“Não há, numa Constituição, cláusulas a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a forma imperativa de regras”.

Rui Barbosa

 

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Os Direitos Sociais no Ordenamento Jurídico Pátrio – 2.1. Os  Direitos Fundamentais Sociais – 3. A Síndrome da Inefetividade dos Direitos Fundamentais – 3.1. O Plano da Existência – 3.2. O Plano da Validade – 3.3. O Plano da Eficácia – 3.4. A Efetividade das Normas Jurídicas – 4. A Intervenção do Poder Judiciário em Tema de Implementação de Políticas Públicas – 4.1. A Cláusula da “Reserva do Possível” e o “Mínimo Existencial” – 4.2. As Novas Posturas do Poder Judiciário – 5. Instrumentos Garantidores – 6. Conclusão – Referências.

1. INTRODUÇÃO

O tema ora apresentado prescinde de maior justificativa dada sua relevância, não apenas para o Direito, mas acima de tudo para a própria existência humana.

Caminhando desde as notas históricas e conceituais, seguindo pelo estudo dos planos da norma jurídica e a efetividade das normas constitucionais, chega-se a análise da possibilidade de intervenção do Judiciário para implementar políticas públicas, analisando as questões pertinentes e destacando o entendimento atual do Supremo Tribunal Federal a respeito.

2 – OS DIREITOS SOCIAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

Historicamente falando, o Welfare State ou Estado Social foi criado no século XX como uma resposta jurídica para os anseios surgidos pelo choque provocado pelo ideal socialista. Modelo este, adequado à nova realidade, baseado em um paradigma liberal-burguês, que teve fortíssima influência no constitucionalismo que ali surgia.

Nesse contexto, o governo provisório (1930-1934), que se deu após a tomada por Getúlio Dornelles Vargas do poder, pretendeu dar ênfase a problemas sociais e urbanos e à industrialização.

Em 1932, explodia em São Paulo, a Revolução Constitucionalista, que exigia o retorno do país à normalidade democrática, isto é, a elaboração imediata de uma Constituição. O movimento manifestava-se contra o excessivo poder de Vargas e esperava contar com o apoio de outros Estados. Tal não se deu e, após três meses de combates, os paulistas foram derrotados por tropas fiéis ao Governo. Entretanto, eles conseguiram que Getúlio Vargas convocasse eleições para a organização de uma Assembléia Constituinte em 1933.

A terceira Constituição brasileira e segunda da República foi promulgada em 16 de julho de 1934. Inspirada na Constituição Alemã de Weimar (1919), com fortíssimas influências da concepção de Estado Social, preservava a livre iniciativa e o presidencialismo e mantinha a independência dos três poderes. Foi a primeira Constituição a incorporar avanços sociais, já que as demais tratavam apenas de questões políticas, sendo uma constituição democrática e também social, e essa linha foi seguida pelas Constituições de 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988. Esta última deu um largo passo no sentido da democracia social.[1]

Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, constituição “é o conjunto de normas que regulam as estruturas do Estado e da sociedade nos seus aspectos fundamentais.”[2]

Dessa maneira, além de estabelecer a forma de Estado, de governo, de aquisição e exercício do poder, de instituição e estrutura de seus órgãos, também enuncia os direitos fundamentais e as respectivas garantias e remédios constitucionais.

Após vinte e cinco anos de regime militar, a Assembléia Nacional Constituinte, ao elaborar a Constituição da República de 1988, marcou o ingresso do Brasil no rol dos Países democráticos.

Certo é que, a atual Carta Maior tem a virtude de trazer a reconquista dos direitos fundamentais, sepultando o autoritarismo, pretensioso e intolerante, que se impusera no País.

Apesar de forte crítica à característica dirigente da constituição atual, devem-se marcar as virtudes e inovações trazidas pela Carta de 1988. Os direitos fundamentais foram trazidos para o início do texto constitucional, antes da disciplina da organização do Estado e dos Poderes, configurando uma valiosa carta de proteção dos cidadãos brasileiros contra os abusos, tanto estatais como privados. As novas ações judiciais – como o mandado de segurança coletivo e a ação civil pública constitucionalmente tratada – ampliaram os mecanismos de proteção dos direitos.

A atual constituição, no dizer de José Afonso da Silva[3], “revela-se, do ponto de vista dos fins sociais do Estado, mais progressista do que as anteriores.”

Quanto à atual sistematização da atual Constituição, o texto constitucional é composto por uma “parte orgânica – imanente à Teoria do Estado – e outra parte dogmática – inerente à ‘Teoria dos Direitos Fundamentais’,[4] atingindo seu objeto que consiste na estrutura fundamental do Estado e da sociedade”.

