INTRODUÇÃO

                        O artigo 28 do Código de Processo Penal estabelece, em última análise, que cabe ao Ministério Público dar a última palavra acerca do arquivamento do inquérito policial, à vista de que, se houver pedido neste sentido, ratificado pelo Procurador-Geral, o juiz estará obrigado a atendê-lo.

                        O entendimento jurisprudencial, por sua vez, é no sentido de que, em havendo pedido de arquivamento, não há caracterização de inércia do Parquet, o que impede a propositura da ação penal privada subsidiária da pública.

                        Assim, é de se indagar: e se as razões constantes no pedido de arquivamento forem manifestamente equivocadas? Ainda assim não haverá inércia e, via de conseqüência, a possibilidade da vítima utilizar-se da ação subsidiária?

                        A reflexão sobre os conteúdos das normas e princípios vigentes, especialmente os de natureza constitucional, conduz à conclusão de que, nesta hipótese, o ofendido poderá propor a aludida ação privada, eis que, do contrário, estar-se-ía admitindo um monopólio tirano da ação penal.

SUMÁRIO: 1 - AÇÃO PENAL; 1.1 - CONCEITO; 1.2 - CLASSIFICAÇÃO; 1.3 – NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA DA PÚBLICA; 2. – O PEDIDO DE ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL E A INÉRCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA

1 - AÇÃO PENAL

1.1 - CONCEITO

                        O Prof. Júlio Fabrini Mirabete traz em sua obra “Processo Penal”, conceitos de ação penal elaborados por Magalhães Noronha e José Frederico Marques: “...o direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do Direito Penal Objetivo” (Magalhães Noronha), ou ainda, “o direito de invocar-se o Poder Judiciário para aplicar o direito penal objetivo” (José Frederico Marques). [01]

                        O citado Mestre, por sua vez, adotando o conceito elaborado por Fernando da Costa Tourinho Filho, leciona que a ação penal:

a- É um direito autônomo:

O direito de ação é autônomo, pois não se confunde com o direito subjetivo material que ampararia a pretensão deduzida em juízo. Se não fosse, não se poderia compreender como o direito de ação pôde ser exercido pela parte quando, afinal, foi ela julgada improcedente. Tem assim a ação um conteúdo próprio, uma vida própria, diversos do direito material a que está ligado. O destinatário da ação não é o sujeito passivo da pretensão insatisfeita e sim o Estado, representado pelo órgão judiciário, a quem se endereça o pedido sobre a pretensão. O interesse do autor é ver atendida sua pretensão, aquela deduzida perante o Estado-Juiz.

b- É um direito abstrato:

Além de autônomo, o direito de ação é um direito abstrato, que investe o seu titular da faculdade de invocar o poder público, por meio dos órgãos judiciários, para compor uma lide e atender, se possível, a pretensão insatisfeita de que este se origina. Independe, portanto, do resultado final do processo, de que o autor tenha ou não razão, ou de que obtenha ou não êxito no que pretende.

c- É um direito instrumental, específico e determinado:

É também um direito instrumental. Embora o fim último do autor seja o de obter um resultado favorável à pretensão insatisfeita, o direito de ação tem por fim a instauração do processo, com a tutela jurisdicional, para a composição da lide. Esse direito instrumental, porém, só existe porque é conexo a um caso concreto. Ingressa-se em juízo pretendendo algo específico. Seu conteúdo é a pretensão deduzida, como determinado, porque está ligada a um fato ou interesse concreto.

d- É um direito subjetivo:

É a ação um direito subjetivo, porque o titular pode exigir do Estado-Juiz a prestação jurisdicional.

e- É um direito público:

É um direito público porque serve para a aplicação do direito público, que é o de provocar a atuação jurisdicional.

