O pensamento revolucionário, que primeiro passa das ideáis básicas de liberdade, de igualdade  e de democracia até um robustecimento da idéia de lei geral e, seguidamente, a de uma pretensão de regulamentação mediante leis sistemáticas e completas  tanto da ação do poder como da ordem social liberal, veio a concluir em um resultado inesperado e  “absoluto”: de que todo o direito deve encerrar-se em leis e de que os juizes devem limitar-se a inquirir da norma legal a solução devida,  isto é, de que fora da lei não há critérios jurídicamente válidos. Com efeito, a Revolução Francesa conduziu diretamente ao que hoje se conhece comumente por positivismo jurídico ou legalista.

Sem embargo, muito embora essa concepção do direito e, sobretudo, este mecanismo de ordenação e regulação social tenha vindo a predominar uma vez instaurada a codificação (concluída ao longo  do século XIX ), ela veio a ser posta em questão desde uma perspectiva teórica e, a sua vez, desde a própria experiência judical que, pouco a pouco, começou a intuir a insuficiência desse intento de reduzir a função do juiz a um problema puramente mecânico de subsunção automática do caso concreto ao enunciado geral da norma pré-estabelecida pelo legislador.

Daí que toda a primeira metade do século XX contemplou um movimento de amplo debate crítico frente ao positivismo jurídico, nomeadamente com relação a redução do direito  a uma lei formal e casuística que não admitisse sequer processos interpretativos. O finalismo, o sociologismo, a escola livre do direito, o  renascimento do  jusnaturalismo, o realismo, o jurisprudencialismo, o principialismo, a tópica, a  nova retórica, entre muitas outras , ensaiaram suas armas para aquebrantar, desde a teoria do direito, esse dogma central do sistema que, em última análise, não permitia uma solução “justa” dos conflitos sociais. E a grande objeção ao positivismo jurídico era, simplesmente, a justiça , valor sem o qual o direito não pode  sequer ser concebível.

Como resultado de todo esse movimento crítico, deixou-se de  admitir  como legítima a teoria tradicional segundo a qual , em qualquer caso, é possível aplicar a lei sem interpretá-la , ou seja , de que a interpretação possa reduzir-se ao muito limitado esquema do silogismo formal interpretativo do direito positivo. Pelo contrário, para essa concepção revisada,  em toda interpretação se reproduz necessariamente o processo valorativo material que se conclui na lei, operação esta que, por força , pressupõe o manejo dos valores que articulam e animam as estruturas normativas e a própria idéia do direito. Afinal, se a comunidade subsiste na sua existência histórico-cultural, a tarefa de realizar concreta e historicamente a explicitação constituinte do direito e do projeto axiológico que a sociedade a si mesma se põe será sempre uma intencionalidade críticamente valorativa e espiritual.

Assim que o intento de separar em dois planos distintos e incomunicáveis a estrutura do direito, um material e político (onde se efetuariam as valorações dos interesses e valores que se incorporam em uma norma legal determinada ) e outro formal e puramente lógico-dedutivo ( que, sem ter que retornar para nada ao processo  restrito ao legislativo, estaria reservado ao juiz ) resultou definitivamente rompido, sendo que com esta ruptura se fragilizaram também as bases mesmas do positivismo jurídico.

De fato, ao significar para o pensamento jurídico não apenas o repúdio dos jusnaturalismos teológico e racionalista – formas de dogmatismo acrítico-sistemático e ahistórico que havia sem dúvida de se superar - , mas igualmente por envolver ainda um agnoscitismo axiológico, uma deliberada recusa da intenção axiológica (que teria como resultado uma cegueira metodológica para o normativo, o próprio sacrifício intencional da dimensão normativa, a essencial dimensão axiológico-normativa do jurídico e , assim, uma total incompreensão dos problemas do fundamento e da validade da juridicidade enquanto tal ) , o positivismo jurídico , confundindo direito  com o “direito posto” (pelo Estado), a legalidade vigente com a legitimidade jurídica e sobrevalorizando não só o método algoritmo como também a segurança em detrimento do comunitário projeto axiológico-jurídico,  foi ( e ainda é) responsável  por graves aberrações que acabaram por atentar contra a dignidade da pessoa humana . Nas palavras de Wezel, o positivismo destruiu a razão ( a faculdade das ideáis, para lembrar Kant), convertendo-a em intelecto técnico e instrumental.

Decerto que se pode argumentar que esta situação é excepcional e não deve, por isto, ser tomada em consideração. Mas engana-se quem  assim pondera! A vida social despenca do normal para o excepcional com mais facilidade do que se pensa e com maior rapidez do que seria imaginável. E a história (e as ciências da vida) está aí para demonstrar a necessidade de uma adequada preparação do juiz para  tratar com valores, normas e princípios jurídicos, e, muito especialmente, para fazer frente  ao emocional e ao imprevisto, advindos tanto do hemorrágico processo de elaboração de leis quanto do subjetivismo que afeta a tarefa de realização do direito e do ensandecido entorno sócio-cultural. Entre estas duas dimensões não há, por certo, diferença qualitativa essencial. Ao contrário , o que se verifica  é sua permeabilidade de nenhum  modo estranhável, uma vez que a atividade legislativa, por vezes desviada dos objetivos maiores de uma adequada convivência ético-social, é freqüentemente reflexo de situações sociais e políticas insustentáveis.

Por outro lado, a consideração da Constituição como norma jurídica – norma invocável em juízo pelos cidadãos e não somente organizadora dos poderes superiores do Estado – foi outro dos fatores que serviu para pôr em cheque um dos dogmas basilares do positivismo jurídico: o  da superioridade irresistível e absoluta da lei e a correlativa proibição de indagar , no processo interpretativo e aplicativo do direito, sobre as razões de suas  regras, impostas como mandamentos inexoráveis. Some-se a isso o fato de que um modelo institucional  desenhado a partir de uma concepção republicana democrática , com seu peculiar talante de modelo ético-político aberto, acabou por aportar valores de cidadania e de metodologia jurídico-política essencialmente úteis para tomar o direito ( e consequentemente a lei) como um instrumento de construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios formais e materiais no processo de toma de decisões ante a dinâmica fluída ( e por vezes enlouquecida) do “mundo da vida” cotidiana.

De pronto, o quadro dos direitos fundamentais formulados pela norma constitucional em uma república democrática deixaram de ser  meros enunciados finalistas ( que somente e quando os assumisse o legislador passariam a ter alguma eficácia e na medida em que o próprio legislador livremente assim o quizesse ) e passaram a ser diretamente operativos, sem necessidade da intermediação legal e ainda por encima da própria intermediação, quando existente.

Por incorporar sempre determinadas opções políticas e sociais profundas, a aplicação direta da Constituição, com todo o seu sistema de princípios e de valores, a sua  indiscutível  superioridade normativa e a iniludível interpretação de todo o ordenamento em conformidade com as normas que estabelece, fez com que o processo de realização do direito, longe de poder conceber-se como uma operação puramente mecânica, passasse a ser algo cuja tarefa levantaria necessária e rigorosamente ao menos três questões fundamentais :  de ordem epistemológica,  de ordem axiológico-política e de ordem  subjetivo-individual do jurista-intérprete.

