para enfrentar-se a realidades tangíveis e equipado com as ferramentas necessárias para, como um verdadeiro motor semântico, manipular os significados e processar as informações relevantes para resolver os problemas adaptativos de nosso existir.

Apesar das histórias instituídas no sentido contrário, o direito , a antropologia, a sociologia, a biologia evolutiva , as ciências cognitivas, a psicologia evolucionista, a primatologia e a neurociência não podem ser vistas como disciplinas completamente independentes. A peça central para a teoria jurídica é a mesma que para a teoria psicológica : uma descrição e compreensção do fiável desenvolvimento da complexa arquitetura da mente humana, uma coleção de adaptações cognitivas e emocionais .

E uma vez que estes solucionadores de problemas evolutivos são o motor que vincula a mente, a linguagem , a cultura (portanto, o direito ) e o mundo , “a filosofia da linguagem não é nada mais que uma filosofia da mente : de que nenhuma teoria da linguagem pode considerar-se completa se não admite e recolhe as relações que esta mantêm com a mente e o modo com que o significado [...] se fundamenta sobre a intencionalidade intrínseca [...] própria da mente/cérebro”(Searle,1996).

Daí a extrema relevância de se atentar ao fato de que, como nos casos elementares da linguagem , do incesto , do vocabulário de cores e do instinto diádico ou binário (ou seja, a inata propensão a utilizar classificações em duas partes na hora de tratar conjuntos socialmente importantes) , a cultura surgiu da natureza humana e leva sempre seu selo. E embora com a invenção da metáfora e do novo significado, a cultura tenha adquirido, ao mesmo tempo, uma “vida própria”, não é possível compreendê-la sem compreender a complexidade de nossa mente – neste caso, de sua organização em módulos ou domínios específicos e sempre que entendamos estes como redes neuronais que enlaçam zonas diversas do cérebro.

Para entender a condição humana – e o direito é parte dessa condição e a sua idéia (idéia de direito) é o resultado da idéia do homem – há de compreender ao mesmo tempo os genes, a mente e a cultura, e não por separado a maneira tradicional da ciência e as humanidades. E se o direito, enquanto artefato cultural, é originalmente constituído pela polaridade natureza humana/cultura, parece razoável supor que à medida em que a psicologia evolucionista, a biologia evolutiva, a antropologia, a primatologia e a neurociência permitem um entendimento cada vez mais sofisticado do cérebro e da mente humana , as possíveis implicações morais , jurídicas e sociais destes avanços no conhecimento da natureza humana e de nosso sofisticado programa ontogenético cognitivo deveriam começar a ser seriamente considerados pelos estudiosos do direito sob uma ótica muito mais empírica e respeituosa com os métodos científicos.

Com efeito, ao reconhecermos que o direito não é mais nem menos que uma estratégia sócio-adaptativa – cada vez mais complexa, mas sempre notavelmente deficiente - empregada para articular argumentativamente - de fato, nem sempre com justiça - , por meio de atos que são qualificados como “valiosos” , os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens contróem estilos aprovados de interação e estrutura social, nos situamos no elenco de autores segundo os quais qualquer teoria social normativa (ou jurídica) que pretenda ser digna de crédito na atualidade deve sustentar-se em um modelo darwiniano sensato acerca da natureza humana.

Essa a razão pela qual sustentamos não ser mais lícito e possível adquirir uma perspectiva equilibrada do direito estudando as disciplinas a retalhos, senão através da busca de uma “conciliação” verticalmente integrada – ainda que tentada - entre elas. Por certo que isso é algo que não tende a despertar muitas simpatias intelectuais entre os dogmáticos, os pós-modernos e os construtivistas . Apesar das abrumadoras provas acerca da existência de uma natureza humana e de uma realidade independente de causas sociais, seguem em suas crenças defendendo seus postulados auto-refutatórios.

O relativismo cultural ( cuja expansão tem sido tão formidável nos últimos anos que inclusive ocupa já um lugar inquietante no mundo acadêmico), o construtivismo social ( que vem povoando tantas mentes precisamente quiçá por sua inconsistência lógica e sua demonstrada falsidade) e, enfim , o dogmatismo jurídico e o isolamento endêmico das ciências sociais normativas deveriam fazer-nos reflexionar vivamente sobre o ponto de corrupção ao que estas chegaram.