E, por fim, assevera:

Diante de tais características pode-se adotar a definição de ação fornecida por Fernando da Costa Tourinho Filho: “Ação é o direito subjetivo de se invocar do Estado-Juiz a aplicação do direito objetivo a um caso concreto. Tal direito é público, subjetivo, autônomo, específico, determinado e abstrato”. (grifo nosso) [02]

2.2 - CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES PENAIS

                        Vários são os critérios utilizados para a classificação das ações penais.

                        Colocando-se a ação penal no esquema da Teoria Geral do Processo, em face do seu conteúdo, pode-se afirmar que ela subdivide-se em ações de conhecimento (declaratória, constitutiva e condenatória), as cautelares e as executivas.

                        Convém trazer à colação, a esta altura, as lições do Professor Julio Fabrini Mirabete:

a- Ação penal declaratória:

Ação penal de conhecimento é aquela em que a prestação jurisdicional consiste numa decisão sobre situação jurídica disciplinada no Direito Penal. São exemplos de ação penal declaratória o hábeas corpus preventivo em que o pedido é de declarar-se a existência de uma ameaça à liberdade de locomoção....

b- Ação penal constitutiva:

Sendo a ação penal constitutiva àquela destinada a criar, extinguir ou modificar uma situação jurídica sob a regulamentação do direito penal ou formal, apontam-se como exemplos as referentes ao pedido de homologação de sentença penal estrangeira e o de revisão criminal (que é uma rescisória no campo penal).

c- Ação penal condenatória:

 A ação penal condenatória, destacadamente a mais relevante no campo penal, é a que tem por objetivo o reconhecimento de uma pretensão punitiva ou aplicação de medida de segurança, para que seja imposto ao réu o preceito sancionador da norma penal incriminadora.

d- Ação penal executiva:

Como ação penal executiva, em que se dá atuação à sanção penal, cita-se a execução da pena de multa, disciplinada nos artigos 164 a 170 da Lei de Execução Penal. Como a execução das demais penas (privativas de liberdade e restritivas de direito) independe de provocação dos órgão da persecução penal, procedendo-se de ofício, sem citação, não há que se falar, nessas hipóteses, em ação executiva, mas em prolongamento da ação penal condenatória.

e- Ação penal cautelar:

A ação cautelar, em que há a antecipação provisória das prováveis conseqüências de uma decisão de ação principal em que se procura afastar o periculum in mora assegurando a eficácia futura desse processo, encontra exemplos no processo penal na perícia complementar (art. 168), no depoimento ad perpetuam rei memoriam (art. 225), na prisão preventiva (arts. 311 e ss) etc. [03]

                        Todavia, o critério mais utilizado é aquele que se baseia no aspecto subjetivo.

                        Adotando-se o citado critério, as ações penais são públicas, quando a titularidade de seu exercício é do Ministério Público, ou privadas, quando seu titular é o particular ofendido ou seu representante legal.

                        As ações penais públicas, por sua vez, subdividem-se conforme esteja ou não presente uma condição específica de procedibilidade, qual seja, a representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça. Quando se exige este requisito, a ação é pública condicionada; nos demais casos a ação será pública incondicionada.

                        É de se ressaltar que os motivos determinantes do enquadramento de determinado crime a um dos tipos de ação supracitados são de natureza política criminal.

                        Assim, os crimes mais agressivos a sociedade, são de persecução absolutamente indisponível, estando sujeitos a ação pública incondicionada.

                        Nos crimes em que ocorra lesão imediata concernente à esfera íntima do ofendido e apenas mediata ao interesse da coletividade, exige-se que o ofendido manifeste o desejo de que se inicie a persecução, embora a iniciativa continue sendo pública (ação penal pública condicionada).

                        Há crimes em que a ofensa atinge quase que exclusivamente o interesse do sujeito passivo. Nestes, o Estado confere ao ofendido o próprio direito de ação.

                        Tendo em vista a finalidade do presente trabalho, é de se concentrar a atenção mais especificamente, embora de forma bastante concisa, na sub-classificação das ações penais privadas.

