"Há cerca de setenta e cinco anos eu aprendi que não era Deus. E assim, quando os habitantes dos vários Estados desejam fazer alguma coisa que a Constituição não proíbe expressamente, eu digo, quer eu goste ou não: — Que se danem, se querem fazer que o façam!" Oliver Holmes

1) – O REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NA CARTA DE 88

Podemos afirmar sem sofismas, que somente há pouco mais de 10 anos, o Estado brasileiro deparou-se com um obstáculo que lhe ensinou que não há deuses na direção dos poderes instituídos. Foi no não tão distante 05 de outubro de 1988, que a nova ordem constitucional inaugurada pela iniciativa do constituinte, já optou em seu art. 1º, pela eleição da república, mas constituída em Estado Democrático de Direito, como forma de organização política, consagrando como pressuposto fundamental do exercício do poder, o respeito pelos direitos e garantias individuais.

Uma década não foi suficiente para que as autoridades governamentais implementassem seu conjunto de propostas, sonegando a cidadania plena e impedindo o gozo e o exercício completo das garantias e direitos civis que finalmente mereceram proteção constitucional expressa.

Diante da ineficiência dos meios de respostas oferecidos pelo Estado aos grupos que chamaremos de vulneráveis, a deslegitimação das ações do cidadão comum conduz a um processo de decomposição da cidadania nessas esferas onde se desenvolvem relações sociais hostilizadas pelo discurso legitimante dos agentes do Estado, que lhes sonega garantias jurídicas, direitos e instrumentos que assegurem sua proteção, promovendo em última análise a negação pontual do direito de acesso à justiça topicamente dirigida aos grupos vulneráveis. Muitas dessas garantias, v. g., as obrigações impostas ao Estado, de assegurar o direito à educação (art. 205), saúde (art. 196), assistência aos desamparados, (art. 203), têm sido pouco observadas ou implementadas com dificuldades, em parte pela carência de políticas públicas e posições governamentais a respeito, mas fundamentalmente pelo descaso dos operadores do direito, que têm negado a devida atenção e tratamento jurídico à questão que se forma em torno dos "direitos sociais", enumerados no corpo do art. 6º, e que não é feita através de numerus clausus, já que o programa que apresenta a carta política, é flexível e ampara o reconhecimento da juridicidade e da legitimidade de novas garantias, e direitos que não encontrem expressa proteção no texto constitucional, conforme prescreve o comando do art. 5º, LXXVII, § 2º.

Modernamente, os sistemas constitucionais ocidentais têm abandonado a postura aludida na epígrafe, que marcou o discurso do então membro da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, Oliver Holmes.

Se durante a consolidação da ordem liberal, as Constituições foram concebidas como obstáculos jurídicos à atuação onerosa das instituições, isto é, atendendo "à função de estabelecer negações explícitas"(Luhman), primam contemporaneamente, por fundamentar a organização política nacional e principalmente suas relações internacionais, na proteção e defesa dos direitos e garantias da pessoa humana, que tendem a exigir do Estado, atividade interventora dos poderes públicos, não apenas na prática de prestações assistenciais positivas nos moldes do Welfore State, mas de um novo Estado Constitucional de Direito, orientado por cartas políticas identificadas pela "imposição de tarefas e programas que os poderes públicos devem concretizar" sejam elas programáticas, dirigentes ou compromissórias, para utilizar a classificação de Canotilho, de forma a construir um ambiente de efetividade das promessas iluministas, esquecidas por um lapso de tempo, irrelevante se pensarmos em termos de civilização humana, mas doloroso se imaginarmos que este jovem modelo político que convencionamos a nomear de Estado Moderno, nascido como produto direto de aspirações libertárias e humanistas do movimento iluminista, demorou pouco menos de seus quase mais de dois séculos de existência para aprender o que constituíam, em termos concretos, aquelas três ainda hoje, quase místicas palavras: libertè, igualitè, fraternitè.

