Dedicaremos este artigo à análise da questão da periculosidade absoluta – e normativa -, presumida do inimputável que comete um ilícito objetivamente típico, e sua compatibilidade com o atual estágio de desenvolvimento do tratamento – jurídico - da problemática relativa aos transtornos mentais – e suas conseqüências sociais.

               Dispõe o art. 97, caput, do Código Penal:

Art. 97. Se o agente for inimputável, o juiz determinará a sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.

               Embora a interpretação literal – e isolada – do art. 97, do Código Penal, pareça não deixar dúvidas a respeito da necessidade de imposição de internação para os casos de cominação de pena de reclusão, temos que tal entendimento não resiste a uma interpretação sistemática e teleológica do ordenamento jurídico, que deve respeitar – e está embasado –, como é cediço, os princípios gerais estabelecidos pela Constituição Federal.

               A uma porque a dicotomia reclusão/detenção já não possui qualquer objetivo palpável, não existindo, entre as duas espécies de penas privativas de liberdade, distinção ontológica.

               Como anotam Silva Franco e outros: “as regras de significado dos conceitos de reclusão e de detenção estão superpostas e não evidenciam nenhum critério ontológico de distinção” (1).

               De fato, no campo material, inexiste fundamento para a dicotomia estabelecida, pois a circunstância mais relevante para a diferenciação, qual seja, a impossibilidade de aplicação do regime fechado ao condenado por pena detentiva, pode ser superada, durante a execução, pela regressão de regime.

               As demais distinções – procedimento, pressupostos para a prisão cautelar, ordem de execução das penas e efeitos da condenação – são secundárias e não justificam a classificação.

            A duas porque o apenamento com reclusão, por si só, não indica especial desvalor social do tipo penal e nem temibilidade extrema da conduta – ou, por outro prisma, periculosidade agravada de seu agente.

               Com efeito, permite o legislador, mesmo para os crimes apenados com reclusão, a exclusão do processo (transação civil e penal, previstas pelos artigos 74 e 76, da Lei 9.099/95 (2)), desde que a pena máxima não supere dois anos.

               Permitiu ainda, independentemente da pena máxima, desde que a pena mínima não supere um ano, a exclusão da instrução criminal – produção de provas em Juízo - e da prestação jurisdicional de mérito – sentença, com a declaração de culpa ou inocência -, mediante o instituto da suspensão condicional do processo (art. 89, da Lei 9.099/95 (3)).

               Ao tratar das sanções alternativas, possibilitou a substituição da pena privativa de liberdade para os crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, desde que a pena aplicada não supere quatro anos, que o réu não seja reincidente específico – no mesmo crime – e que a providência seja socialmente recomendável.

               Em terceiro lugar porque a obrigatoriedade de aplicação de medida de segurança de internação, em decorrência do que seria uma presunção legal e absoluta de periculosidade, não atende a qualquer finalidade social relevante ou ao bem comum, de forma que contraria o art. 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil, regra hermenêutica aplicável a todos os ramos do ordenamento jurídico.

               Como sustenta Gustav Radbruch (4): “a vontade do legislador não é um meio, mas o fim e resultado da interpretação, a expressão da necessidade apriorística de uma interpretação sistemática e não-contraditória da ordem jurídica total”, ou seja, há de prevalecer, na interpretação da lei, o seu sentido de integrante de um ordenamento, de uma unidade unitária constituída pelo conjunto sistemático de todas as normas (5).

               O Juiz deve, sempre, buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto legal, que não podem estar em desacordo com o fim colimado pela legislação, o bem social, pois “já os antigos romanos, longe de se aterem à letra dos textos, porfiavam em lhes adaptar o sentido às necessidades da vida e às exigências da época. Não pode o direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica” (6).

               Ora, se a própria lei prevê, conforme art. 176, da Lei de Execução Penal, que mesmo no curso do prazo mínimo da duração da medida de segurança de internação poderá o juiz determinar a verificação da cessação de periculosidade, diante de requerimento fundamentado – podendo ser determinada a instauração do incidente, portanto, no primeiro dia da aplicação da internação -, não se vislumbra qualquer razão jurídica ou utilidade social para que, verificada tal cessação – ou inexistência - antes da imposição da medida, seja considerada, ainda assim, obrigatória a aplicação da medida de segurança detentiva – internação.