A doutrina constitucional caracteriza a Carta de 1988 como sendo dirigente, optando pela inclusão no texto constitucional de grandes linhas programáticas, que procuram sinalizar caminhos a serem percorridos pelo legislador e pela Administração Pública. Estabelecem-se fins, tarefas e objetivos para o Estado e para a sociedade. [5]

Esta característica apontada, para Barroso

“diminui, de certa forma, a densidade jurídica do texto, embora represente um esforço para condicionar a atuação dos Poderes e impulsiona-los na direção eleita pelo constituinte, notadamente em domínios como os da educação, cultura, saúde, realização de valores como a justiça social e os direitos a ela inerentes. O constitucionalismo dirigente é extremamente dependente da atuação do Congresso Nacional na edição de leis ordinárias necessárias ao desenvolvimento dos programas meramente alinhavados na Constituição.”[6]

2.1. Os Direitos Fundamentais Sociais

A ordem social adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que as constituições passaram a discipliná-la sistematicamente. Em termos jurídicos, o início do Estado Social se deu com a Constituição Mexicana de 1917 e ganhou grande importância com a Constituição de Weimar, em 1919, na Alemanha. No Brasil, a primeira Constituição a inscrever um título sobre a ordem econômica e social foi a de 1934, como dito acima, e continua presente na atual Constituição.

O Estado Social tem como característica básica a intervenção estatal nas relações privadas, de forma a atenuar as desigualdades existentes, disponibilizando o necessário para que os indivíduos possam viver. Passou a garantir, assim, a fruição de prestações por parte do Estado, dando aos indivíduos menos favorecidos acesso à educação, saúde e cultura, entre outros bens.

Alexandre de Moraes conceitua direitos sociais como:

“[...]direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo artigo 1.°, IV da Constituição Federal.” [7]

Assim, são esses direitos prestações positivas proporcionadas pelo Estado, seja direta ou indiretamente, que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais, ligando-se, dessa maneira, ao princípio da igualdade. Portanto, o principal objetivo é a materialização do ideal de igualdade, em detrimento da igualdade formal.

No dizer de José Afonso da Silva, os direitos sociais

“valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.”[8]

A Constituição Federal em vigor, em seu artigo 6.°, proclama como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.[9]

Esses direitos previstos constitucionalmente, são normas de ordem pública, e dessa forma, são caracterizados por sua imperatividade e inviolabilidade.

O artigo 5.°, § 1.° da Carta Magna deixa claro que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Mas, ainda conclui-se que os direitos fundamentais estão protegidos não apenas diante do legislador ordinário como também contra o poder constituinte reformador – por integrarem o rol das denominadas cláusulas pétreas (artigo 60, CF).[10]

Como exposto acima, os direitos sociais visam a garantia da igualdade material. São direitos que têm a finalidade de, com sua concretização, permitir aos indivíduos a possibilidade não só de sobrevivência, mas de inserção plena na vida em sociedade. A idéia é a de que nada adianta a positivação de um rol de liberdades, sem a correspondente garantia de um mínimo necessário para a vida humana.

É sabido que, por exemplo, o exercício de uma efetiva liberdade política pelos cidadãos está relacionado, em boa parte, com a garantia de educação.[11]

Tem esses direitos, natureza preponderantemente prestacional por não exigirem uma contraprestação por parte do beneficiário.

Os direitos fundamentais a prestações enquadram-se no âmbito das normas programáticas, que são, no dizer de José Afonso da Silva:

“Normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta ou indiretamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.” [12]

E, ainda segundo ele, essas se localizam entre as normas de eficácia limitada, ou seja, sua aplicabilidade é dependente de emissão de uma normatividade futura. Essa linha vem tentando ser superada, principalmente pelas constituições e doutrina (alemã especialmente, com reflexo em Portugal). Essa doutrina recente consiste em buscar mecanismos constitucionais e fundamentos teóricos para superar o caráter abstrato das normas definidoras de direitos sociais a fim de possibilitar sua concretização prática. É a chamada síndrome de inefeitividade das normas constitucionais, amplamente discutida na doutrina mais atual.

3 – A SÍNDROME DE INEFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Se está indagando-se acerca da função do Poder Judiciário na realização dos direitos sociais fundamentais é porque se admite a inefetividade da Constituição.

O Direito tem como função social a disciplina da vida social. Assim, ao se submeterem à normatividade do Direito - o chamado fenômeno da juridicização, determinados fatos humanos e naturais se transformam em fatos jurídicos. É aqui que se inserem as normas jurídicas, que, no dizer de Luís Roberto Barroso, “são atos emanados dos órgãos constitucionalmente autorizados, tendo por fim criar ou modificar as situações nelas contempladas”. [13]

Estes atos jurídicos comportam análise científica em três diferentes planos: o da existência, o da validade e o da eficácia.