Parece haver chegado o momento de aceitar que o direito não só não teve consciência de sua autarquia intelectual, senão que teve um êxito relativo como ciência e até mesmo enquanto “arte”. De fato, até hoje o direito segue à deriva, com sua enorme massa de observações e construções mal digeridas, com um considerável corpo de generalizações normativas e com um mais que considerável número de teorias de nível médio entrelaçadas que se expressam em léxicos (técnicos ou não) imensuráveis e babélicos.

A desconexão com o resto da ciência deixou um ( e continua agravando o) imenso abismo no pensamento organizado sobre o mundo, fomentando, ademais, teorias e concepções jurídicas construídas a partir do mais displicente descaso pelos estímulos (cognitivos, neuronais, morais e emocionais) que procedem da admirável e ainda desconhecida natureza humana.

Como temos insistido desde há algum tempo, a concepção desagregadora da Ciência é desatinada, já que os valores, os princípios, as normas - enfim, as fontes jurídicas - e os acontecimentos do social – os vínculos sociais relacionais- descansam no, ou são constringidos e condicionados pelo, natural.

E em que pese o fato de que a tendência para a separação entre a cultura e a natureza tem levado, todavia, a que se absolutizem alguns desses valores ( desligando-os das suas origens e das razões específicas que os viram nascer e apresentando-os como de essência espiritual, como uma transcendência que ultrapassa o próprio homem ), a ética e o direito parecem ter uma base mais segura quando relacionados a uma visão biologicamente vinculada à nossa arquitetura cognitiva, isto é, à natureza humana unificada e fundamentada na herança. O sentido da moral e da justiça nao é antitético da natureza humana, senão que forma uma parte integrada da mesma.

Uma compreensão mais comprometida com as causas últimas, radicadas em nossa natureza, do comportamento moral e jurídico humano, pode ser muito importante para reconstruir os melhores e mais profundos pensamentos humanos sobre o direito, potencialmente unificada do lugar que ocupamos na natureza. Afinal, estabelecer princípios e preceitos normativos que não têm nada que ver com a natureza humana é o mesmo que condená-los ao fracasso. É possível, por que não dizer, que a maior parte das propostas de fundamentação teórica e metodológica do direito que já se formularam ao longo da história pequem por sua inviabilidade em função dessa desatenção com relação a realidade biológica que nos constitui , ou seja, pela falta de precisão de sua adesão à natureza humana.

Há que se considerar a circunstância de que os próprios enunciados normativos – dos valores éticos aos direitos humanos – surgiram graças a natureza de nossa complicada arquitetura cognitiva e a inerente sociabilidade que caracteriza nossa espécie, submetidas que estão, por sua vez, às leis da evolução através da seleção natural e a inevitável interferência da cultura. Esses valores pertencem aos códigos da espécie humana como um todo, uma consequência peculiar de nossa própria humanidade que, por sua vez, “constitui o fundamento de toda a unidade cultural”.

Assim entendido, dir-se-á que os limites entre “o direito que é” e “o direito que deve ser” - distinção de que se alimentava o positivismo jurídico e o jusnaturalismo, e que estava ( e ainda está) na base da tradicional teoria da interpretação – diluem-se, pois que é em um “dever ser” assumido como resultado de uma estratégia sócio-adaptativa e como produto de um processo material de mentes funcionalmente integradas, que o direito positivo acaba por ter o critério decisivo da sua interpretação, justificação e aplicação . Isto é, do conjunto de mecanismos necessários (fundamentantes, conformadores e constituintes) a partir dos quais os operadores jurídicos podem articular e combinar, de forma adequada , historicamente contextualizada e com vistas à efetiva proteção do indivíduo, os quatro modelos elementares por meio dos quais os homens constróem estilos aprovados de interação e de estrutura social .