               Em quarto lugar porque a Lei 10.216/01, em seu artigo 2º, parágrafo único, inciso I, estabelece como direito da pessoa portadora de transtorno mental, independentemente de sua condição, o de ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades.

               Se tanto pelo aspecto individual como pelo social, o melhor tratamento para as necessidades do portador de transtorno mental for outro que não a internação, a aplicação desta medida esbarrará em direito do agente, que, não tendo sido excluído – de forma expressa ou tácita - para aqueles que cometeram um ilícito objetivamente típico, não pode ser simplesmente desconsiderado.

               Por fim, não se pode deixar de anotar que a obrigatoriedade de imposição de internação, independentemente de verificação de qualquer pressuposto subjetivo, viola, de forma evidente, o princípio da proporcionalidade, o qual, apesar de não se encontrar expressamente positivado, tem a sua existência reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência, como fruto do Estado Democrático de Direito, de seus princípios e garantias fundamentais.

               Como sustenta Paulo Bonavides, o princípio da proporcionalidade se caracteriza pelo fato de presumir a existência de relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios com que são levados a efeito. Haverá, assim, violação a tal princípio, toda vez que os meios destinados a realizar um fim não forem, por si mesmos, apropriados e/ou quando a desproporção entre meio e fim for particularmente evidente, ou seja, manifesta (7).

               Conforme Willis Santiago, o princípio da proporcionalidade representa dupla garantia: em sentido estrito constitui a necessidade de estabelecimento de uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio empregado, ou seja, aquela deve ser a melhor possível juridicamente; compreende, também, os princípios da adequação e exigibilidade ou indispensabilidade, de forma que o meio escolhido deve se prestar a atingir o fim estabelecido e ser exigível, isto é, não haver outro, igualmente eficaz e menos danoso a direitos fundamentais (8).

               Se a proporcionalidade, em relação ao imputável, refere-se à gravidade do crime e ao grau da culpabilidade, no tocante ao inimputável deve ter como parâmetro a intensidade da periculosidade (9).

               Ora, se a prova técnica segura, oficial e isenta – única, em princípio, capaz de dirimir a questão – revelar, no curso do processo, que o réu inimputável tem prognóstico de conduta favorável, mínima possibilidade de recidiva – ou seja, que é dotado de ínfima periculosidade – e que o tratamento adequado para o transtorno mental ostentado é o ambulatorial e não a internação, a imposição da medida de segurança mais gravosa apresentar-se-á como providência desproporcional – e, portanto, inconstitucional - e deletéria, não apenas para o acusado, mas também para a própria sociedade ao marginalizar indivíduo que, mesmo com suas limitações, poderia ser socialmente útil.

               Tal marginalização, aliás, iria de encontro ao estabelecido no art. 1º, da Lei 10.216, o qual dispõe que os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental são assegurados sem qualquer forma de discriminação, e ao art. 203, inciso IV, da Constituição Federal, que estabelece como objetivo da assistência social a habilitação e reabilitação de pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária.

               Antinomia desta natureza – inclusive em relação a norma de superior hierarquia (Constituição Federal) – não pode ser admitida, devendo ser resolvida, assim, pela não-vinculação absoluta entre a espécie de pena privativa de liberdade prevista para o fato cometido e a medida de segurança aplicável.

               Conclui-se, portanto, que a previsão de necessidade de imposição de medida de segurança de internação fundada apenas na circunstância de ter o inimputável cometido um ato descrito como crime, sujeito a pena de reclusão, não resiste a uma interpretação teleológica do ordenamento jurídico e nem aos fatos sociais, pois em se tratando a periculosidade de um dado concreto pertencente à realidade, cuja existência e grau somente podem ser aquilatados pelos profissionais da área da saúde mental, com formação para tanto, após análise das características do indivíduo examinado, não pode estar sujeita a previsão legal abstrata e absoluta, pois a lei não tem o poder de modificar ou afrontar a própria natureza das coisas (10).