3.1 – O Plano da Existência

Como dito acima, não são todos os fatos da vida relevantes para o Direito. Alguns destes, pelo fenômeno da juridicização, passam para o mundo jurídico.

Verifica-se a existência de um ato jurídico quando nele estão presentes os elementos constitutivos definidos pela lei como causa eficiente para sua incidência. Em faltando esses pressupostos materiais de incidência da norma, a mesma não poderá ingressar no mundo jurídico.

A norma para existir tem que ter os elementos: agente, forma e objeto, suficientes à incidência da lei.

Assim, um fato da vida, por meio da juridicização – atendendo aos pressupostos acima elencados, ingressa no mundo relativo ao direito, se tornando um ato jurídico.

3.2 – O Plano da Validade

Quanto ao segundo momento de apreciação, como bem enuncia Luís Roberto Barroso, “cuida-se de constatar se os elementos do ato preenchem os atributos, os requisitos que a lei lhes acostou para que sejam recebidos como atos dotados de perfeição”.[14]

Assim, além da presença dos elementos: agente, forma e objeto, para sua existência, também se faz necessário a presença dos requisitos: competência, forma adequada e licitude-possibilidade, para que o ato, já existente, seja também válido. Na falta de qualquer destes requisitos o ato será inválido, e o ordenamento jurídico, em consonância com a maior ou menor gravidade da violação, comina as sanções de nulidade, para as gravíssimas, e anulabilidade, para as menos graves.

Dessa maneira, norma inconstitucional é norma inválida, por desconformidade com o regramento superior.

3.3 – O Plano da Eficácia

Tendo o ato jurídico aptidão para a produção de efeitos, este será eficaz. Dessa forma, “eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade para o qual foi gerado”.[15]

Assim, eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica.[16]

José Afonso da Silva distingue eficácia social da norma, que:

“[...]a uma efetiva conduta acorde com a prevista pela norma; refere-se ao fato de que a norma é realmente obedecida e aplicada, chamada tecnicamente de efetividade da norma”, e eficácia jurídica da norma, sendo esta última, “a capacidade de atingir objetivos nela traduzidos, que vêm a ser, em última análise, realizar os ditames jurídicos objetivados pelo legislador.”[17]

Esses dois sentidos delimitados acima pelo insigne jurista são diversos, como bem aponta o próprio: “uma norma pode ter eficácia jurídica sem ser socialmente eficaz, isto é, pode gerar certos efeitos jurídicos, como, por exemplo, o de revogar normas anteriores, e não ser efetivamente cumprida no plano social”.[18]

Em sendo a norma ineficaz, pode sofrer a mesma, após o reconhecimento de tal ineficácia, a conseqüência de ser revogada. A revogação consiste na retirada de uma norma do mundo jurídico, operando, dessa forma, no plano da existência dos atos jurídicos.

3.4 – A Efetividade das Normas Jurídicas

A efetividade, em lição de Luís Roberto Barroso, significa

“[...]a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.”[19]

Como se deflui do dito acima, a efetividade das normas é a concretização do comando normativo, sua força operativa no mundo dos fatos, e, depende, primeiramente, da sua eficácia jurídica. Não há norma com efetividade sem eficácia jurídica.

A efetivação da Constituição acontece quando os valores descritos na norma correspondem aos anseios populares, existindo um empenho dos governantes e da população em respeitar e em concretizar os dispositivos constitucionais.

Como diz Barroso, o direito existe para realizar-se. Assim, cabe ao jurista formular estruturas lógicas e prover mecanismos técnicos aptos a dar efetividade às normas jurídicas. Quanto à norma constitucional, por ser a própria ordenação suprema do Estado, não pode existir uma norma ulterior, de grau superior, que a proteja. Dessa forma, ela deve encontrar em si mesma a própria tutela e garantia.[20]

Por conseguinte, não há que se falar que o Direito Constitucional seria um direito sem sanção. Aqui não há, como nas demais áreas do direito, a cominação de determinada pena ou uma execução civil, mas sim a responsabilização política. Portanto, as normas constitucionais têm sempre eficácia jurídica, são imperativas e sua inobservância espontânea enseja aplicação coativa.

A efetividade ou eficácia social dos direitos sociais é uma das questões mais discutidas do Direito Constitucional e sua inefetividade é um dos maiores argumentos para a caracterização da crise do Estado Social de Direito no Brasil.