Se é novel a atividade estatal no plano social, e restrita a preocupação do jurista contemporâneo com estes problemas, enquanto também problemas jurídicos, é um pouco distinta a situação dos direitos civis com status constitucional. Em momento de consolidação do novo Estado Constitucional de Direito, que prega uma intervenção estatal crescente, na busca de meios que assegurem a defesa pragmática de suas propostas, não escapa ao Estado, o poder de vigilância da lesão a esses direitos (típico do modelo liberal clássico), extendendo também à vigília do correto exercício desses direitos, consoante a clássica doutrina francesa das liberdades públicas, que ainda hoje transpira atualidade. É de se observar, que o reconhecimento jurídico de certos direitos de liberdade, que constituíam no momento da Revolução Francesa, em liberdades positivas (direitos de agir), ou em liberdades negativas (não impedimentos), hoje não mais pode exigir do Estado, a garantia de intangibilidade absoluta que já os inspirou.

O tratamento constitucional dado aos direitos civis, enquanto "direitos individuais", pode produzir nos menos atentos, equívocos quanto à extensão do poder de constrangimento (conteúdo).

Os direitos de liberdade, concebidos tendo a autonomia como conteúdo, têm inspiração nitidamente kantiana, que definia a liberdade como a "independência em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade do outro". E o ideário kantiano serviu perfeitamente ao Iluminismo, e ao modelo político atacado por suas propostas libertárias, um modelo estatal absoluto. O movimento político era adequado a determinada concepção dos direitos de liberdade do homem, direitos de cunho eminentemente privatístico, natural que era a exigência imediata de liberdade diante do Estado que somente lhes impôs deveres (despótico), mas que não atingiu os modernos processos de representação e organização política.

Lembrando novamente a doutrina publicista francesa, tais direitos, cuja titularidade reside na pessoa humana, que é portadora de meios de defesa e proteção dos mesmos, assegurados pelo Estado, não podem utilizá-los de modo inadequado ao fim a que se destinam, não sendo, portanto, direitos que se justificam em torno de si mesmos, mas direitos subjetivos públicos, já que consoante registra Bobbio, o modelo de um Estado Democrático de Direito, não

coaduna com a proposta individualista do Iluminismo, que norteou a definição descrita supra, tutelando agora direitos que não são apenas privados, mas públicos.

Essa alteração no tratamento dos direitos fundamentais da pessoa humana, vem ao encontro deste modelo político proposto pela carta compromissória de 1988, o Estado Constitucional de Direito, que atribui a esses direitos, meios de defesa (garantias), assume sua função programática da ordem econômica, social, jurídica e política, mas exige de seu titular, o exercício adequado, de modo a não neutralizar o exercício de outro direito fundamental que também conta com igual tutela constitucional, lição que nos foi ensinada pela doutrina alemã, sobretudo na forma do "princípio da proporcionalidade" ou "sopesamento" (Abwagung), como querem.

Na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentam, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante.

Precisamente nestes termos, enunciam os alemães acerca da relatividade dos direitos fundamentais, que mais do que meros direitos de resistir o Estado, são direitos exigíveis do Estado, visto como instância de promoção desses direitos e não como obstáculo à existência e efetividade dos mesmos. Devem, sempre que tenderem a se opor contra o exercício de outros, ceder de forma a permiti-lo harmonicamente. Uma carta compromissória não pode conviver com a inoperância de suas propostas.

 

 

2) - A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE E DA VIDA PRIVADA E O IMPACTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO DIREITO BRASILEIRO.

A Constituição da República, enquanto "escolha política fundamental" , no clássico conceito de Carl Schmit , reputou relevante a eleição de certos valores atinentes à proteção da pessoa humana, para que lhes fossem atribuídos status constitucional. Interessa-nos examinar alguns desses valores, de defesa consagrada no comando do inc. X, art. 5º, a intimidade e a vida privada.

Conquanto a maior parte dos constitucionalistas não reconheçam diferenças entre os dois bens protegidos (Bastos; Ferreira Filho) e quando o fazem, não conseguem com o rigor exigido (Afonso da Silva), tal distinção é necessária e se faz importante, como veremos a seguir.

O texto constitucional não fala necessariamente em privacidade (o right of privacy, norte-americano), optando o legislador por criteriosa discriminação de bens a serem protegidos, e que integram aquele rol genérico, intimidade, vida privada, honra e imagem.

O professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, em interessante artigo, traz um estudo bastante rigoroso sobre a matéria. Em primeiro lugar, identifica o princípio da exclusividade, enquanto norteador daquele genérico right of privacy, princípio que se comporta de forma diferente conforme atue sobre objeto jurídico específico, merecendo menor ou maior importância a exclusividade, conforme cuide da intimidade - cujo atributo principal é o estar -só, ou da vida privada, que exige o resguardo do segredo.

Na intimidade, como já dito, protege-se o right to be alone, atribuindo ao seu titular, o "poder legal de evitar os demais". Merece portanto, a intimidade, maior proteção do princípio da exclusividade, já que no âmbito da privacidade, é o mais exclusivo de seus direitos, na medida em que o indivíduo opta por resistir e não expor a terceiro ou ao público, o que faça parte de seu mais íntimo patrimônio pessoal, de registros, segredos, impressões e tudo o que o identifique ou o personifique enquanto indivíduo.

O indivíduo tem na intimidade, o poder de afastar o público daquilo que só a ele interesse. Consiste seu objeto, como prefere o professor Pontes de Miranda, citado por Ferraz Júnior, na proteção de uma liberdade negativa, ou melhor, "uma liberdade de negação; liberdade de não emitir pensamento, exceto para um número reduzido (...)". Seu conteúdo, é portanto, justamente aquela faculdade de resistir o devassamento e de manter o sigilo.

A proteção da vida privada tem conteúdo distinto, envolvendo a faculdade de manter afastado de terceiros, essa esfera de relações de convivência, que se pretende proteger, e não meros registros dessas relações privadas (portanto restritas), que constituem o arcabouço íntimo de acesso limitado exclusivamente à disponibilidade do indivíduo (intimidade).

A liberdade de informar o próprio pensamento sobre essas relações de convivência restritas, conteúdo do direito à intimidade (que protege o ‘estar-só’), não se confunde com o segredo que se quer manter dessas relações de natureza privada, protegido na intangibilidade da vida privada.De grande relevância também foram os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, ao ratificar uma série de instrumentos internacionais no âmbito do sistema global e regionalde proteção dos direitos humanos, que inscreveram em seus textos, a mesmas garantias de respeito à vida privada e à intimidade que inspiraram os constituinte na composição do texto político fundamental, merecendo destaque, dois deles: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que consoante a hermenêutica do conteúdo normativo inscrito no art. 4º, II conjugado com o comando insculpido no art. 5º, § 2º, acreditamos a exemplo da jovem jurista Flávia Piovesan e do destacado internacionalista, Antônio Augusto Cançado Trindade, que também estas normas têm natureza constitucional e não de texto legislativo ordinário, bem como incorporam-se automaticamente ao texto constitucional, em razão da razão do "princípio da aplicação imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais" consagrado no art. 5º § 1º da C.F, vindo a reforçar os valores eleitos pelo constituinte nacional na ordem interna e reafirmar o compromisso do Estado brasileiro para com a proteção dos direitos da pessoa humana.

 

 

3) - A PROVA ILICITAMENTE OBTIDA E O ART. 332 DO C.P.C.

O atual sistema processual brasileiro obedece a proibição constitucional da admissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, consagrada no inc. LVI, art. 5º, que veio extender a limitação por vezes insuficiente do art. 332 do CPC, que trata apenas da proibição do ingresso de provas atípicas (em desacordo com a forma legal), bem como daquelas que atentem à moralidade e à legitimidade. É de se observar que tanto a C.F, como o C.P.C, falam em meios. As partes devem observar os limites ao exercício do direito de prova; importando em eleger o meio adequado para o desenvolvimento da atividade probatória, fulminando com nulidade absoluta das provas ilícitas, que porventura ingressem no processo contra constitutionem. Se o C.P.C trata de atipicidade legal, erigiu a novel carta, para suas normas de garantia (as normas que cuidam do direito à prova), exigência de tipicidade constitucional, no momento de sua produção.

Ab initio, devemos esclarecer o que seja meio de prova. Ensina a processualista Ada Pelegrini Grinover que "Pode-se, assim distinguir entre fonte de prova (os fatos percebidos pelo juiz), meio de prova (instrumentos pelos quais os mesmos se fixam em juízo) e objeto da prova (o fato a se provado, que se deduz na fonte e se introduz no processo pelo meio de prova)" (destaquei e grifei).