É que ao contrário do que ainda pretendem ou sustentam alguns doutrinadores, o direito estatal, a pesar de seu envoltório teórico e dogmático, não é nada mais que o resultado de uma atividade humana tão antiga como o próprio homem. O que ocorre é que, quanto menos capaz de satisfazer as necessidades adaptativas humano-comunitárias, tanto mais sofisticado se apresenta o direito positivo “parido” e manipulado pelo poder estatal. À normatividade jurídica espúria e/ou abusiva corresponde sempre a parafernália barroca que intenta, em vão, obscurecer sua iniludível dimensão de constructo cultural, institucional e procedimental em benefício exclusivo da dimensão normativa (de autoridade e de poder).

Dito de outro modo, uma vez admitido que em todo processo de realização do direito há cidadãos prenhados de intuições e emoções morais inatas , de certos valores éticos e objetivos políticos , de crenças, desejos e preferências - de primeira e, desde logo, de segunda ordem - , a tarefa interpretativa como ato metodológico ou práxis social consiste, fundamentalmente, na desmedida responsabilidade de organizar a vida social e política de tal modo que nenhum cidadão livre ( pobre ou rico ) tenha de temer a interferência arbitrária dos demais agentes sociais em seus planos de vida.

A existência de um universo infindável a historiar ou a transportar para a cena controvertida em um caso concreto individual, torna essencial a compreensão e a articulação de uma força de ajuste ou de equilíbrio (reflexivo) entre os fatores biológicos e culturais que se conjugam para a solução de um determinado conflito social.

Decerto que tal perspectiva, nomeadamente no âmbito do jurídico e muito especialmente da atividade hermenêutica, pode parecer odiosa e detestável ao mais empedernido dos dogmáticos. Mas como nenhum dogma é derrubado sem resistência, estamos firmemente convencidos de que a iniludível dificuldade inicial poderá ser superada pelo papel que nesse drama dialético , circular , problemático, humano e dialógico venha a assumir o operador jurídico como mediador na , e para a, comunidade da idéia do direito – isto é, da idéia da personalidade do homem, da natureza humana , que constitui a própria essência do direito.

Estamos longe ainda de contar com uma definição precisa acerca da “natureza humana”, mas parece que vamos trilhando um bom caminho para começar e fazê-lo e a compreendê-la. E embora ainda não saibamos grande coisa acerca de nossa natureza, do funcionamento de nosso cérebro, e muito particularmente dos correlatos cerebrais que ditam o sentido da moral e da justiça, converter esse mar de especulações em certeza é decerto a tarefa que se espera da ciência , no preciso sentido de que uma compreensão mais profunda das causas últimas (radicadas em nossa natureza) do comportamento moral e jurídico humano poderá vir a ser de grande utilidade para averiguar quais são os limites e as condições de possibilidade do direito e da justiça no contexto das sociedades contemporâneas.

Com efeito, se aceitamos os melhores dados disponíveis sobre como são os seres humanos podemos reconstruir os melhores e mais profundos pensamentos humanos sobre o direito e a tarefa do jurista-intérprete de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo em sua relação na prática cotidiana.

E longe de ser inimiga das teorias tradicionais, a perspectiva evolucionista/ funcional é um aliado indispensável das mesmas. Não se trata de subestimar o abundante trabalho realizado até o momento no campo do pensamento jurídico e de sua realização prático-concreta em prol de uma alternativa adaptacionista, senão mais bem assentar dito trabalho sobre os cimentos que merece: uma visão realista, naturalista, potencialmente unificada do lugar que ocupamos na natureza.

Essa a ventura que correrá qualquer um que aspire a entender melhor o fenômeno jurídico e que se atreva a rastrear caminhos ainda pouco trilhados , em todo o momento sem perder de vista a necessidade e o compromisso ético de desenhar um ambiente normativo e institucional o mais amigável possível para com os direitos ( e os deveres ) que habilitam publicamente a existência do indivíduo como cidadão em um mundo desinteressado, já não mais visto como criado por Deus e no qual o direito está destinado a servir a natureza humana e não o contrário.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly; FERNANDES BISNETO, Atahualpa..Direito e evolucionismo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 155. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/932/direito-evolucionismo. Acesso em 5 dez. 2005.

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