Desde a idéia do Estado de Direito, como forma de proteger o indivíduo das arbitrariedades do poder temporal, foi pensado e criado um poderoso instrumento: o Direito Positivo. Nos sistemas decorrentes da família romano-germânica de direito, o direito positivo pode ser simbolizado e explicado a partir da idéia de lei. Um mecanismo de “dever-ser” dissociado da moral e da região. Ciência, portanto.

Ocorre que a partir do aumento cada vez mais crescente da sociedade, vamos ver uma profusão de normas que torna a ordem jurídica pouco palpável, digerível. Sentimos, assim, a necessidade de um “direito comum”, comum em todos os sentidos, acessível a todos e que não fosse imposto de cima ou por instituições ilegítimas.

O Direito uniforme vem se apresentando, após o advento da criação da sociedade das nações, das organizações de Direito Internacional, do consenso de Washington, da União Européia, da Lex Mercatoria, enfim, de sistemas de formação de ordens jurídicas independentes do Estado nacional, como um mecanismo plural, mas que, paradoxalmente, reduz a complexidade e a própria pluralidade. Não permite aos povos manter sua identidade cultural e jurídica.

Surge este ideal, então, de, para além do pluralismo e da complexidade dos sistemas de direito, reinventar o direito comum (Mireille delmas-Marty. Por um Direito comum).

Para isto, temos que partir do pressuposto de que o direito não é somente um meio para a organização da vida em sociedade: o direito institui a sociedade e o homem. Não se deve esquecer que, em nome de um Direito uniforme, por exemplo, direitos de personalidade, outrora inalienáveis, coisa fora do comércio, começam a ser patrimonializados, onde nítido fica o divórcio entre a lei e o direito.

O Parlamento deveria agir com prudência e parcimônia, porém, cedendo a pressões pouco ou nada legítimas e, afundado na lama da corrupção, cede ao lobby de grandes grupos econômicos e a organizações internacionais que pregam o “bem comum dos povos de todas as nações”, verdadeiros escritórios de legislação, acaba por aprovar leis, quando não é o próprio Executivo que assim age, através de decretos e medidas provisórias, ou, via mensalão, digo, “acordão”, inchando o país de mais e mais burocracia, prevendo tudo, até as minúcias, para, ao final nada dizer, confundindo os destinatários das normas por que a idéia é legislar para poucos e não para muitos. As áreas onde isto mais acontece são as que tratam sobre Direito do Trabalho, Tributário, alfandegário, meio ambiente, economia. Nestas áreas, o arcabouço jurídico apresenta-se tão complexo e confuso que até os advogados mais habilidosos encontram dificuldades de compreende-lo: onde está, aqui, portanto, o direito comum que há pouco falamos? Pior quando o parlamento, a fim de justificar a despesa que acarreta aos cofres públicos legisla para reescrever, com as mesmas palavras, o que já estava escrito...

Será possível um direito comum? O direito uniforme que se pretende respeita as individualidades dos povos, seus traços culturais? Podemos lembrar algumas situações que, caso objeto de normativas uniformes poderiam ocorrer em qualquer lugar: em 1987, um tribunal de Nova Jersey reconheceu a validade de um contrato de “barriga de aluguel” e determinou à locadora da barriga a entrega da criança aos pais, tomadores do “serviço”; em 1988, um tribunal da Califórnia entendeu que um doador de sangue por ser proprietário das células no mesmo contidas, tem direito a royalties sobre os medicamentos fabricados a partir de tais células; em 1988, uma clínica britânica recrutou turcos que quisessem vender seus rins. Ou seja, nestes exemplos, o corpo humano é coisa que faz parte do comércio. Seria possível conciliar esta posição com a de outros sistemas normativos que entende estar este fora do comércio? Este é apenas um dos inúmeros e inimagináveis exemplos que poderiam ser formulados.

Podemos lembrar também o mercado das obras intelectuais: no sistema da OMPI, o autor é titular de direitos morais, além dos patrimoniais, é óbvio, sobre sua criação. Já no sistema de copyright norte-americano, e do TRIPS, GATT (agora OMC), acordo sobre tarifas e comércio, assim como no Direito Comunitário Europeu, estes direitos morais não são previstos, mas, apenas, a expressão econômica da obra, em nítida proteção ao aspecto meramente mercantil da propriedade intelectual. Ou seja, prevalecendo esta posição no direito uniforme a propriedade intelectual será apenas um mero produto, com um valor de mercado.