               Logo, sustentamos que o art. 97, do Código Penal, mesmo com a sua atual redação (11), deve ser interpretado no sentido de existência de uma presunção relativa de periculosidade do inimputável que comete fato descrito como crime, sujeito a pena de reclusão, presunção, todavia, que pode ser afastada por um conjunto de provas que demonstre, sob o enfoque do tratamento do transtorno mental verificado, a existência de terapias menos agressivas e mais eficientes e, sob o prisma da segurança social, a inexistência de risco concreto – periculosidade – e utilidade que justifique a adoção da medida de segurança mais rigorosa, atendendo-se, portanto, ao princípio constitucional da proporcionalidade.

               Este tem sido o posicionamento adotado por parcela significativa, embora reconhecidamente minoritária, da doutrina.

               Como sustenta Maximilianus Roberto Ernesto Führer: “nos crimes apenados com reclusão muitos julgados consideram o tabelamento legal um obstáculo intransponível para a concessão de tratamento ambulatorial. Entretanto, a jurisprudência vem rompendo lentamente, mas com muita segurança, as amarras da inconstitucionalidade e da desumanidade (...). Esta tendência está se consolidando em torno da idéia de evitar sempre que possível a internação, considerando que o objetivo da Justiça Penal é a recuperação da pessoa (...). É um desdobramento do princípio da intervenção mínima, que informa todo o Direito Penal. Em resumo, não é absurdo aplicar tratamento ambulatorial mesmo em caso de crime punido com reclusão, desde que o tipo de tratamento seja adequado e suficiente, preservada sempre a possibilidade de regressão para internação, se necessário” (12).

             Em sentido próximo, Celso Delmanto e outros: “Embora o art. 97, caput, do CP só admita tratamento ambulatorial em crime punido com detenção, há acórdãos admitindo esse tratamento em caso de furto qualificado, cuja pena é de reclusão, praticado por semi-imputável, quando houver recomendação pericial (TACrSP, Julgados 82/430-1) ou quando o mesmo não revelou temibilidade, praticando crime sem maiores conseqüências (TJSP, RT 634/272). Entendemos correta essa posição, que dá prevalência à opinião médico-legal e leva em conta não só a pouca periculosidade do agente, mas também a menor gravidade de certos crimes, não obstante apenados com reclusão, principalmente quando praticados sem violência contra a pessoa. Essa posição, a nosso ver, poderia, em caráter excepcional e pelos mesmos fundamentos, se adotada também em casos de inimputabilidade” (13).

               Também a jurisprudência nos oferece relevantes julgados sob este entendimento. Para finalizarmos esta breve discussão, trazemos à colação algumas ementas:

MEDIDA DE SEGURANÇA – Réu punido com reclusão – Perito médico que indica como suficiente o tratamento ambulatorial – Admissibilidade, pois deve-se evitar, sempre que possível, a internação (TACRIM-SP – RT 748/656).

MEDIDA DE SEGURANÇA - Tratamento ambulatorial - Prática por inimputável de delito, apenado com reclusão, desprovido de maior gravidade - Parecer médico oficial favorável à medida meramente restritiva - Circunstância em que essa deve ser aplicada, em detrimento da internação (TACrimSP) - RT 814/609

MEDIDA DE SEGURANÇA - Crime apenado com reclusão - Substituição de internação por tratamento ambulatorial - Admissibilidade - Hipótese em que o agente não foi considerado perigoso pela perícia médica, tendo demonstrado mudança em seu comportamento em virtude de tratamento em unidade terapêutica de recuperação (TJSP) - RT 827/572

MEDIDA DE SEGURANÇA - lnternação - Delito punível abstratamente com pena de reclusão - Inimputável oligofrênico que não revela periculosidade - Circunstância que possibilita a concessão de tratamento ambulatorial se este se adapta melhor à situação do agente (TJMG) - RT 791/664

