Ao se falar em um Estado Democrático de Direito, fala-se, sobretudo, em uma macroestrutura política, econômica, jurídica e social, assentada nos primados basilares do império da Lei e do poder popular. Conjurando tais princípios, se tem, em uma visão sintética, a formulação de uma fragmentação de competências, da qual, dentre outros, deflui o sistema jurídico, como substrato de um ideário estadista lastrado na tripartição de poderes em uma Republica Federativa.

A partir disso, sobressalta que o sistema jurídico positivo é um subsistema, na medida em que se vê inserto em um sistema maior, ou seja, a macro estrutura estatal. Porquanto, ao se proclamar que a Constituição representa a Carta Magna, a ordem jurídica máxima, essencial, fundamental, inoponível no âmbito interno, na verdade se retrata que nela há consubstanciado, sob uma tradução jurídica, o ideal social.

Neste contexto, se põe inequívoco que, embora a Constituição seja uma espécie normativa, e mais amplamente, o próprio sistema jurídico represente uma unidade do estado, não se pode negar que a Constituição é o elemento de maior substancialidade no que toca a legitimidade, não só do Direito enquanto conjunto normativo, mas do Estado em si, enquanto macroestrutura.

Defronte a isso, cabe indagar um fenômeno que diuturnamente se difunde no ambiente social, passando a cultura jurídica ao largo deste aspecto, estou falando da distinção entre Constitucionalidade e Constitucionalização.

Uma coisa é aquilo que se põe imperioso como sendo o sentido da magna carta, substrato da atividade hermenêutica promovida pelos órgãos de cúpula do estado, no caso do Brasil, pelo poder Judiciário, mais precisamente pelo Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da jurisdição nacional e “guardião” da Constituição Federal. Outra coisa é o sentido sintético da constituição, conforme já tratado, este sim, o aspecto essencial da vontade constituinte e, por isso, o parâmetro fundamental à inferência da “constitucionalidade”.

Significa dizer, a atividade promovida pelos órgãos de hermenêutica constitucional, a pretexto de fomentar sua adequação social, inclina-se a persecução de um processo de constitucionalização, invertendo a ordem do foco analítico. Para ser mais preciso, os intérpretes da norma constitucional a analisam não como diretriz legal de conduta imperativa, mas sim como mero pano de fundo das condutas sociais, pelo que acabam conformando a norma às condutas, e não o contrário, ou seja, buscam dar feição constitucional a fatos, condutas e atos, e não vislumbrá-los sob a ótica da norma constitucional em si.

Com base nisso, pode-se explicar, por exemplo, a existência de aproximadamente cinqüenta emendas constitucionais à uma Constituição que vige a somente dezoito anos, e isso considerando tratar-se de uma constituição tida como rígida. Esse é o crasso exemplo do processo de constitucionalização, já que, se põe absolutamente inolvidável a constitucionalidade deste conjunto de emendas, isso sem referir-se ao teor de cada uma delas, já que várias foram objetos de questionamento, muitos infirmados pelo egrégio Supremo Tribunal Federal.

Tal fato ilustra discrepância ao que concebe o sentido sintético da Constituição no que respeita ao poder reformador. Este, em sua essência, é um mecanismo de adequação social, e não um subterfúgio à tangencia de imperativos constitucionais, tendo inclusive incidência circunscrita, não podendo intervir em matérias que a constituição determinou reserva legal, ou, como comumente se diz, as cláusulas pétreas.

Sob este preâmbulo, à evidência, não se pode petrificar a norma, tornando-a imutável, sobremaneira em se tratando de um diploma tão abstrato e genérico como é a Constituição, entretanto, tão inolvidável quanto, é sua flexibilização a ponto de contradizer aspectos impregnados à sua essência, como por exemplo, o caráter notoriamente social de nossa Constituição, que é infringido quando se suprime o limite das taxas de juro, patrocinando o anatocismo, ou quando se impõe a tributação aos servidores inativos, lesando, entre outros, o direito adquirido, um dos primados genéticos não só da ordem jurídica positiva, mas do próprio direito enquanto instituto. Qual é a adequação social que se busca com tais atos? Qual ou quem é a sociedade à que se prestam tais atos? É a isso que se dá epíteto de constitucionalização.

Por fim, urge por corolário uma afirmação que talvez soe radical, porém, não se pode considerá-la desproposital. A atual conjuntura positiva constitucional, e digo conjuntura propositadamente, já que a sua instabilidade inabilita outorga-lhe epíteto de estrutura, infirma sua abordagem enquanto parâmetro designador de constitucionalidade, isso porque, conforme expendido, o texto constitucional atual não de coaduna ao sentido sintético impresso pelo constituinte, da mesma forma, não se harmoniza com o atual contexto social, ao passo que impõe balizas legais inclinadas a satisfação de determinados segmentos da sociedade, fruto de um Processo de Constitucionalização, que usurpou do Poder de Reforma seu fito exclusivo, desconfigurando a magna carta, a pretexto de torná-la harmônica a dinamicidade social.

(Elaborado em Foz do Iguaçu/PR, em março de 2006)

 

Como citar o texto:

SILVA, Flávio Alexandre da..Da Constitucionalidade à Constitucionalização: um ilegítimo fenômeno de legitimação. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 169. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/1102/da-constitucionalidade-constitucionalizacao-ilegitimo-fenomeno-legitimacao. Acesso em 12 mar. 2006.

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