Sobre a referida crise, Ingo Wolfgang Sarlet:

“Tomando como premissa a idéia de que a crise no Estado Social é, também, uma crise da sociedade, da democracia e da cidadania, não nos será difícil sustentar – a exemplo do que já tem ocorrido no seio da doutrina – a existência de uma crise dos direitos fundamentais, crise que – à evidência – será mais ou menos aguda, quanto maior for o impacto dos efeitos negativos da globalização econômica e da ampla afirmação do paradigma neoliberal.” [21]

Ainda, o insigne doutrinador destaca os principais reflexos desta crise:

“a) a intensificação do processo de exclusão da cidadania, especialmente no seio das classes mais desfavorecidas, fenômeno este ligado diretamente ao aumento dos níveis de desemprego e subemprego, cada vez mais agudo na economia globalizada de inspiração neoliberal; b) redução e até mesmo supressão de direitos sociais prestacionais básicos (saúde, educação, previdência e assistência social), assim como o corte ou, no mínimo, a “flexibilização” dos direitos dos trabalhadores; c) ausência ou precariedade dos instrumentos jurídicos e de instâncias oficiais ou inoficiais capazes de controlar o processo, resolvendo os litígios deles oriundos, e manter o equilíbrio social, agravando o problema da falta de efetividade dos direitos fundamentais e da própria ordem jurídica estatal.”[22]

Dentre esses reflexos, o segundo receberá especial destaque neste estudo.

Os direitos sociais previstos na Carta Magna, não somente no artigo 6.°, são de suma importância para o referido Estado Democrático de Direito enunciado no artigo 1.° desta Carta. Sem efetividade estas normas se tornam inócuas, sem força. 

A efetividade da Constituição tem sido, ao menos nos últimos anos, a preocupação central de muitos dos pensadores brasileiros do direito constitucional, que, em seu conjunto, compõem uma corrente teórica que podemos denominar de constitucionalismo brasileiro da efetividade, representado por vários constitucionalistas de suma importância no contexto jurídico nacional como Luís Roberto Barroso, Ingo Wolfgang Sarlet, José Afonso da Silva e outros.

O artigo 5.°, § 1.° da Constituição da República estabelece que as normas definidoras de direitos fundamentais possuem aplicação imediata. Vê-se que o objetivo do referido dispositivo é a de estabelecer, em abstrato, a impossibilidade de se caracterizar normas instituidoras de direitos fundamentais através de conceitos restritivos de sua efetividade, como os de norma não auto-aplicável ou de eficácia limitada. Porém, não foi o que realmente ocorreu.

No dizer de Cláudio Pereira de Souza Neto,

“[...]a obra de José Afonso da Silva e dos demais autores do constitucionalismo brasileiro da efetividade era tendente à efetivação da Constituição e pôde, justamente por isso, ser incorporada como referência central pelo pensamento jurídico de esquerda, com o tempo passou a servir paradoxalmente ao propósito contrário, não por suas características internas, mas por conta da interpretação que fez dela o Poder Judiciário Brasileiro, especialmente sua mais Alta Corte. As expressões “norma programática”, “norma de eficácia limitada”, “princípio programático” acabaram por se constituir em verdadeiros índices de não efetivação da Constituição.”[23]

O Supremo Tribunal Federal, em decisão conhecida de sua interpretação do § 3.° do artigo 192 da Carta Maior entendeu que:

“A regra inscrita no art. 192, parágrafo 3.°, da Carta Política – norma constitucional de eficácia limitada – constitui preceito de integração que reclama, em caráter necessário, para efeito de sua plena incidência, a mediação legislativa concretizadora do comando nela positivado. Ausente a lei complementar reclamada pela Constituição, não revela possível a aplicação imediata da taxa de juros reais de 12% a.a. prevista no art. 192, parágrafo 3.°, do texto constitucional.”[24]

Este fundamento, presente em outras tantas decisões da Suprema Corte, se centrou na avaliação dos aspectos formais da norma, de modo a se caracteriza-la como norma de eficácia limitada.

Comparemos agora com uma decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça, sobre o referido tema.

“A decisão judicial que atende a contrato de financiamento bancário com a alienação fiduciária em garantia e ordena a prisão de devedora por dívida que se elevou, após alguns meses, de R$ 18.700,00 para 86.858,24, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, dá validade a uma relação negocial sem nenhuma equivalência, priva por quatro meses o devedor de seu maior valor, que é a liberdade, consagra o abuso de uma exigência que submete uma das partes a perder o resto provável de vida que não seja o de cumprir com a exigência do credor. Houve ali ofensa ao princípio da dignidade da pessoa, que pode ser aplicado diretamente para o reconhecimento da invalidade do decreto de prisão.”[25]

Deve-se ressaltar a diferença decisiva nas duas formas de entender a aplicabilidade constitucional. Enquanto uma Corte entende que a norma constitucional em tela não deve ser concretizada porque não traz em seu texto todos os elementos formais necessários a sua concretização, a outra Corte decide pela não concretização da prisão do depositário infiel por conta do fato de se ter penetrado na esfera da fundamentalidade, sendo esta definida através de critérios materiais, alicerçados no princípio da dignidade da pessoa humana.