E isso porque nem princípios nem regras regulam por si mesmos sua aplicação no âmbito do comportamento humano. Eles representam apenas os pilares passivos do sistema jurídico. Se se quer obter um modelo completo, se deve agregar aos pilares passivos um ativo, quer dizer, um procedimento de interpretação , de justificação e de aplicação das regras e princípios jurídicos. Portanto, os níveis das regras e dos princípios (e do próprio comportamento humano) têm  que ser completados por um terceiro: o de um processo de concreta realização do direito  e a correspondente (e iniludível)  dimensão subjetivo (neuronal) do operador do direito.

De fato,  a questão da interpretação constitucional  parece estar no centro da teoria jurídica. As razões são, creio,  bastante óbvias. Uma delas  reside no caráter de  supralegalidade  que se reconhece às constituições contemporâneas: a interpretação constitucional é, assim, uma interpretação  superior  a das outras normas, ou , dito de outra maneira, a interpretação constitucional  marca os limites de possibilidade da interpretação de todas as demais normas e  estabelece para todos os níveis da ordem jurídica a obrigação  de interpretar de acordo ( ou em conformidade) com a Constituição.

A outra razão deriva da peculiaridade que têm as constituições ( em relação com os outros materiais jurídicos ) no sentido de que aquí predominam enunciados de princípios ou enunciados valorativos , que se invocam com uma alta carga emotiva e cuja interpretação apresenta uma maior  complexidade – dá lugar a maiores disputas – que a das demais  normas  ( entendida a expressão em seu sentido mais amplo ) do resto do ordenamento jurídico.

Com efeito, desde o momento em que, por esses motivos, resultou  claro que há que operar diretamente com princípios e valores, a atividade hermenêutica, para além de  sua função mecanicista, acabou por restituir aos juízes o seu papel essencial de assegurar a a validade substancial, a legitimidade e a efetividade da ordem jurídica (como instrumentos qualificados e imprescindíveis desta), não mais reduzidos a mera função burocrática de “despachar processos”, prontos para homologar e dar execução a todos os ditames do poder.

E embora não se trate de oferecer aqui uma teoria acerca das regras , valores e princípios jurídicos, bastará por notar que , segundo Alexy, os  princípios  são  mandatos de otimização, que pertencem ao âmbito deontológico, enquanto que os  valores  estão incluídos em uma dimensão axiológica: o que no modelo dos valores é o  melhor , no modelo dos princípios, é o devido . Por outro lado, sabe-se que o direito existente  não está composto exclusivamente por  “regras” ( no sentido de Hart), mas também por  “princípios”.

Para o que aquí nos interessa, a distinção essencial parece ser a seguinte: as regras nos proporcionam o critério de nossas ações, nos dizem como devemos,  não devemos, ou podemos atuar em determinadas situações específicas previstas pelas regras mesmas; os princípios, diretamente, não nos dizem nada a este respeito, mas nos proporcionam critérios para  tomar posição ante situações concretas mas que a priori aparecem indeterminadas.

Os princípios geram atitudes favoráveis ou contrárias, de adesão e apoio ou de discenso e repulsa a tudo o que pode estar implicado em sua salvaguarda em cada caso concreto. E uma vez que carecem de “suposto de fato”, aos princípios, em maior grau do que sucede com as regras, somente se lhes pode atribuir algum significado operativo fazendo-lhes  “reacionar” ante algum caso concreto – ou seja, de forma muito mais acentuada que as regras, seu significado não pode determinar-se em abstrato, senão somente nos casos concretos, e somente nos casos concretos se pode entender seu alcance (Zagrebelsky ).

Em resolução, aos  “princípios” falta a determinabilidade dos casos de aplicação e apresentam uma dimensão que as  “regras” não têm: uma dimensão de peso ou importância, que se revela a propósito do seu modo específico de colisão. Depois, os  “princípios” não são hierarquizáveis em abstrato, conseguindo cada um a prevalência face ao outro  à luz das razões determinantes do caso concreto ou de determinado círculo (hermenêutico) problemático.

Assim que, neste particular, parece não restar dúvidas ao fato de que os operadores do direito que primam pelos princípios e valores jurídicos tendem a ser mais rigorosos e construídos do que aqueles que insistem em desconhecê-los em aras de um culto formal e dogmático à lei e a uma ortodoxa exegese interpretativa. Trata-se, ademais, de um processo interpretativo que não gera por si só instabilidade alguma, que obriga os operadores do direito (designadamente os magistrados) a uma preparação mais profunda, sofisticada e matizada do fenômeno jurídico , e por meio do qual a segurança jurídica não é, de nenhum modo, menor a que possa resultar de um positivismo ideológico ou de uma estrita observância da norma jurídica, isto é, daquela concepção de que o direito positivo, pelo fato de sê-lo, é ademais justo.

E para não correr o risco de situar-me na mais pura e cômoda elocubração teórica, referimo-me, aqui, às obras de Esser, Dworkin e Alexy, assim como grande parte das propostas hermenêuticas e argumentativas contemporâneas, segundo as quais a vinculação do juiz à lei não se vulnera nem se reduz pelo emprego de valores e princípios jurídicos no processo interpretativo, sempre que tais princípios e valores se utilizem por operadores virtuosos e qualificados, e se insertem no sistema normativo como o “óleo” que facilita seu funcionamento e não como uma alternativa, uma exceção ou uma ruptura do mesmo.

O juiz que aplica princípios e valores jurídicos é, pois, um arquiteto com instruções bem precisas acerca de quais são os parâmetros do estado de coisas que deve desenhar, mas com apenas instruções a respeito do desenho concreto. A possibilidade, e ainda a necessidade, de se aprofundar no conteúdo dos valores e princípios lhe vem dada pelos próprios elementos do moderno direito constitucional ao que já fizemos referência. Primeiro, o caráter normativo direto das constituições modernas que faz com que, ao tratar-se de normas cuja configuração axiológico-política é mais frequente , os juízes não tenham mais remédio que trabalhar com estes novos materiais para resolver  casos concretos que, em um contexto legalista, se apelava unicamente à aplicação de regras mais ou menos claras.

Por outra parte, o princípio de supremacia constitucional que exige que a interpretação do direito infraconstitucional deva fazer-se agora desde a Constituição, o qual obriga igualmente a levar a cabo uma tarefa de explicitação do conteúdo dos valores e princípios constitucionais, a raciocinar desde seu interior e a ir mais além do explicitado pelo próprio texto constitucional, pois não é possível precisar conceitualmente seu conteúdo de uma vez por todas, muito menos em um texto com as características linguísticas que possuem os textos legais e,  a fortiori, a Constituição.

Daí que a própria Constituição , com pleno valor normativo ,  ocupando uma posição central no ordenamento jurídico e  desempenhando , para além de sua condição de superioridade e supremacia, a função de irradiação e controle substancial sobre todas as demais normas do sistema, insta a uma jurisprudência de valores. Se as constituições, pela sua natureza e finalidade , são essencialmente catálogos de princípios – na sua parte dogmática, pelo menos, isso se mostra evidente (Mártires Coelho) – o operador do direito se move, necessariamente, no âmbito de uma moldura de contornos vagos , de uma estrutura normativo-material aberta e indeterminada que lhe é oferecido  para que , mais perto do mundo da vida, lhe coloque o quadro que tiver por mais ajustado à especificidade do caso vertente. Conceitos, valores e normas (princípios e regras) indeterminados , abertos ou disjuntivos através dos quais exatamente o legislador pretende fazer apelo aos  elementos emocionais práticos – não lógicos,  não lógico-teoréticos ou não algoritmicos  – que intervêm na tarefa interpretativa , desde que, por óbvio,  adotem a perspectiva de serem mais humanamente operativos em virtude de suas conseqüências, conteúdo e rendimento ético-comunitário.