MEDIDA DE SEGURANÇA - Internação - Pretendida a substituição por tratamento ambulatorial Admissibilidade - Crime que apesar de ser apenado com reclusão, apresenta peculiaridades - Réu com retardamento mental leve - Apoio da família em sua manutenção - Internação que teria malefícios - Recurso provido. Embora a lei só permitia a substituição da internação imposta como medida de segurança ao inimputável por tratamento ambulatorial quando o delito que lhe é imputado é sancionado com pena de detenção, é de ser ela admitida embora não preenchido o requisito se o agente não revelou temibilidade, praticando crime sem maiores conseqüências, não tendo agido com violência ou grave ameaça, constituindo o fato ato isolado em sua vida. Tanto mais se, como é público notório, em virtude da falta de vagas no estabelecimento adequado, a internação poderá ser convertida em liberdade vigiada. (Apelação Criminal n. 216.731-3 - São Paulo - 3ª Câmara Extraordinária Criminal - Relator: Geraldo Xavier - 29.09.97 - V.U. 753/344).

  RECURSO ESPECIAL – Inimputabilidade – Imposição de Medida de Segurança – Tratamento Ambulatorial – Delito apenado com reclusão – Possibilidade – Recurso Improvido. 1. A medida de segurança, enquanto resposta penal adequada aos casos de exclusão ou de diminuição de culpabilidade previstos no artigo 26, caput e parágrafo único, do Código Penal, deve ajustar-se, em espécie, à natureza do tratamento de que necessita o agente inimputável ou semi-imputável do fato-crime. 2. É o que resulta da letra do artigo 98 do Código Penal, ao determinar que, em necessitando o condenado a pena de prisão de especial tratamento curativo, seja imposta, em substituição, a medida de segurança de tratamento compulsório, em regime de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou em regime ambulatorial, atendida sempre, por implícito, a necessidade social. 3. Tais regimes alternativos da internação, com efeito, deferidos ao semi-imputável apenado com prisão que necessita de tratamento curativo, a um só tempo, certificam a exigência legal do ajustamento da medida de segurança ao estado do homem autor do fato-crime e determinam, na interpretação do regime legal das medidas de segurança, pena de contradição incompatível com o sistema, que se afirme a natureza relativa da presunção de necessidade do regime de internação para o tratamento do inimputável. 4. Recurso Improvido (STJ – REsp. 324091/SP – 6ª Turma – Rel. Min. Hamilton Carvalhido – j. 16.12.2003, DJ 09.02.2004, p. 211).    

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Notas

1. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, 5ª ed., p. 392.

2. Dispõe o art. 74, da Lei 9.099/95: “A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título executivo a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação”. Já o art. 76, do mesmo diploma legal, está assim redigido: “Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta (...). § 4º. Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos”.

 3. Reza o art. 89, da Lei 9.099/95: Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77, do Código Penal)”.

4. Filosofia do Direito, p. 163-64.

5. Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito, p. 197.

6. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 129.

7. Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 4ª ed., Malheiros Editores, p. 315, 1993.

8. Willis Santiago Guerra Filho – O princípio da proporcionalidade em direito constitucional e em direito privado no Brasil in: www.mundojurídico.adv.br, acesso em 22.8.2005

9. Neste sentido, expressamente, o Código Penal Português: art. 40º - 3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.

10. Santoro Filho, Antonio Carlos. Fundamentos de Direito Penal, p. 173.

11. Defendemos, por isso, para que não pairem dúvidas a respeito da questão, a aprovação do Projeto de Lei n. 431/2001, que altera o art. 97, do Código Penal, nos seguintes termos: “Art. 97. Se o agente for inimputável o juiz determinará a sua internação ou sujeição a tratamento ambulatorial, sendo que a internação será obrigatória quando o tratamento e a periculosidade do agente assim o exigirem”. (g.m)

12. Tratado da inimputabilidade no direito penal, pp. 146-47.

13. Código Penal Comentado, 6ª ed., pp. 53-54.

 

Como citar o texto:

SANTORO FILHO, Antônio Carlos..Reclusão e imposição (obrigatória) de medida de segurança de internação – algumas considerações. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 171. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/1133/reclusao-imposicao-obrigatoria-medida-seguranca-internacao-algumas-consideracoes. Acesso em 27 mar. 2006.

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