Temos diante desse paradigma, que meio de prova é a forma como a verdade dos fatos pode ser apresentada perante o magistrado em juízo; é a forma que permite que a fonte de prova seja exteriorizada. Meio de prova, portanto, não é a forma pela qual se consegue a prova, conduta que precede logicamente o ingresso do meio de prova, em juízo.

Passemos agora a examinar a questão no sentido de determinar com precisão os conceitos empregados nos diplomas legislativos em comento, quais sejam, prova ilegal, prova ilegítima, prova imoral e finalmente, a prova ilícita, defesa por vedação constitucional.

Nesse sentido é elucidativa vez mais, a lição da professora Ada Pelegrini Grinover quando registra "que a prova é ilegal toda vez que sua obtenção caracterize violação de normas legais ou de princípios gerais do ordenamento, de natureza processual ou material. Quando a proibição for colocada por uma lei processual, a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza material, a prova é ilicitamente obtida.".

O conteúdo do comando constitucional é a conduta da parte ao conseguir a prova, tratando do momento que precede logicamente a proposição da prova em juízo, sua admissão e posterior apreciação. Bem ensina, a processualista paulista:

"O problema das provas ilícitas, assim delimitado, está circunscrito à ilegalidade própria de um ato anterior ou não coincidente com aquele da produção em juízo. (destaquei); por outro lado, não concerne ao problema do conteúdo e da veracidade da prova, o qual se projeta no âmbito de sua valoração."

Logo, o conteúdo exato do comando constitucional é a conduta da parte em momento que precede a lide, ou que lhe é estranha, não envolvendo a conduta da parte na relação jurídica processual, importando em cuidar de conduta que lhe é exterior.

Dessa forma, analisa-se o ato na consecução da prova, que poderá o não constituir meio hábil a provar os fatos em juízo, constituindo então, meio de prova

Argumenta Grinover, utilizando-se da já clássica distinção de Nuvolone, que o ato que viola impedimento de natureza exclusivamente processual, é ato ilegítimo, sendo ato ilícito, aquele que viola impedimento de natureza material, substancial, ambos, espécies do ato ilegal; todo ato contrário à lei.

Cabe então examinar o que seja impedimento de natureza material ou processual. Entendemos ser este, uma proibição que disciplina como as partes devem comportar-se na relação jurídica processual no processo de produção de provas, enquanto aquele constitui proibição que objetiva a proteção de determinado bem jurídico. Mais esclarecedora é a processualista paulista:

"(...) a proibição tem natureza exclusivamente processual quando for colocada em função de interesses atinentes à lógica e à finalidade do processo; tem, pelo contrário, natureza substancial quando, embora servindo imediatamente também a interesses processuais, é colocada essencialmente em função dos direitos que o ordenamento reconhece aos indivíduos, independentemente do processo".

O codex processual civil em seu art. 332, permite que a prova ingresse na relação processual desde que obtida pelos meios legais ou moralmente legítimos, de forma que a contrario sensu, permite que sejam admitidas provas produzidas por outros meios que não aqueles discriminados no digesto processual, desde que ultrapassem o crivo da moralidade e da legitimidade.

Deve ser esclarecido que o meio legal cinge-se apenas ao exame do retrocitado dispositivo legal, da legislação infraconstitucinal, pelo qual meio legal é aquele permitido por lei. Ocorre que o mesmo dispositivo também disciplina a possibilidade da utilização de meios que não tenham previsão legal, submetendo-os como dito, ao crivo da legitimidade e da moralidade de sua coleta.

In casu, não se trata de controverter-se acerca da não utilização de meio legal, mas de meio lícito na coleta da prova, pressuposto constitucional para sua admissibilidade. A Constituição Federal quando vedou a possibilidade do ingresso da prova ilícita, tratou de proibir que a prova seja produzida em ofensa à lei, mais especificamente, a impedimento substancial. Proibiu-se que a parte produza prova utilizando-se de meio proibido por norma que tem como conteúdo a tutela de determinado bem jurídico.

Não se trata de meio legal, mas de meio proibido por lei. E aquele está disciplinado no art. 332 do CPC, este é cláusula constitucional. Diríamos mais; o comado constitucional não cuida do meio de prova ilícito, mas do meio de obtenção do meio de prova. Este não pode ser ilícito. A vedação atinge a conduta anterior ou não coincidente com a relação jurídica processual.