                        Leciona o Mestre Julio Fabrini Mirabete, que:

“há duas formas de ação privada: a exclusiva, ou principal, e a subsidiária da ação pública. A ação privada exclusiva somente pode ser proposta pelo ofendido ou por seu representante legal...Fala-se na ação privada personalíssima, cujo exercício compete, única e exclusivamente, ao ofendido, em que não há sucessão por morte ou ausência”. [04].

                        No que se refere à ação privada subsidiária da pública, assevera o citado mestre que pode “intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal (art. 100, § 3º, do CP, e art. 29, do CPP. [05].

                        Veja-se o que dispõem os citados dispositivos legais:

Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente declara privativa do ofendido.

.......

§ 3º - A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal”.

“Art. 29 – Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.”

                        Importante, neste momento, citar, também, o artigo 30 do Código de Processo Penal: “Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada”.

                        Assim, é de se concluir que a aludida ação pode ser intentada por qualquer um que tenha o seu bem jurídico lesado ou ameaçado pela prática de crime, qualquer que seja a lei definidora do ilícito.

2.3 - NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA DA PÚBLICA

                        Como é cediço, a ação penal privada subsidiária da pública, está prevista, inclusive, no art. 5º, inciso LIX da Constituição Federal: “Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”.

                        A propósito, ensina o Prof. Mirabete que:

“Essa ação privada subsidiária da ação pública passou a constituir garantia constitucional com a nova Carta Magna (art. 5º, LIX), em consonância, aliás, com o princípio de que a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º , XXXV). Atende-se ao inderrogável princípio democrático do processo a participação do ofendido na persecução penal” [06].

O Procurador da República Anastácio Nóbrega Tahim Júnior, por sua vez, observa:

“Alçada à categoria de garantia constitucional, a ação penal privada subsidiária da pública ainda suscita controvérsias. Singularizada por muitos como uma verdadeira avis rara de nosso ordenamento jurídico, sem prejuízo da inconveniência resultante de sua existência num sistema acusatório, como é o caso do nosso, a verdade é que, com assento no artigo 5º de nossa Carta Política de 1988, a ação penal privada subsidiária consubstancia-se em cláusula pétrea, em que pese todas essas honrosas críticas”. [07]

                        Têm-se, pois, que a natureza jurídica da ação penal privada subsidiária da pública é de instrumento de garantia constitucional, podendo, assim, ser também chamada de “remédio”.

2. O PEDIDO DE ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL E A INÉRCIA DO MINUISTÉRIO PÚBLICO

                        Conforme já mencionado acima, a propositura desta ação só tem guarida quando caracterizada a inércia do Ministério Público. Vale dizer: quando, transcorrido o prazo legal, não são tomadas as providências cabíveis, o que não ocorre, vale ressaltar, quando o inquérito policial é arquivado por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça.

                        No ponto, Mirabete observa que:

“A ação penal subsidiária, ou supletiva, só tem lugar no caso de inércia do órgão do MP, ou seja, quando ele, no prazo que lhe é concedido para oferecer a denúncia, não a apresenta, não requer diligência, nem pede o arquivamento. Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem provas (Súmula 525) e, em conseqüência, não cabe a ação privada subsidiária”. [08].

                        No mesmo sentido, o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

“Para que surja o direito de promover a ação penal privada subsidiária é indispensável que tenha havido omissão da ação pelo Ministério Público, o que nada mais é do que a inércia processual – falta de oferecimento de denúncia ou de pedido de arquivamento formulado à autoridade judiciária – e não verificar-se se ocorreu ou não inércia administrativa do citado órgão”. [09]

                        Note-se, que, se o juiz não concordar com o pedido de arquivamento, aplica-se o disposto no artigo 28 do Código de Processo Penal:

“Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará obrigado o juiz obrigado a atender”.