 E uma das consequências imediatas de tal fenômeno reside na potencialização de modelos  hermenêuticos e critérios argumentativos capazes de confrontar  permanentemente as disposições legais e administrativas com o valores e princípios constitucionais e a interpretá-las desde estes últimos, operando deste modo um câmbio fundamental na teoria da validade jurídica, que agora não se determina exclusivamente pela legitimação do orgão produtor da norma e em função da correção no procedimento, senão que aparece integrada necessariamente também pela adequação material e correção moral das normas jurídicas. 

Assim que quando os operadores do direito encontram-se (e não são raras as vezes que isso se dá) diante de normas que, a princípio, parecem recusar a dignidade de personalidade moral a qualquer pessoa, grupo ou classe ( isto é, que lhes excluem a qualidade de sujeitos autônomos de direito – com os direitos e deveres implicados pela sua válida integração na comunidade – para os reduzirem a meros objetos de coação política, econômica ou administrativa), convivendo com outras tão ou mais importantes que garantem o trabalho, a justiça, a igualdade ou a liberdade humana ( e em meio a essas regras tem-se os fatos que as desafia ), é razoável que aqueles que não se limitam a ser apenas simples instrumentos de reposição e aprofundamento das desigualdades sociais e sim a consicência ética da comunidade, sintam a tormentoza necessidade de buscar “em meio das sombras, claridade”.

Por certo que essas diferentes tendências de diretrizes normativas acabam por levar a soluções contraditórias, muitas vezes difíceis de aplicar na prática sem passar por cima de um ou outro preceito constitucional, ou sem buscar, pela via da interpretação, o princípio que deve prevalecer no caso de supostas contradições. Nestes casos, parece razoável admitir que a melhor (a mais adequada  e razoável)  tarefa do juiz deve consistir já não no fato de ponderar e aplicar um ou outro dos princípios que protagonizam a colizão- dependendo das circunstâncias como sugere Alexy  - , senão em tratar de alcançar um  estado de coisas onde todos os princípios em questão alcançem seu mais alto grau de vigência e eficácia possível. Supera-se, dessa forma, a simples letra da norma mediante um processo de “cedência recíproca”, no sentido de congraçar os preceitos normativos aparentamente contraditórios desde que abdiquem da pretensão de serem interpretados de forma absoluta.

Dito de outro modo,  a atuação do operador jurídico( e nomeadamente do juiz), dizendo o direito in concreto ,  consiste em tratar de alcançar um estado de coisas  que se  aproxime das expectativas culturais e das intuições e emoções morais (jurídico sociais de validade e de  legitimidade substancial) de uma comunidade de indivíduos ante a qual seu discurso deve apresentar-se justificado, traduzindo e compondo em termos de razão e em fórmulas apropriadas de ordenada convivência essa instintiva e mesmo indisciplinada aspiração de justiça que a move para o futuro.

Tal tarefa se perfaz na flexibilidade cognitiva (axiológica e fática) do processo interpretativo das normas constitucionais  e do caso concreto , como resultado de uma peculiar racionalidade plasmada no diálogo[2] e na compreensão intersubjetiva dos conceitos e termos fixados na norma positiva escrita , e , ultima ratio, na realidade “viva” , a que aderem, como notas valorativas,  os princípios, os valores e as regras de tutela dominantes.

A inserção da atividade interpretativa constitucional , formando e conformando o sistema jurídico,  repousa no caráter  visceralmente artesanal  da produção do provimento judicial , cuja característica principal radica no fato de que a aplicação deixa de ser vista como uma etapa derradeira e eventual do fenômeno da compreensão e passa a ser concebida como um elemento essencial que a determina desde o seu princípio e no seu conjunto (Gadamer).

E da particular consideração da tarefa interpretativa, em seu aspecto metodológico, como uma  atividade “simultânea” à aplicação do direito  ( no sentido de considerar a  interpretação/aplicação do direito como  operações que não operam autonomamente e, por conseguinte, de que o resultado da tarefa de realização do direito decorre de um contínuo “ir e vir” do fato ao direito e do direito ao fato, que condiciona tanto a reconstrução jurídica do fato como a constituição da norma a ser aplicada ao caso concreto), resulta constituir também ela e a sua especial forma de atuação, um  importante dado a ser considerado na apreensão de métodos criteriais que resolvam o problema da passagem da iniludível e provisória antecipação do resultado (da pré-compreensão)[3] a sua definitiva motivação, ou seja, que funcionem como mecanismos fiáveis e eficazes de controle e garantia da racionalidade da atividade decisória judicial.

Com efeito, neste manufaturar  da norma judicial  (da decisão) importa para o juiz, como agente mediador e no exercício de seu papel conformador ativo, o discernimento preciso dos múltiplos ângulos comprometidos com a controvérsia. A sua atuação conformadora (produtora, constitutiva) e reguladora,  fixando a movimentação dos valores, dos princípios, das normas e dos fatos, tem como principal objetivo a lideração de constrições informativas pertinentes ao caso ( isto é, da escassez de conhecimento fiável sobre as circunstâncias do caso decidendo) e  a  adequada articulação dos vínculos jurídicos relacionais nele (no caso) envolvidos , com vistas a produção de um resultado de justo acertamento no que diz respeito à garantia da plena cidadania. Por meio desse resultado, a ordem jurídica se realiza como sistema completo e aberto  e, com ela, a certeza, o conteúdo substancial e a segurança dos princípios, valores e regras de tutela nela inseridos.

Por conseguinte, a adoção de um adequado processo de realização do direito obriga o jurista-intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão entre os fatos, as normas constitucionais e infra-constitucionais a concretizar, de tal forma que se deva sempre considerar as normas não como  regras isoladas e/ou dispersas , mas sim como preceitos integrados em um sistema unitário e aberto de normas, princípios e valores, sob pena de destruição da tendencial unidade axiológico-normativa do ordenamento jurídico. Carecem de legitimidade as decisões que considerem as normas isoladamente e imponham o comando emergente da mera interpretação gramatical. Nunca é dispensável a interpretação dos textos legais no sistema da própria ordem jurídica positiva em consonância com os  princípios e garantias constitucionais e, sobretudo, à luz dos valores comunitariamente aceitos e compartidos.