Como referido anteriormente, a Constituição reconhece a preponderância da norma jusfundamental e busca, com o dispositivo do § 1.° do artigo 5.°, torna-la passível de aplicação imediata, sem depender de mediação legislativa. Toda a divergência sobre este dispositivo versa justamente sobre a conveniência e possibilidade de se incluírem, em seu âmbito de incidência, os direitos sociais.

Ingo Wolfgang Sarlet entende que este artigo é, na verdade, um princípio, devendo ser concretizada como um mandamento de otimização, tendo em vista que existem certos direitos fundamentais, sobretudo os prestacionais sociais, cuja plena concretização esbarraria em limites de caráter orçamentário. Dessa forma, o referido dispositivo estabeleceria apenas uma presunção em favor da plena aplicabilidade da norma jusfundamental.[26] Seria a disposição expressa do princípio de interpretação constitucional da máxima efetividade, segundo o qual, em caso de dúvida, deve-se optar pela interpretação tendente à concessão de maior efetividade ao texto constitucional.

Na doutrina há um critério formalista segundo o qual, quando se trata de direito social de defesa, a norma é de eficácia plena, ao passo que, se se tratar de direito social prestacional, é de eficácia limitada.

Em atuação recente, o Supremo Tribunal Federal concedeu máxima efetividade à Constituição para concretização do direito à saúde, mesmo se tratando de um direito prestacional social.[27] O próprio José Afonso da Silva já havia caracterizado o artigo 196, objeto da referida decisão, como norma de eficácia limitada. Destaca-se a ementa:

“O caráter programático da regra inscrita no Art. 196 da Carta Política – que tem por destinatário todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.” [28]

Por outro lado, é possível encontrar na jurisprudência do STF decisões que restringem a eficácia de direitos sociais de defesa. Um famoso exemplo é o caso do direito de greve de servidores públicos. Trata-se de um direito social de defesa, cuja concretização independe de recursos estatais. Por isso, seguindo a idéia que a disposição do § 1.° do artigo 5.° da Carta Maior enuncia uma presunção, que, no caso, atuaria a favor de sua concretização, mas não foi o que a Corte decidiu. O STF interpretou a norma existente no artigo 37, VII como sendo uma norma de eficácia limitada, não podendo, por conseguinte, ser objeto de concretização direta por parte da autoridade judicial.

4 – A INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Com a Carta de 1988, os direitos individuais passaram a ter um significado ímpar, como se deflui da própria modificação feita pelo constituinte ao alterar a localização do catálogo dos direitos fundamentais para o início do texto constitucional. Além disso, também se reconheceu que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, e, dessa forma, será ilegítima qualquer reforma com objetivo de suprimí-lo (art. 60, § 4.°, IV/CF).

Jellinek, em sua teoria dos quatro “status”, mostra que os direitos fundamentais cumprem diferentes funções na ordem jurídica.

Tradicionalmente, os direitos fundamentais são direitos de defesa (‘Abwehrrechte’), que são destinados a proteger determinadas posições subjetivas contra a intervenção do Poder Público, seja pelo não-impedimento da prática de determinado ato, seja pela não-intervenção em situações subjetivas ou pela não-eliminação de posições jurídicas.[29]

Dessa maneira, os direitos fundamentais têm disposições definidoras de uma competência negativa do Poder Público, quando a obrigação é de respeitar o núcleo de liberdade assegurado pela Carta Maior, e disposições que consagram direitos a prestações positivas, que se subdividem em prestações fáticas ou normativas.

Ressalta Gilmar Mendes que:

“A visão dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa (Abwehrrecht) revela-se insuficiente para assegurar a pretensão de eficácia que dimana do texto constitucional. (...) não se cuida apenas de ter liberdade em relação ao Estado (Freihet vom...), mas de desfrutar essa liberdade mediante atuação do Estado (Freiheit durch...).”[30]

Característica forte dessas pretensões a prestações de índole positiva é a de que elas estão voltadas para a conformação do futuro. Essas pretensões impõem decisões que estão submetidas a elevados riscos, como por exemplo, o direito à assistência social, previsto no artigo 6.° c/c 203 da Constituição, depende de uma série de pressupostos de índole econômica, política e jurídica.

Sobre o tema, Gilmar Mendes conclui:

“A submissão dessas posições a regras jurídicas opera um fenômeno de transmutação, convertendo situações tradicionalmente consideradas de natureza política em situações jurídicas. Tem-se, pois, a juridicização do processo decisório, acentuando-se a tensão entre direito e política.”[31]

Neste ponto, a questão se torna complexa, visto que, ao Poder Judiciário, pela separação de poderes, não cabe tomar decisões legislativas ou administrativas discricionárias por não ser órgão de representação popular, competindo, assim, aos Poderes Legislativo e Executivo, respectivamente, tais ações.