Dessa forma, o comado do art. 5º, LVI, C.F, não subsiste por si mesmo. Sua aplicabilidade efetiva está condicionada a que se determine qual é a proibição substancial violada no ato de obtenção da prova.

 

 

3-1) DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DA ATIVIDADE PROBATÓRIA E AS GRAVAÇÕES CLANDESTINAS EM JUÍZO

É sabido que, diante das garantias de intangibilidade da intimidade e da vida privada, a C.F, reconheceu apenas uma hipótese de intervenção autorizada nas modalidades de comunicações elencadas no inc. XII, extensões da proteção proporcionada pelo inc. X, que é o da interceptação das comunicações telefônicas, (regulamentada pela Lei 9.296/96), e exclusivamente para fins de investigação criminal, o que vale dizer, que o juiz cível não está autorizado a permiti-la. Essa única hipótese disciplinada na lei, trata de intervenção não autorizada de terceiro, de forma clandestina, na comunicação (portanto apenas para situações presentes, em que esteja sendo mantida a circulação e troca de informações) telefônica ou de fluxo de dados, procedimento que na primeira hipótese, é conhecido vulgarmente, como "grampo" e tecnicamente, como interceptação telefônica.

Outras hipóteses de intervenção podem ser enumeradas, mas todas carecem de disciplina legal, como salienta Grinover, como v.g, a interceptação entre presentes ou ambiental, onde terceiro, com ou sem conhecimento dos interlocutores, vem captar a conversa que venham a manter por meio de gravador e aquelas situações onde um dos interlocutores, (e não terceiro), venha a gravar sub-repticiamente a conversa ( que pode ou não ser por meio telefônico - se o for, trata-se de escuta) que mantenham, que configuram gravações clandestinas.

Argumenta a processualista paulista que a gravação em si, quando realizada por um dos interlocutores que queira documentar a conversa tida com terceiros, não configura nenhum ilícito, ainda que o interlocutor não tenha conhecimento de sua ocorrência, ao passo que sua divulgação sem justa causa desrespeita o direito à intimidade, bem como aproxima o agente da conduta tipificada no art. 153 do Código Penal, trazendo inclusive, conhecida decisão do Excelso Pretório em caso recente de grande repercussão nacional, que envolveu gravação clandestina de conversa telefônica própria realizada, pelo então deputado Sebastião Curió e mantida com Paulo César Farias, votando o Pleno daquela casa, por 5 votos a 3, pela ilicitude da prova colhida.

Por seu turno, o ilustre constitucionalista Luis Roberto Barroso, pontifica que "a Constituição brasileira, por disposição expressa, retirou a matéria da discricionaredade do julgador e vedou a possibilidade de ponderação de bens e valores em jogo. Elegeu ela própria o valor mais elevado: a segurança das relações sociais pela proscrição da prova ilícita".

Com a maxima venia, ousaria discordar do magistério de tão eminentes juristas e do entendimento de nossa mais alta corte naquele momento, pelas razões que venho expor adiante.

Acredito, não ser demais relembrarmos as lições do professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior , que identifica o direito à intimidade como "a liberdade de omitir pensamentos ou informações privativas". Cumpre então delimitar aqui, exatamente, que espécie de informações cuida de proteger o direito constitucional à intimidade, no que esclarece que "(...) são aquelas informações em termos de privacy, constitutivas da integridade moral da pessoa. No que tange à intimidade, é a informação daqueles dados que a pessoa guarda

para si e que dão consistência à sua personalidade - dados de foro íntimo, expressões de auto-estima, avaliações personalíssimas com respeito a outros, pudores, enfim, dados que, quando constantes de processos comunicativos, exigem do receptor extrema lealdade e alta confiança, e que se devassados, desnundariam a personalidade, quebrariam a consistência psíquica, destruindo a integridade moral do sujeito (...)".