O desempenho da tarefa prudencial de concretização da norma jurídica constitucional aplicável aos conflitos de interesses implica na necessidade de interpretar e decidir  de tal modo que os textos normativos, tomados como uma unidade  aberta aos valores comunitários , acabem  por determinar a realização do justo concreto, isto é, de que corresponda a uma praxis social destinada a desenhar um modelo sócio-institucional que , garantindo uma certa igualdade material , permita, estimule e assegure que a titularidade e o exercício de direitos de todo ponto inalienáveis não sejam sacrificados em função de arbitrários interesses e injustificadas interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social. E por meio deste empenho de “extrair justiça” na atividade interpretativa, nada mais se estará fazendo do que submeter as normas jurídicas em seu conjunto a um critério de justiça material, de interpretá-las e aplicá-las de forma a atender aos fins sociais a que  se dirigem e às exigencias do bem comum.

Depois, em um Estado Democrático de Direito, alicerçado   numa Constituição comprometida com a dignidade do homem, a tafera de todo operador jurídico deve consistir, fundamentalmente, em reconhecer que o direito não nos é dado feito: o direito existente não é redutível na sua integralidade a uma autoridade legiferante, mas é algo que deve ser reconstruído de modo contínuo e responsável, com a participação da personalidade integral do intérprete. Nesse sentido , uma Constituição democrática é fonte inesgotável de argumentos que podem ser utilizados no sentido de democratizar o direito, bem como para o fim de aplicá-lo de tal modo que se assegure a eficácia última dos valores e princípios protegidos pela Norma Fundamental.

Claro está que toda essa atividade interpretativa deve manter-se dentro de determinados limites, fora dos quais não nos parece razoável falar de interpretação, senão de “ativismo judicial”. Significa dizer com isso, se bem entendido, que se afigura inoportuna a livre criação do direito, a rebelião do juiz contra a lei ou o que os juristas alemães denominaram de interpretação ilimitada da norma. Não é verdade que as normas jurídicas admitam uma interpretação ilimitada (como pretendem alguns operadores do direito ), como tão pouco que esteja aberta ao que certos juristas italianos chamaram há vinte anos (com mais êxito no Brasil que em seu próprio país, por certo) de uso alternativo do direito, que pretende, em última análise, justificar qualquer interpretação desde criterios ideológicos.

Decerto que se a lei ( essa ferramenta cultural e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano ) não é mais o único instrumento útil para a regulação social, não menos certo é que segue sendo um meio ou  instrumento insubstituível e indispensável para assegurar, em sociedades pluralistas e complexas, corroídas pelo empirismo e subjetivismo relativista , um dos valores fundamentais do direito : a segurança jurídica.

Daí que não pode depender o sentido e alcance da norma (constitucional ou infla-constitucional) do talante pessoal de seus intérpretes, em especial de magistrados pretendidamente redentores ou iluminados, autoinvestidos como representantes de qualquer ideologia, doutrina ou tradição histórica. A objetividade do direito, sem a qual não cumpriria nenhum de seus fins, descansa necessariamente sobre a objetividade e a racionalidade (ainda que limitada) na interpretação e aplicação da norma jurídica.

E torná-la possível vem a ser, justamente, um dos primeiros objetivos da tarefa concreta do jurista  de realizar historicamente a verdadeira intenção do direito ( isto é, a de, negativamente, impedir o homem do esquecimento de sí próprio e,  positivamente, a de afirmá-lo no seu ser e, assim, no seu incondicional valor ) e que é projetada em um determinado contexto econômico, político e social segundo as necessidades humanas de cada época, isto é , de plasmar e realizar historicamente as expectativas normativas e culturais de uma comunidade de indivíduos (ante a qual a qualidade de seu discurso será medida por sua humanidade, pela precisão de sua adesão à natureza humana) que,  como estratégias sócio-adaptativas, sirvam  para iluminar , fundamentar e constituir  determinado agrupamento social em uma comunidade verdadeiramente  ética. Essa, aliás, a razão pela qual o princípio da segurança jurídica, que assegura a previsibilidade (formal e substancial) das normas como ordenadoras das condutas humanas, leva também à  manutenção da preeminência da lei na atual sociedade de massa.

 Contudo , da circunstância de que os cidadãos têm o direito de saber que uma conduta lhes compromete na medida em que o direito vá a qualificá-la como tal, não parece legítimo que se possa deduzir que o juiz deva ser um orgão “cego” e “acéfalo” no processo de interpretação e aplicação da Constituição e das leis ou que se deva autoinvestir da suposta virtude que faz dos juízes “les  bouches  qui  prononcent les  paroles  de  la  loi, des  êtres   imanimés  qui  n´em peuvent  modérer  ni  la  force  ni  la  rigueur”(Montesquieu).

De fato, a importância da lei em uma sociedade onde a miséria e o desprezo pela dignidade humana ainda convivem com o desperdício da riqueza produzida pelo trabalho social, a par de conviver com a preeminência das normas constitucionais, faz com que o papel do juiz, já não mais neutro, seja o de um vivo vigilante intérprete dos tempos, que tanto melhor sabe cumplir a sua função quanto melhor alcance sentir a exigência humana da história e traduzí-la em fórmulas apropriadas de ordenada convivência ; o que não significa , evidentemente, uma atividade “alternativa”  à lei, senão uma qualificada tarefa de assegurar a sua legítima e devida efetividade.

Aos destinatários das normas jurídicas não lhes interessa as opiniões pessoais dos que atuam como juízes, senão somente as suas respectivas capacidades para expresar as normas que a sociedade a si mesma se põe e pelas quais ilumina e fundamenta a solidariedade de sua ética convivência , depurando e afinando seu alcance e sentido e, na mesma medida , garantindo sua eficácia última.

Vejamos então, neste particular, se a situação das leis nas sociedades contemporâneas pode vir a fragilizar as observações e conclusões elaboradas ao longo deste artigo, uma vez que não são poucas as vozes que insistem em afirmar a atual “crise da lei”.

É certo que as sociedades atuais , plurais e complexas, já não mais parecem aceitar lhanamente novos códigos gerais e globalizadores como os que alimentaram em seus dias os grandes dogmas do positivismo jurídico. Hoje, não só se fala abertamente de descodificação, inclusive com relação às matérias típicas dos códigos clássicos, como também as leis tendem a limitar-se, com frequência, a regulamentações fragmentárias e ocasionais e, por vezes, a formular disposições ou princípios muito gerais, confiando logo à interpretação e aplicação pelos operadores do direito a precisão casuística de seus enunciados.

O desgaste que vem sofrendo a generalidade e a abstração da lei em virtude do que se convencionou denominar de “pulverização” do direito legislativo  produzida pela multiplicação de leis de caráter setorial e temporal, demonstra claramente a pressão de interesses corporativos, dando lugar a um tratamento normativo diferenciado e, em igual medida, provocando a explosão de legislações cambiantes, com a consequente crise dos mencionados princípios de generalidade e abstração. E a suposta consequência produzida  por esse fenômeno é a de que a lei é, cada vez mais, transação e compromisso, tanto mais quanto a negociação se estende a forças numerosas e com interesses heterogêneos : cada um dos  agentes sociais, quando acredita haver alcançado força suficiente para orientar em seu próprio interesse os termos do “acordo”, busca a aprovação de novas leis que sancionem a nova relação de forças; se produz, assim, a cada vez mais marcada contratualização dos conteúdos da lei.

De fato, a atual experiência legislativa nos situa muito longe da racionalidade do legislador e da imagem da lei como ordenação abstrata, geral e permanente, como quadro estável cuja finalidade é distribuir direitos e deveres gerais e sobre o qual a sociedade vive a continuação de seu próprio dinamismo. É indiscutível, portanto, que a realidade dessas leis se ajusta mal ao esquema ilustrado e revolucionário da  lex universales.