Entretanto, frente à inércia destes poderes, o Judiciário não deve manter-se omisso. Pertinente, a tal propósito, as observações do Ministro Celso de Mello:

“(...) - Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. ..........................

- A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental."[32]

A Carta de 1988 assegura à todos o direito a condições mínimas de existência e, se os poderes competentes a tal ato se omitirem estar-se-ão infringindo os preceitos da mesma.

Destaca-se, neste ponto, a ilustre decisão do Supremo Tribunal Federal que enuncia:

“É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.

Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.

Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política "não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado".[33]

4.1 – A Cláusula da “Reserva do Possível” e o “Mínimo Existencial”

Face à ante referida juridicização do processo decisório em questões de efetividade dos direitos fundamentais sociais, esta, para cumprir seu real objeto, está adstrita a diversas condições, dentre elas a que mais se destaca é a reserva do financeiramente possível.

Trata-se de conceito oriundo do Direito Alemão, baseado em decisão da Corte Constitucional (BverfGE n.° 33, S.333), no qual se pretendia ingressar no ensino superior público, mesmo sem existir vagas suficientes, com argumento na garantia da Lei Federal Alemã de liberdade de escolha da profissão.

A referida decisão firmou posicionamento de que o indivíduo só pode requerer do Estado uma prestação que se dê nos limites do razoável. Assim, ainda segundo a Corte Constitucional Alemã, os direitos sociais prestacionais “estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade.

Questão se faz ao delimitar, diante do caso concreto, quais são os critérios utilizados para definir o que é razoável e, além disso, quais são os órgãos legitimados para tanto.

Em contra partida, fala-se na existência de um direito mínimo de existência, extraído, na Alemanha, do princípio da dignidade humana, em que cabe ao Estado a garantia de um mínimo existencial para cada indivíduo.

Na realidade vivida no país subdesenvolvido como o Brasil, não há que se esperar a mesma aplicabilidade e eficácia dessas teorias, amplamente aceitas no direito alemão, que vive uma outra realidade social.

O mínimo existencial em nosso país, em que um salário mínimo, pela Carta Maior (art. 7.°, IV), é, digo, deveria ser “(...) capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (...)”, os paradigmas mudam, significativamente.

Considerando tal questão, o Pleno do Supremo Tribunal Federal apresentou posicionamento admitindo limite inafastável quanto à participação do Poder Judiciário no quadro apresentado, como se vê:

“Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à "reserva do possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, "The Cost of Rights", 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.

É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

 Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS ("A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais", p. 245-246, 2002, Renovar):

"Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.

A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível." (grifei)

Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.”[34]

4.2 – As Novas Posturas do Poder Judiciário

A noção de Estado Democrático de Direito está indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais-sociais.[35]

Em contraponto, muitos dos direitos fundamentais precisam, para a sua aplicabilidade, da intervenção do legislador ou do administrador. Assim, alguns direitos fundamentais possuem densidade suficiente para sua concretização, sendo self executing, e outros necessitam da atuação positiva do Poder Público ou, até mesmo, da própria sociedade em interação com esse.

O que não se pode admitir é que os direitos fundamentais tornem-se, pela inércia do legislador ou pela insuficiência de fundos estatais, letra morta, pretensão irrealizada. As normas programáticas não podem ser apenas metas futuras, objetivos remotos.

Como bem enuncia Marcos Augusto Perez[36], em seu artigo sobre o tema, “não é possível que concebam os princípios da democracia econômica, social e cultural como uma meta abstrata, sem possibilidade de concretização específica.”.

Também é o entendimento de Eros Grau, que se referindo ao próprio Canotilho e a Dworkin, leciona:

“Um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é o da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Cuida-se, aí, da consagração de princípio constitucional impositivo (Canotilho) ou diretriz (Dworkin) – autêntica norma – objetivo; o caráter constitucional conformador do princípio é, não obstante, evidenciado. [...]”[37]

Dessa forma, analisando todas essas afirmações, parece claro que a efetividade material dos direitos fundamentais passa por uma perfeita definição, no plano das opções políticas concretas, da função administrativa do Estado, realizadora de políticas públicas, bem como da função legislativa, definidora, em grau normativo, dessas políticas (o que se dá, p. ex., com o plano diretor urbano no âmbito municipal), funções estas que devem se voltar precipuamente à concretização daqueles direitos.

Assim, constitui obrigação comum e prioridade do Poder Executivo e do Poder Legislativo a busca incessante da efetividade material dos direitos fundamentais.