                        Ora, e na hipótese, pouco provável, é evidente, do Procurador-Geral do Ministério Público insistir num pedido de arquivamento sem ou com frágil fundamentação e o juiz, em conseqüência, determinar o arquivamento? Estaria caracterizada a inércia do MP? A vítima poderia propor a ação penal privada subsidiária da pública?

                        Como se vê, a questão é por demais intrigante, eis que, de um lado, a lei processual determinando que o juiz estará obrigado a acatar a decisão do Procurador-Geral no sentido de que o inquérito deverá ser arquivado. Do outro, a despeito de remota, a possibilidade do Chefe do Ministério Público insistir num arquivamento baseado em razões manifestamente improcedentes.

CONCLUSÃO

                        É de se concluir, pois, que, nessas circunstâncias, restará patente a inércia do Ministério Público, com clara violação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal e, consequentemente, a possibilidade de propositura da ação penal privada subsidiária da pública.

                        Vale dizer: restará à vítima desconsiderar a decisão do Ministério Público e o posterior despacho de arquivamento, propondo a ação penal privada supracitada, sob o argumento de que restou caracterizada a inércia do Parquet (CPP, art. 29).

                        No caso, porém, de não ser recebida a ação subsidiária em face da aplicação, no caso concreto, do disposto no art. 28 do CPP, poderá o ofendido interpor recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, I), para assegurar o seu direito constitucional de acesso à justiça, ou seja, de utilizar-se da ação penal privada prevista nos artigos 5º, inc. LIX da Carta Magna; 100, § 3º do CP e 29 do CPP, quando evidenciada a omissão do órgão ministerial.

                        Não se trata, é evidente, de negar vigência ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, eis que para a sua aplicabilidade, pressupõe-se, obviamente, a atuação legítima do Parquet, fundamentando adequadamente o pedido de arquivamento do inquérito policial.

                        Do contrário, estar-se-ía admitindo, ao arrepio da técnica; da lógica; dos princípios da moralidade; da indisponibilidade; da obrigatoriedade da ação penal; do acesso à justiça e de tantos outros que norteiam o estado democrático de direito, um monopólio tirano da ação penal.

BIBLIOGRAFIA

(01) Julio Fabrini Mirabete – Processo Penal – São Paulo - Atlas – 1ª Edição - pág. 101 - 1991.

(02) Julio Fabrini Mirabete – Atlas – 10ª Edição – São Paulo – pág. 102 – 2000 – São Paulo.

(03) Julio Fabrini Mirabete – Atlas – 10ª Edição – São Paulo – 2000 – São Paulo; pág. 109/110.

(04) Julio Fabrini Mirabete – Processo Penal – São Paulo - Atlas – 1ª Edição – 1991 – pág. 119/120.

(05) Julio Fabrini Mirabete – Processo Penal – São Paulo - Atlas – 1ª Edição – 1991 – pág. 120.

(06) Julio Fabrini Mirabete – Processo Penal – São Paulo - Atlas – 1ª Edição – 1991 – pág. 120.

(07) Anastácio, Tahim Júnior – Processo Penal Constitucional – A Ação Penal Privada Subsidiária nos Crimes Vagos – Disponível em: www.prgo.mpf.gov.br/doutrina/ ANASTACIO-50.htm.

(08) Julio Fabrini Mirabete – Processo Penal – São Paulo - Atlas – 1ª Edição – 1991 – pág. pág. 120/121.

(09) HC – Rel. Sydney Sanches – RT – 609/420

(Artigo elaborado em junho/06)

 

Como citar o texto:

REIS JÚNIOR, Antônio José dos..O pedido de arquivamento do inquérito policial pode caracterizar inércia do Ministério Público, autorizando, por conseguinte, a propositura da ação penal subsidiária da pública?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 184. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/1341/o-pedido-arquivamento-inquerito-policial-pode-caracterizar-inercia-ministerio-publico-autorizando-conseguinte-propositura-acao-penal-subsidiaria-publica. Acesso em 26 jun. 2006.

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