Não obstante , e em que pese todas essas circunstâncias, entendemos que as considerações até aquí articuladas não devem ser desconsideradas por completo. Se é certo que a legislação atual tende a ocasionalidade e a confusão, não menos certa é a constatação de que isso não nos permite deduzir que as sociedades modernas pretendam remeter aos magistrados os problemas últimos de seu livre – e por vezes defeituoso  – ajuste social. Por muito que se ressalte a crise da lei nas sociedades atuais, tal crise não chega de modo algum a deslocar a lei do seu papel central e, até o momento, insubstituível.

Depois, as normas jurídicas  não são simplesmente um conjunto de regras faladas, escritas ou formalizadas destinadas a constituir uma razão para o atuar dos indivíduos, que expressam ideologías dominantes ou que as pessoas se limitam a seguir. Em vez disso, as normas representam a formalização de regras de condutas sociais , sobre as quais uma alta percentagem de pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes àqueles que as seguem : quando as pessoas não reconhecem ou não acreditam nesses benefícios potenciais, as normas são, com frequência,  não somente ignoradas ou desobedecidas ( pois carecem de legitimidade e de contornos culturalmente  aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepção de justiça) senão que seu cumprimento fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impoem por meio da “força brura”  (Gruter).

Dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito a reação dos membros de uma determinada comunidade. Estes artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuições e  emoções morais, não são construções arbitrárias,  senão que servem ao importante propósito de, por meio de juizos de valor, tornar a ação coletiva possível – e parece razoável admitir que os seres humanos encontram satisfação no fato de que os valores e as normas sejam compartidos e cumpridos pelos membros da comunidade.

    Por outro lado, qualquer outra alternativa à lei não seria admitida, de modo algum, pelas sociedades atuais, porque com ela se volatizaria, justamente, a democracia e nos encontraríamos reinstalando, em realidade, um verdadeiro governo despótico de uma minoria que não tardaria em buscar e encontrar  uma fundamentação política  correlativa  que pretendesse outorgar-lhe legitimidade. Se vê claramente que, frente a qualquer outra alternativa, a democracia necessita inexcusavelmente da lei e que não pode abdicar da responsabilidade central que lhe cabe, precisamente  (reafirmando assim seu fundamento histórico moderno)  enquanto que a lei ainda é o instrumento  necessário (embora não suficiente) da liberdade, tanto por sua origem na vontade geral como por sua efetividade como pauta igual e comum para todos os cidadãos, à que todos podem invocar  e na qual todos devem poder encontrar a justiça (material) que a sociedade se lhes deve[4].

A verdadeira alternativa ao recurso utilizado pelo legislador para afrontar e contornar os problemas sociais, de justiça e de segurança jurídica , portanto,  não parece ser a de reinventar o “juiz sacerdote” ( preso  a  alguma ideologia, dogma ou doutrina  sem consistência teórica e/ou incapaz de ter alguma  eficácia fora  dos limites físicos de um papel ), senão a de habilitar os julgadores a assumir, de forma virtuosa, inflexível e qualificada a responsabilidade que lhes cabe e cuja tarefa seja a de afirmar indistintamente os direitos e deveres de toda a pessoa humana, projetando  na através  da legalidade vigente os princípios e valores fundamentais do direito; isto é , de habilitar-lhes ao inegociável compromisso de colocar-se à frente dos fatos e dos vínculos sociais relacionais  para, com a iniludível  “pré-compreensão” e talento de desenhador que caracteriza o ato de julgar , impulsionarem os câmbios necessários para que se promova um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais amigável possível para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Daí porque o papel do operador do direito  (no caso, dos juízes) deverá seguir estando vinculado à Constituição e à lei – que nunca podem ser livres de contexto, senão que devem ter em conta seu “lugar na vida” e sempre “em situação” – , em nome das quais fala e das quais, e não de nenhuma outra fonte “mágica” ou de qualquer subjetivismo camuflado de teoria, extrai unicamente a justiça e a legitimidade de suas decisões.

É certo que ante uma legislação fragmentada, casuística e cambiante, com enunciados que caem com frequência em desuso por desajustes sistemáticos e/ou sociais, o papel do magistrado se realça. Mas este realce do papel do juiz não poderá jamais pretender levar-lhe a uma independência com respeito à Constituição ou  à lei; lhe levará ,certamente, a um uso mais apurado, sofisticado e refinado dos valores , princípios e regras jurídicas, sempre e em tudo condizente com a finalidade de atender ao imperativo ético segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria e o sofrimento humano, isto é, com a obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito ético em comunidade, de forma livre, igualitária e fraterna.

Por este caminho vejo, com suas inasfastáveis limitações, o processo vivificador do fenômeno jurídico e a consequente aproximação à justiça que há  de inspirar e prevalecer na interpretação e aplicação do  direito  que , como tal, não é mais nem menos que um instrumento cultural , uma estratégia sócio-adaptativa empregada para articular argumentativamente , por meio da virtude da prudência , os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.

Em todo caso, parece ser que essa vinculação não deve servir como fator determinante para debilitar a luta pela justiça, o esforço permanente em prol de uma interpretação mais razoável e eqüitativa e, sobretudo, para fomentar a negação do acentuado espírito conservador da grande maioria daqueles que operam com o direito.

Trata-se, sem mais, de uma tarefa ou práxis social que reforça a incessante necessidade de se repensar criticamente a ordem jurídica, no sentido de que se atribua à mesma (levando-se em conta que o direito vive num clima de permanente revisão de conceitos, valores, princípios e normas), a função principal de adequá-la para um mundo em constante transformação, cônscios, sobretudo, da tarefa não somente de interpretar e aplicar as garantias formais da democracia e nem à simples fiscalização da observância de princípios e valores inerentes ao sistema positivo, mas,  principalmente, de viabilizar a realização do compromisso ético de utilizar o direito para garantir à sociedade a efetiva recuperação do controle democrático sobre as decisões políticas, sociais e econômicas, e aos indivíduos – a muitos, a milhões deles – a efetiva recuperação do controle sobre suas próprias vidas, isto é, o efetivo e incondicional respeito da dignidade da pessoa humana.

Por certo que tal função implica inevitavelmente uma grande responsabilidade, posto que ao operador do direito já não mais lhe será lícito e legítimo elidir ou dissimular o dever de dizer não às situações e relações  intoleravelmente injustas que os homens entre si ou o poder perante eles se proponha a criar ou impor.  E chegado a este ponto, para concluir,  tomaremos como critério de exemplo o tratamento a ser dado ao problema da denominada  “lei injusta”.

É este um problema que aqui não se pode considerar na totalidade de suas dimensões. Assim que nos limitaremos  apenas a dizer que a lei injusta será toda a norma  positiva que não realize  ou não permita realizar concretamente a idéia de Direito. De fato, é no contexto da função interpretativa  em que  o ser humano na sua dimensão ético-social, a prudência, a equidade e a justiça do caso concreto têm primazia. E porque todos os operadores jurídicos têm uma filosofia de vida e do direito – embora alguns deles, ou talvez muitos, não o saibam –  encontramo-nos, nesse âmbito da interpretação e aplicação jurídica, com o problema da necessária interferência e inclusão de elementos valorativos no ato de julgar, ou seja,  da iniludível e por vezes dissimulada relação  entre o moral e o jurídico.