Porém, o Judiciário não pode se furtar a apreciar a desobediência a quaisquer modalidades de direitos fundamentais se instado a tanto, seja através do instituto da Inconstitucionalidade por Omissão, seja através do Mandado de Injunção ou por qualquer outra via processual, em lides individuais ou coletivas, deflagradas através de ações propostas em face de agentes públicos ou privados. Porém, parece que a realização do Estado Social e Democrático de Direito e, conseqüentemente, a concretização ou efetivação dos direitos fundamentais na sociedade é obrigação de todos os Poderes do Estado, indistintamente.

Dessa maneira, a busca da efetividade material dos direitos fundamentais como um todo deve ser missão prioritária também do Poder Judiciário.

Destaca-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade do Poder Judiciário implementar políticas públicas abaixo:

“É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.” (grifo nosso)[38]

Persiste, agora, a questão de como deverá o magistrado comportar-se quando defrontando uma questão que envolva a concretização de direitos sociais de necessária mediação pela Administração Pública ou ainda de normas programáticas.

Uma série de dificuldades deverão ser superadas, no dizer de Perez

“As políticas são condizentes à verdadeira independência dos magistrados perante os demais poderes, às garantias existentes para o exercício da função, à existência de controle social da atividade dos magistrados, às formas de recrutamento dos magistrados etc. As culturais relacionam-se por um lado com a conscientização do papel político do magistrando (o julgador ao decidir uma lide exercita um poder, poder este subtraído à sociedade pelo Estado e tão político quanto o de legislar ou administrar a coisa pública) e, de outra parte, com o conservadorismo legalista, isto é, o costume de decidir através da reprodução automática da lei e da lei e da jurisprudência. Como decidir sem a minudência da lei ou sem a orientação da jurisprudência? Por fim, as dificuldades de ordem jurídica relacionam-se à interpretação do sistema de separação dos poderes e à necessidade de superação de teorias como a do “mérito administrativo”. Todas essas questões devem ser francamente consideradas e abertamente debatidas. Ao nosso ver, o Judiciário deve buscar superar todo e qualquer tipo de resistência à idéia de compromisso com a efetividade dos direitos fundamentais.” [39]

Cappelletti, também segue essa linha de pensamento, afirmando que: “El papel de los modernos jueces constitucionales, es hacer observar normas y derechos constitucionales vagamente formulados y que a menudo requieren la intervención activa del Estado”. [40]

Entre nós merece destaque o estudo de José Reinaldo segundo o qual:

“O Judiciário, provocado adequadamente, pode ser um poderoso instrumento de formação de políticas públicas. Pela sua natureza, o debate judicial permite o avanço da democracia ao permitir as discussões de temas relevantes. Seja qual for a nossa opinião a respeito de temas como censura, liberdade de imprensa, aborto, direitos de minorias, direito de greve etc., sua submissão a uma discussão judicial amplia o espaço de democracia, porque exige, com mais ou menos sucesso, a racionalidade das propostas divergentes.” [41]

Certo é que o judiciário não pode furtar-se à persecução da efetividade dos direitos fundamentais, devendo decidir o caso concreto ainda que inexista a necessária mediação do legislador ou da Administração Pública, ainda que se trate de norma programática ou não-exeqüível do ponto de vista da aplicabilidade.

Aqui, resta saber de que instrumentos se valerá o Poder Judiciário para conceder essa efetividade buscada no caso concreto, também quais serão as formas de coagir a Administração Pública a realizar uma política pública.

Especial relevo possui, para a solução das questões acima explanadas, a assunção do “juízo de eqüidade” como forma de decidir, ou seja, deverá o magistrado, à luz do bom senso, de sua experiência de vida, de sua responsabilidade política, considerados, no mais das vezes, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, decidir o caso concreto, afastando, se for o caso, a inexeqüibilidade em tese da norma fundamental programática, definindo, se motivo houver, obrigações positivas para o Estado ou para um particular que venha a afrontar direito fundamental.

Diante disso, conclui-se que das normas reconhecedoras dos direitos fundamentais deve-se buscar extrair o máximo de efetividade material. Deve o intérprete enfrentar, sim, as dificuldades oriundas da característica normativa (aplicabilidade) adversa à efetivação de alguns desses direitos, oriundas da conformação constitucional dos mesmos e, ainda, as dificuldades relacionadas à sua realização concreta, material, no plano da relação entre o Estado e a sociedade, tendo em conta os dados da conjuntura socioeconômica. Mas deve ter sempre em mente que, em visão prospectiva, possui a obrigação de tentar superar esses obstáculos, visando à concretização dos princípios norteadores do Estado Democrático e Social de Direito.

6 – INSTRUMENTOS GARANTIDORES 

Sabe-se que a moderna dogmática dos direitos fundamentais discute ser possível o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos sociais constitucionalmente assegurados e sobre a possibilidade de eventual titular do direito poder exigir pretensão a prestações por parte do Estado.