Assim, vai o espaço nacional cedendo lugar para novas fontes do direito, internacionais, transnacionais e supranacionais, onde nítido verte a posição econômica dos defensores de um direito uniforme que, independentemente de agir aumentando ou reduzindo a regulamentação vai representar a própria privatização do mercado do direito, ignorando que o código dos povos, lembrando François Ost, se fazem com o tempo e influenciam o futuro.

Um direito comum ao prescrever e interpretar também precisa legitimar. E, para isto, lembrando o que ficou definido pelo Tribunal Europeu no julgamento do caso Malone x Reino Unido, de 2 de agosto de 1984, deve se dar com fundamento em uma lei que “seja suficientemente acessível; o cidadão deve poder dispor de informações suficientes, nas circunstâncias da causa, sobre as normas jurídicas aplicáveis a um dado caso; em segundo lugar, só se pode considerar como uma lei uma norma enunciada com suficiente precisão para permitir a um cidadão reger sua conduta”.

Os princípios decorrentes de convenções e tratados internacionais, que visam a formação de um direito comum e que, portanto, vão funcionar em diversos conjuntos, regionais e mundiais, devem resultar de uma escolha ética e respeitar os valores que devem estar inseridos num contexto democrático e isento de arbitrariedades, onde as liberdades fundamentais (vida privada e familiar, liberdade de pensamento, de opinião, de expressão, de religião) restem asseguradas por remédios eficazes de tutela jurisdicional. Ninguém melhor que o juiz do foro para conhecer estas singularidades, como lembrou também o Tribunal Europeu no caso Lingens x Áustria, de 1986.

Para assegurar que estes valores sejam respeitados num ambiente de direito uniforme, que poderá ou não criar ou ser expressão de um direito comum, é importante que todos os operadores do direito estejam cientes de seu papel, sejam eles juízes, sejam advogados. Estes últimos, em especial, deverão cuidar para não se transformar em “comerciantes do direito”, expressão de Dezalay (In: Marchands de droit, Fayard, 1992). Os primeiros, juízes, sem formar uma “ditadura da toga”, deverão interpretar o direito de modo a possibilitar a concretização dos direitos fundamentais do homem e dos povos. Cabe ao legislador, também, evitar a “orgia das leis” (Grant Gilmore), e servir de mecanismo de filtro para normas vindas de fora pouco ou nada coincidentes com os valores que também devem preservar como “fabricantes de leis”, normalmente impostas de forma unilateral como condição de ajuda econômica e suporte para uma dominação cultural e política (apresentar carta do ministro Palocci ao FMI).

Isto é importante que seja observado por que a internacionalização do direito cria a ilusão de que o direito se torna comum, ao passo que comporta o duplo risco de deixá-lo mais opaco ainda aos não-juristas (Mireille Delmas-Marty, ob. cit., p. 210).

Um direito comum é um direito acessível a todos, como já apregoado de início, que não simpatiza com um “abuso do direito de legislar”, pois que, conforme Portalis, apenas será meio de comunicação entre “a lei e o povo” se o povo saiba ou possa saber que a lei existe e que existe como lei.

Quem não gostaria de saber que o Direito Internacional é seguido e respeitado por todos os Estados da comunidade internacional? Quem não gostaria de um dia ouvir falar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem é Direito Positivo e que, portanto, deveria ser observada?

Assimilar a idéia de um direito comum, de um direito inderrogável porquanto carrega valores, em um ambiente de privatização e descentralização do espaço público, cada vez menos legitimado em razão das recentes notícias de corrupção e de esquecimento de sua real identidade-função, parece cada vez mais distante.

Um dia o diálogo entre povos ricos e pobres deverá materializar-se, de fato. Um dia a guerra deverá ceder lugar a um Direito realmente internacional apto a instaurar a ordem sem reduzir a diversidade que é natural aos sistemas jurídicos sem sobrepor o mercado à nação, a economia aos direitos fundamentais do homem, verdadeiro “direito dos direitos”. Um dia, quem sabe, o direito possa ser realmente comum!

 

Como citar o texto:

SANTORO, Valéria Figueiró; SCHMITT, Leandro de Mello..Direito Internacional uniforme: estamos caminhando rumo a um Direito comum?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 199. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-internacional/1560/direito-internacional-uniforme-estamos-caminhando-rumo-direito-comum. Acesso em 8 out. 2006.

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