Neste particular, entendemos que não tem qualquer caráter juridicamente vinculante (carecem totalmente de legitimidade e de obrigatoriedade) tanto as normas que porventura recusem a dignidade de personalidade moral a qualquer pessoa, grupo ou classe –  isto é , que lhes excluam a qualidade de sujeitos autônomos de direito (com os direitos e deveres implicados pela sua válida e legítima integração na comunidade) para os reduzirem a meros objetos de  coação política , econômica ou administrativa – , como as normas que lhes definam um estatuto de direitos e deveres que não esteja fundado no sentido axiológico de uma comunidade que a todos autônoma e totalizantemente integre[5] .

Nestes casos, e ainda que nos encontremos na presença de mandados emitidos por um legislador formalmente habilitado e acompanhados por uma organizada garantia coativa, o que se nos oferece são autênticas perversões do ato de legislar. Não podem, com efeito, considerar-se de outro modo as normas abertamente contrárias à idéia de direito e, portanto, violadoras daquela mesma função axiológico-normativa em que terão de justificar-se como normas jurídicas válidas e legítimas.

Assim que parece haver um sentido comum de que o direito moderno  segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a moral, ou seja, de que não se tornou exclusivamente instrumental como pretendem algumas variantes do positivismo jurídico. E porque o fenômeno jurídico não surgiu do “nada”, a ética parece estar intimamente ligada ao direito: todas as normas jurídicas foram criadas a partir de um juízo ético surgidos para harmonizar os vínculos sociais relacionais que estabelecemos ao longo de nossa evolucionada existência. 

 De fato, é essa pretensão de correção moral que permite distinguir entre o Direito  e a força bruta , que permite distinguir (ou não) entre a ordem de um delinqüente (“a bolsa ou a vida”) e a ordem de cobrança de uma determinada contribuição , enfim, que permite considerar o direito como uma estratégia sócio-adaptativa, uma práxis social destinada a gerar discursos jurídicos materialmente justos e com potencial capacidade de consenso para a solução de determinados problemas práticos relativos aos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.

Essa inerente pretensão de correção formulada pelo direito compreende uma pretensão de justiça que, em essência, nada mais é do que a correção com respeito a liberdade, igualdade e fraternidade, isto é, com a eqüitativa distribuição e equilíbrio entre essas três grandes virtudes ilustradas. Com efeito, o operador do direito, em toda sua cotidiana atividade, não pode prescindir dessa dimensão axiológica. E porque as perguntas sobre a justiça são perguntas morais, o operador jurídico que realiza distribuições e equilíbrios incorretos comete, por essa via, uma falha moral e a pretensão de correção transforma essa deficiência moral em deficiência jurídica: as normas perdem seu caráter jurídico se sobrepassam certos limites de injustiça.

Quando as normas negam conscientemente a vontade de justiça, quando os princípios, os direitos e as garantias consagradas  são arbitrariamente violados, carecem tais normas de legitimidade e validez,  pois não se pode conceber o Direito, inclusive o direito legislado, de outra maneira que não esteja destinado a servir a justiça. E quando a injustiça não é oportunamente eliminada pelo legislador, corresponde ao operador do direito o dever e a coragem de deixar de efetivá-la, de negar o pretenso caráter jurídico das normas arbitrariamente impostas. Esse o papel que cabe ao operador do direito na sua práxis hermenêutica.

Dito de outra forma, parece ser que a única atitude legítima em face de uma lei injusta é a de recusar a sua aplicação: a lei injusta faz surgir no pensamento jurídico em geral o poder e o dever de lhe recusar validade e aplicação automática, de interpretá-la e decidir de tal modo que ela acabe por ter uma finalidade justa, isto é , cada norma sendo submetida a um critério de justiça material de sua aplicação em cada caso concreto . Afinal, querendo ou não, as normas são, em muito boa medida, manifestações de intuições e emoções morais (de raiz biológica e culturais) compartidas por um determinado grupo, partindo não da idéia de  “imperator”, mas sim da comunidade ética na qual se inserta o sujeito-intérprete .

Mas podem operadores jurídicos educados no positivismo jurídico até aqui dominante, na aplicação do direito,  ter a pretensão de não desprezar a vinculação necessária entre Direito e Justiça?

Parece que sim, desde que se considere que  essa vinculação (entre o Direito e a Moral) está fundada na idéia de que toda a atividade do sujeito-intérprete deve estar permeada pela pretensão de que seus discursos jurídicos (suas decisões) sejam moralmente corretos e justos. A ela (atividade)  lhe corresponde à intenção e o dever jurídico de decidir corretamente, de que embora necessário, não é suficiente para resolver um problema jurídico o simples recurso a  artifícios legais, ao muito limitado esquema de silogismo interpretativo ou de coerência lógico-formal. A virtude e a independência do operador do direito não é outra coisa que a manifestação da autonomia do direito, comprometido eticamente com o imperativo segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências, sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria humana, permitam a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum, isto é, com a criação de um modelo sócio-institucional livre, justo e solidário que permita a constituição de uma comunidade de homens livres e iguais unidos por seu comum, legítimo e compartido submetimento ao direito e em pleno e permanente exercício de sua cidadania.

O ato de decidir contra qualquer forma de arbitrariedade ou interferência injustificada carrega consigo a virtuosa intenção de mudar um estado de coisas de conformidade com algo que se pretenda justo: com a idéia de que o homem, mesmo quando se converte em objeto de ordens estatais supraindividuais, sempre deve ser  respeitado como um fim em si mesmo e não como instrumento de episódicos e injustificados interesses  políticos ou de conveniência econômica, isto é, de que na qualidade de sujeito destinatário de um ato imperativo do Estado (leis, sentenças, etc.) possa participar legitimamente de sua formação por meio de  eficazes  medidas de controle, a fim de  evitar que o abuso de autoridade ou a falta de correção moral por parte do operador do direito  rompa os limites  que asseguram o âmbito prático da decisão (da interpretação e da aplicação) justa.

E assim deve ser porque na grande maioria das vezes estão submetidas a juízo a virtude na aplicação da Constituição, a realização da justiça concreta, a integridade do direito  e  a própria idéia  de  um operador jurídico autônomo e independente. Somente atuando guiado por uma justa e virtuosa pretensão de correção poderá  vir o operador do direito a  afirmar-se  como  mediador  preocupado com a justiça e com a Constituição de uma República, não somente controlando toda a desregrada maquinaria estatal em suas funções administrativas e legais , senão que também assegurando de forma efetiva os princípios , direitos  e  garantias legitimamente consagrados.

É preciso reconhecer que não somente desde a lex corrupta insensatamente aplicada provém o injusto real como  na  aplicação do direito intervêm, ademais da razão, os sentimentos e as emoções:  para ser um bom operador jurídico não basta com  ter capacidade argumentativa ( com conhecer o direito vigente) , senão que é necessário ter outras virtudes como  sentido da justiça, compaixão e valentia. Afinal,  o que dá sentido ao direito não pode ser outra coisa  que  a  aspiração  à  justiça ou, para dizer  em termos mais modestos e mais realistas:  a luta contra toda e qualquer forma de injustiça.