O alcance , a extensão, o espectro de proteção conferida pelo inc. X, diz respeito tão somente a informações atinentes e constitutivas de sua personalidade, registros e impressões que não se pode fazer exigir divulgação, porque identificadoras e formadoras de seu mais profundo íntimo. A Constituição da República enquanto carta axiológica, acredito eu, norteou-se em fins públicos ao conferir a proteção ao direito à intimidade, motivada pela necessidade imperiosa de se tutelar num modelo de Estado democrático de Direito, a distância do Estado, da sociedade, do terceiro, daquele feixe de registros que não se quer divulgar, dada sua natureza personalística. Aliás, é da professora Ada Pelegrini, um dos mais importantes estudos jurídicos, a respeito das liberdades públicas, onde com brilhantismo, divulgou entre nós, a doutrina publicista francesa, das liberdades públicas, que se notabiliza em exigir de todo direito fundamental, um fundamento de ordem pública que justifique sua defesa.

Os direitos individuais não são autopoiéticos (Luhman), não se fundamentem em torno de si mesmos; o Estado exige de seu titular, um exercício não só adequado à ordem pública, mas fundamenta a própria proteção que lhes dispensa, no objeto jurídico de seu exercício. Como bem observa Ferraz Júnior, a faculdade de resistir ao devassamento (de manter sigilo), conteúdo estrutural de diferentes direitos fundamentais, não é um fim em si mesmo, parte indiscernível de um direito fundamental (uma espécie de direito fundamental da pessoa ao sigilo), mas um instrumento fundamental, cuja essência é a acessoriedade.

Logo, tal direito só existe, porque tem um objeto público definido, que fundamenta sua defesa e exercício.

Nossos Tribunais, proferindo decisões como fizera José Carlos Barbosa Moreira, então desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, corajosamente delineiam a operatividade da Verhaltnismassigkeitsprinzip do constitucionalismo alemão. A contribuição da hermenêutica alemã defende que a Constituição encerra um sistema de garantias de valores de defesa harmônica, de modo que à Constituição, não é permitido defender um direito, deixando outro sem garantia.

Não é dado preservar a integridade de um direito, neutralizando o exercício de outro. Como não pode haver incompatibilidade entre preceitos constitucionais, é preciso que direitos constitucionais aparentemente em conflito ou antagônicos, sejam harmonizados e compatibilizados entre si pelo intérprete e aplicador da norma.

Atualmente , já é fecunda a jurisprudência em decisões favoráveis à admissibilidade dessas provas obtidas por meios que não encontram ainda disciplina legal, conquanto ainda encontrem algumas cortes, resistência em admiti-las, inspirando-se no voto paradigma que há muito nos é conhecido, da lavra do Min. Rafael Mayer, e em já longíquos arestos do Supremo Tribunal Federal.

Bastante comum tornou-se a prática pretoriana em se esquivar do enfrentamento da questão, adotando posicionamento no sentido de nunca se admitir por ilícita a prova colhida através de meios que não estivessem expressamente vedados pela Constituição, desde que a ele estivessem jungidos outros elementos probatórios válidos, mas independentes, para da mesma forma, afastar-se a incidência da doutrina dos "frutos da árvore proibida" (fruits of the poisonous tree), adotada pelo Excelso Pretório no momento que antecedeu a regulamentação das interceptações telefônicas.

Entretanto, o próprio STJ parece ter revisto recente o tratamento rígido que se têm imposto à questão.

Assim restringido o alcance do que seja a intimidade tutelada pela norma constitucional, não vislumbramos qualquer ofensa ao impedimento constitucional, de modo a identificar ato ilícito em sua conduta ao obtê-la. A lei e mesmo a carta constitucional não impede tal ato (art. 5º, X, C.F).

É relevante acentuar a modificação do paradigma hermenêutico realizado no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, através do acórdão condutor da relatoria do Min. Nelson Jobim, nos autos do HC 75.338, onde se discutiu justamente a questão das gravações clandestinas, onde um dos interlocutores, tabelião gravara em secretária eletrônica, conversa mantida com seu receptor, um juiz de direito, denunciado pelo crime de exploração de prestígio, onde este oferecera proposta pecuniária sem a interferência de terceiro.