O constituinte de 1988 criou dois instrumentos para lidar com as omissões legislativas inconstitucionais: o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão; e pode-se utilizar da ação civil pública quando o caso for de omissão administrativa inconstitucional.

7 - CONCLUSÃO

Das considerações acima, deduz-se que há, na doutrina e jurisprudência, uma profunda dificuldade em lidar com a idéia e regime jurídico dos direitos sociais, que perdem as características de valores supremos da ordem constitucional. E, dessa maneira, os direitos sociais terminaram rebaixados na hierarquia normativa, reduzidos a normas programáticas a espera de serem regulamentadas para produzirem efeitos.

Indagou-se acerca do papel da Justiça Constitucional na realização de direitos sociais fundamentais frente à inércia do Poder competente para tanto. E, seguindo os mais atuais posicionamentos, inclusive do Supremo Tribunal Federal, chegou-se à conclusão de que é possível essa intervenção, pois a concepção de Estado Democrático de Direito sustenta-se na democracia e na realização dos direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS

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VALADÃO, Haroldo. História do Direito. Especialmente do Direito Brasileiro. 4.ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980.

Notas:

 

 

[1] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 146.

[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6.ª ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 67.

[3] SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2003, p. 146.

[4] MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: Teoria da Constituição, 2.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004, p. 71.

[5] BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites, 6.ª ed. São Paulo: Renovar, 2002, p. 291.

[6] Ibidem, loc.cit.

[7] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2001, p.193.

[8] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 286.

[9] BRASIL. A Emenda Constitucional n.° 26, de 14 de fevereiro de 2000, deu nova redação ao art. 6.°, incluindo na Constituição Federal o direito à moradia.

[10] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. São Paulo: Saraiva, 2005.

[11] BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 369.

[12] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 138.

[13] BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 11.

[14] BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 12.

[15] BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 13.

[16] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 66.

[17] Ibidem, loc.cit.

[18] Ibidem, loc.cit.

[19] BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 85.

[20] Ibidem, p. 87.

[21] SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, v. 1, n.° 1. Salvador: Centro de Atualização Jurídica, 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 8 de mar. de 2005.

[22] Ibidem, loc. cit.

[23] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 293-294.

[24] BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RE. 170131/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24.06.1994. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 20 de mar. 2005.

[25] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Resp. 249026/PR, Rel. Min. José Delgado, DJU 26.06.2000. Disponível em: www.stj.gov.br. Acesso em: 20 de mar. De 2005.

[26] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

[27] BRASIL. Supremo Tribunal Federal, AGRRE 271286/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24.11.2000. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 20 de mar. 2005.

[28] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 141.

[29] JELLINEK apud MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Revista Diálogo Jurídico, n.° 10, janeiro, 2002. Salvador: Centro de Atualização Jurídica. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em: 08 de março de 2005.

[30] MENDES, Gilmar Ferreira. Op.cit.

[31] Ibidem, loc. cit.

[32] RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno.

[33] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 45 MC/DF. Relator: Ministro Celso de Mello.DJU 04 de maio de 2004. Informativo do STF n.° 345, 05 de maio de 2004, Brasília-DF.

[34] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 45 MC/DF. Relator: Ministro Celso de Mello.DJU 04 de maio de 2004. Informativo do STF n.° 345, 05 de maio de 2004, Brasília-DF.

[35] STRECK, Lenio Luiz. O Papel da Jurisdição Constitucional na Realização dos Direitos Sociais-Fundamentais. Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado. Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet. Rio de Janeiro: Renovar. 2003, p. 171.

[36] PEREZ, Marcos Augusto. O Papel do Poder Judiciário na Efetividade dos Direitos Fundamentais. Revista RT: Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 11-237.

[37] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 233-234.

[38] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 45 MC/DF. Relator: Ministro Celso de Mello.DJU 04 de maio de 2004. Informativo do STF n.° 345, 05 de maio de 2004, Brasília-DF.

[39] PEREZ, Marcos Augusto. Op. cit., p. 11-237.

[40] CAPPELLETTI, Mauro. Apuntes para una fenomenologia de la justicia en el siglo XX, in Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 71-97.

[41] LOPES, José Reinaldo Lima. Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito, in Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. José Eduardo Faria (org). São Paulo: Malheiros, 1994, p. 136-137.

(Texto elaborado em agosto/2005)

 

Como citar o texto:

VARGAS, Paula de Oliveira..A Efetividade das Liberdades Públicas pela Intervenção Judicial: Análise à Luz do Supremo Tribunal Federal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 204. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/1610/a-efetividade-liberdades-publicas-pela-intervencao-judicial-analise-luz-supremo-tribunal-federal. Acesso em 13 nov. 2006.

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