E nem se objete possa a idéia da segurança ou da certeza jurídica – sempre aqui invocada – constituir-se em argumento suficiente e necessário de oposição a esta conclusão, uma vez que não é uma qualquer “injustiça” a que determina o rigoroso sentido da lei injusta, mas somente aquela que envolva a negação da própria idéia de direito. Depois, se a segurança e a certeza jurídica têm decerto valor apenas na medida em que podem contribuir para a realização da objetividade e previsibilidade em uma ordem jurídica, deixam totalmente de ser fundamento de obrigatoriedade quando invocadas somente para encobrirem situações intoleravelmente injustas ou quando são postas a serviço do arbítrio, da tirania e dos devaneios políticos. A obrigatoriedade e o valor da segurança e certeza jurídica cessam onde cessa toda a legitimidade jurídica, isto é, logo que deixem de contribuir para a concreta realização da idéia de direito. Não é, definitivamente, em função da segurança e da certeza que se afere o direito justo, senão em função do direito justo que se afere a segurança e a certeza jurídica.

Com efeito, as situações de tensão entre a segurança jurídica e a justiça constituem um dos aspectos mais dramáticos da experiência jurídica. Por vezes, são impostas à justiça, pelo menos à justiça estrita do caso singular, certos sacrifícios em nome da segurança jurídica, como, por exemplo, por força do princípio da coisa julgada ou do instituto da prescrição. Mas certamente não é de se admitir que a pretexto da segurança e da certeza jurídica se chegue a um grau intolerável de sacrifício da justiça, sob pena da ordem jurídica se esvaziar de legitimidade e se desnaturar. A paz, a ordem estável, a liberdade, a igualdade, o grau razoável de certeza e de estabilidade, são obras da justiça, cujo fundamento radica na pessoa humana. Como já se disse em outro lugar, a inumanidade do direito é infinitamente mais indesejável que a ausência de todo direito.

Um puro sistema de segurança e certeza jurídicas, indiferente ou contrário à justiça, constitui por si mesmo a  negação do próprio direito. Daí  porque, no plano metodológico, faz-se sentir a necessidade de superar os unitelarismos – quer do legalismo estrito, que privilegia a segurança em prejuízo da justiça, quer do judicialismo casuístico, que favorece a justiça com menoscabo das exigências essenciais de segurança –, mediante soluções que atendam equilibradamente à norma e ao caso, assim como às reclamações desses dois valores fundamentais do Direito, isto é, mediante soluções que tratem de alcançar um estado de coisas onde a justiça e a segurança jurídica em presença alcancem seu mais alto grau de vigência e eficácia possível.

Isto é, que a atividade hermenêutica, da qual não se pode excluir a dimensão emocional e de subjetividade do juízo, não se configure como produção ex nihilo, que não seja somente uma circunstância de produção subordinada à lei, senão que deve ser concebida como uma práxis social destinada a desenhar um modelo sócio-institucional que, garantindo uma certa igualdade material , permita, estimule e assegure que a titularidade e o exercício de direitos de todo ponto inalienáveis não sejam sacrificados em função de arbitrários interesses e injustificadas interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social.

Ocorre que, para exercer esta postura metodológica e principalmente para dizer este “não” – parece evidente – não será suficiente que o operador do direito tenha a coragem de declará-lo; é necessário que tenha o poder de fazer como o declara. E esse poder somente o terá atualmente o operador jurídico no desempenho de uma função judicial. É que embora esta seja a função de todo o operador do direito, este não poderá cumprir (de forma vinculante) essa  tarefa se não lograr ele mesmo impor-se  institucionalmente, já que o  jus respondendi  pessoal dos romanos não é mais do nosso tempo. Depois, tendo deixado a legislação de poder considerar-se hoje como uma manifestação de vontade autêntica e exclusivamente comunitária,  para ser mais bem a imposição prescritiva de uma ideologia partidária em veste de governo, somente a função judicial pode permitir-se ser ideologicamente imparcial, naquela imparcialidade que a faça tão somente sensível ao apelo do direito e da justiça.

Só que para tanto é decerto necessário que a função institucional do operador do direito  seja verdadeiramente independente. E bem sabemos que esta independência é em boa parte uma condição sociológica, função das condições que efetivamente se criem para a sua possibilidade. Mas ela será sempre também, em não menor medida, o resultado de uma vocação. A função do operador jurídico não será nunca independente, se não  o quiser responsavelmente ser; dificilmente deixará de sê-lo ( até porque o exercício da função judicial potencia a organização das condições favoráveis para tanto)  se quiser assumir-se como tal. Um operador jurídico independente é, pois, um dos mais importantes fatores do poder de que o direito necessita para se impor legitimamente.

Mas não bastará somente isto, nem poderá o operador do direito cumprir validamente sua  tarefa institucional se esta não estiver motivada e esclarecida por uma intencionalidade e consciência crítica, quero dizer, daquela crítica que explicite e fundamente o próprio projeto axiológico do direito que deve ser, incondicionalmente, o seu. Isto é, que no exercício de sua função não abdique nunca do seu mesmo dever comunitário e que, na mesma medida,  não aceite degradar-se à mera função burocrática que “analisa processos”, reduzindo-se  a um mero instrumento público pronto para homologar e dar execução a todo e qualquer ditame do poder.

Cabe a estas parcelas de juridicidade a relevante tarefa de fazer valer e projetar na legalidade  vigente os valores fundamentais do direito, isto é, de adotar os meios necessários e adequados que os permitam encontrar a verdadeira e consistente base de legitimação do fenômeno jurídico, em um mundo onde a sofrimento e o desprezo pela dignidade humana convivem com o excesso da riqueza produzida pelo trabalho social e acumulada nas maõs de uns poucos. Enfim, de um operador do direito que incentive e priorize a implicação do direito com uma postura republicana e democrática do Estado e, portanto, que se distancie da paroquiana concepção de sacerdote da dogmática, travestido do manto da infalibilidade jurídica e autoinvestido da suposta virtude que faz com que funcionem como técnicos da lei.

 Somente pensando assim o jurídico – com o cumprimento da Constituição em um contexto histórico-comunitário e fundado na natureza humana – e assumindo o operador do direito a função e a responsabilidade ética que lhe cabe, participará o direito da própria dialética da história e da eticidade humanas, fazendo com que deixe de parecer justa a advertência de Nietzsche de que o direito, “o pensamento jurídico está por fundamentar, pois é utopicamente idealista na teoria e  astutamente materialista na prática”.