Destaque-se o pronunciamento do Min. Sepúlveda Pertence, que bem parece definir os limites da questão constitucional:

"O art. 5º, XII — (...) protege os interlocutores da ciência, por terceiro, ‘à sorrelfa’, mediante a chamada interceptação telefônica do que entre os dois se conversou. Nada mais do que isso. Ali não se contém proibição alguma de que um dos interlocutores faça a prova da conversa de que participou: então o que pode incidir é outro tipo de proibição — por exemplo, e aí o único reparo a fazer no voto anterior — não apenas de ordem moral, mas — o eminente Ministro-Relator já o lembrara de ordem jurídica, como as decorrentes dos deveres explícitos de sigilo que atingir a gravação, não por ter sido gravada, e sim por ter sido revelada a outrem (...)".

Destoando do entendimento do ilustre Min. Sepúlveda Pertence, o Min. Moreira Alves, chega mesmo a extender o alcance do comando constitucional para admitir como lícita a prova que incrimine terceiro, que não o investigando da escuta telefônica.

Dessa forma, parece-me que a excessiva polêmica que sempre marcou esta questão parece dever em grande parte, ao equivoco quanto à extensão do objeto jurídico da proteção dispensada pelo art. 5º, X. Muito do que se lê na forma de comentários desinteressados ou até mesmo antipáticos ao emprego da teoria da proporcionalidade em nosso sistema jurídico é, devido à extensão desmedida que se deu à proteção conferida pelo dispositivo em tela aos direitos fundamentais, já que é insuficiente conceber sua aplicabilidade adstrita ao princípio da legalidade. Não são raras as situações em que direitos individuais entram em conflito inexistindo autorização legal para tais restrições, sendo inconcebível, que mesmo por um momento, uma norma constitucional tenha tido seu exercício prejudicado por neutralizada.

Temos então, que o verdadeiro problema versa sobre definir com rigor qual seja o objeto da tutela do art. 5º, X, que espécie de registros merecem o amparo do Estado contra intervenções não autorizadas, e em que medida a proteção legal é eficaz em amparar a ‘liberdade de não emitir pensamento", o que não exclui a aplicação da teoria da proporcionalidade, mas não nos termos desmedidos que têm caracterizado o debate que envolve a questão.Se vimos que restrito é o alcance do comando constitucional em exame, a aplicação de tão discutida teoria, também a é, porque limitada tem de ser a permissão para se ingressar à margem da legalidade na intimidade de que fala a Constituição da República.

 

 

4 -) A "CONSTITUIÇÃO ILEGAL"

"Quando a Constituição elege valores como a justiça, a liberdade e a igualdade, princípios como o Estado Democrático de Direito, a cidadania e a dignidade da pessoa humana e, como objetivo, entre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e preciso ter em mente que apontadas dimensões principiológicas devem ser atuadas e realizadas. A funcionalidade dos dispositivos que fazem essa eleição merece ser explorada. (...) O conteúdo da lei deve concretizar a idéia de direito lançada na Constituição ou pelo menos não contrariá-la.(...) A dogmática constitucional deve desenvolver essa construção para filtrar todo o direito infraconstitucional, apontando inconstitucionalidades (não apenas formais, mas especialmente materiais), ou sugerindo novas leituras ajustadoras da legislação infraconstitucional à materialidade constitucional. Neste processo, certamente, serão potencializados os dispositvos constitucionais densificadores dos valores compromissórios com a dignidade da pessoa humana".

Clèmerson Merlin Clève

A outorga de uma Constituição não significa simplesmente um novo diploma legislativo a informar a organização política do Estado; não são meros obstáculos ao poder político do Estado, e suas garantias não são simples declarações, sugestões aos poderes públicos, ou princípios meramente informativos da atividade estatal, destituídos de força vinculativa frente os Poderes do Estado. A Constituição, como ensina Clève, "não apenas regula o exercício do poder, transformando a potestas em auctoritas, mas também impõe coordendas específicas para o Estado apontando o vetor de sua ação. A Constituição opera força normativa, vinculando, sempre positivamente ou negativamente os poderes públicos".

A Constituição inaugura uma nova ordem constitucional, principiológica em sua essência, mas compromissória em sua atividade, utilizando a classificação de Clève.Inaugura-se com a ordem con

 

Como citar o texto:

AYALA, Patrick de..Constituição ilegal?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/trabalhos-academicos/97/constituicao-ilegal. Acesso em 3 fev. 1999.

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As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.