Notas:

 

 

[2]Com a devida atenção, pode-se observar que as decisões judiciais, nos estados modernos, raras vezes constituem decisões individuais; são, pelo contrário, decisões coletivas elaboradas em diversas etapas, temporal e hierarquicamente reguladas. A decisão de um caso é, ainda quando intervenha um juiz único, uma decisão grupal, pois as partes no litígio contribuem de uma ou outra maneira à adoção da legislação que seja , em mérito às preferências que efetivamente exercem. Um juiz, por exemplo  , mal poderia ter por  provado um fato que a parte interessada tenha evitado acreditar, decisão da parte que condiciona a decisão judicial final. Tratando-se  de orgãos coletivos – como os tribunais colegiados -, as decisões judiciais têm de ser pensadas como o resultado de uma função coletiva de preferência, uma função determinante da decisão social ou coletiva que, como se sabe, deve satisfazer certos pré-requisitos específicos para poder ser considerada uma decisão racional e não um mero ato arbitrário de poder. Por outro lado,e atentas às observações que antecedem, resulta igualmente claro o diálogo que o juiz competente para julgar a questão tem também de manter com o legislador e com as demais instâncias de constituição de critérios jurídicos suscetíveis  de serem mobilizados para o caso decidendo, mesmo que este segundo grupo de interlocutores não passe de um  “opositor silencioso” e se saiba hoje que está aquí muito mais em causa o encontro do juiz com o critério  tomado na sua objetividade , do que a hipotética discussão entre aquela personagem e a personalidade  ou o órgão instituidor do bordão que concretamente se lhe oferece.

[3] Por certo que não seria nenhum exagero, ademais de oportuno, observar, neste particular, que a hermenêutica de Gadamer, particularmente no que se refere a compreensão prévia (ou  prejuízos),  captou adequadamente o núcleo de nossas intuições cognitivas – isto é, do que vem das intuições ínsitas em nossa arquitetura cognitiva e que nos proporciona ou determina o repertório de nossas primeiras conjeturas e hipóteses – sobre a conata capacidade para interpretar (pré-compreender) os outros, para ler suas mentes, para entendê-los  e para entender a nós mesmos como seres intencionais, ou seja, para ler o que há sob a superfície e dar sentido ao que vemos. Dizendo de outro modo, que a pré-compreensão (posta pela tradição hermenêutica como ponto de partida do círculo ou “espiral” hermenêutico) é algo inevitavelmente dado pela ontologia evolucionada do “ser no mundo”, e não uma plataforma de interpretação na qual deve situar-se o intérprete. A “pré-compreensão” (como inafastável condição de possibilidade da compreensão) implica que o intérprete-aplicador, quando confeccione e manuseie os modelos de decisão, tenha já uma pré-visão do problema, fruto da sua experiência, dos seus conhecimentos, das suas convicções e da própria linguagem. Representa, assim, uma antecipação de sentido do que se compreende, uma expectativa de sentido determinada pela relação (circular) do intérprete com a coisa, no contexto de uma determinada situação. Em outras palavras, a “pré-compreensão” constitui um momento essencial do fenômeno hermenêutico e é impossível ao intérprete desprender-se da circularidade da compreensão (Gadamer): através da análise dos fatores pré-firmados da decisão, e assumindo-se, designadamente, a dimensão dialética e prático-normativa do direito, há que integrar, na medida do possível, o próprio  pré-entendimento nos modelos de decisão, limando  arestas e valorizando os fatores fáticos e sistemáticos que porventura venha a incluir. Neste particular, uma breve reflexão paralela acerca da questão da iniludibilidade da presença  da  pré-compreensão no processo de realização do direito que pode ser ilustrada da seguinte maneira: Como pode um juiz decidir , sem prejuízo, um caso completamente desconhecido para ele? Como pode fazê-lo? É possível que desconheça este caso concreto; mas se desconhece também tais casos, em que direção há de praticar provas e interpretar a lei, se ele não tem idéia alguma acerca do que este trata? Como haveria de emitir um juízo justo, se não pudesse comparar este caso com os outros muitos casos de que já tem notícia (princípio de igualdade)? Criar direito é um reconhecimento de algo em certa forma conhecido com antecipação; não significa ingressar em terreno desconhecido. Em qualquer caso, sempre se produz um choque entre a norma interpretanda e as preferências pessoais do operador do direito, o que não é senão outro modo de dizer que todo juízo de um juiz há de ir inevitavelmente precedido, o saiba e queira o juiz ou não, de um pré-juízo que contribui para colocá-lo em situação. O juiz que não é consciente de seu prejuízo é, em realidade, o juiz mais dependente, acrático e ignorante. Tão somente o prejuízo, a pré-compreensão,  mostra-lhe o que tem de interpretar na norma e o que há de qualificar normativamente no caso. Do contrário teria de proceder na incerteza, no desconhecido. Dois atos separados dessa maneira, um, a norma legal abstrata, o outro, o caso amorfo, não produzem direito algum, nem cada um por separado nem ambos ao mesmo tempo (Kaufmann). Logo, todo aquele que deseje compreender um sentido traz necessariamente sua  pré-compreensão (condição de possibilidade da compreensão dos fenômenos do mundo e que deve ser revisada sempre mediante novos atos do conhecimento) e com ele sobretudo também introduz sua evidência no processo de compreensão; uma compreensão semelhante não é empiricamente objetivável, mas tampouco subjetiva: é mais bem constantemente  subjetiva-objetiva ao mesmo tempo. Daí que todo intento de separar, nomeadamente nas ciências compreensivas, a racionalidade da personalidade que compreende está fatal e tragicamente condenada ao fracasso: a imagem do juiz inteiramente neutral, imparcial, por completo objetivo, despersonalizado, passa por alto da realidade. Nas palavras de Kirschmann: “A verdade espera em vão a um investigador sem prejuízos”.

[4] Por exemplo, seguramente não seríamos verdadeiros cidadãos se o direito consentisse a alienação de nossa liberdade, se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato civil privado, livremente subscrito – coacti volunt –, por meio do qual  uma das partes  se vendesse a outra na qualidade de escrava, participando do preço. Há direitos de todo ponto inalienáveis, como o direito a não ser “objeto” ou propriedade de outro. E são inalienáveis, porque não são direitos puramente instrumentais, senão  direitos  constitutivos  do homem mesmo como âmbito de vontade soberana: direitos que  habilitam  publicamente a existência de in-divíduos dignos, separados, livres  e autônomos. Certamente  que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária da própria liberdade é uma interferência. Mas bem sabemos que não nos  molestam  as interferências  como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se pode constatar no exemplo aquí mencionado. Sem inalienabilidade legal da própria pessoa, não há liberdade, nem há dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas. Esta restrição legal característica de nossas democracias é um dos testemunhos mais patentes do fato de que a base do mundo político moderno foi sentada pela tradição republicana. Representam o núcleo duro republicano de nossas democracias, resistentes até agora (embora por vezes mitigadas e vilipendiadas de forma dissimulada) à “desconstrução” que o liberalismo operou na modernidade.

[5] Por exemplo, John Lyons  defende a idéia de que, no caso do juiz, as considerações morais vêm em primeiro lugar: “Aqueles que agem em nome da lei realizam coisas que exigiriam ser justificadas, se não fossem feitas em nome da lei – eles utilizam a coação e a força, matam e mutilam, retiram às pessoas a sua liberdade e os seus bens[...]. As decisões judiciais, como outras coisas, têm de ser plenamente justificadas do ponto de vista moral”.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ BISNETO, Atahualpa..A constituição, a lei, a "norma injusta" e o operador do Direito. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 183. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/1337/a-constituicao-lei-norma-injusta-operador-direito. Acesso em 20 jun. 2006.

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