Um dos aspectos relevantes da Lei n. 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad - , prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabeleceu normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e definiu crimes, é o de que tratou de diferenciar o usuário e o dependente de drogas do traficante , aplicando a este penas de reclusão e de detenção, segundo o tipo e a gravidade do crime praticado. De acordo com o § 2º. do artigo 28 da mencionada lei, o juiz , para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal ou não, deverá atender aos requisitos relativos a) a natureza e quantidade da substância apreendida, b) ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, c) às circunstâncias sociais e pessoais, e d) à conduta e aos antecedentes do agente.

Como não poderia deixar de ser, o legislador preocupou-se, corretamente segundo nos parece, com a questão relativa à reinserção social dos usuários e dependentes de droga , assim como do desenho de um conjunto de estratégias e atividades diferenciadas de atenção e prevenção a estes indivíduos e seus respectivos familiares, visando dar a este coletivo humano uma melhoria de qualidade de vida e a redução dos riscos e dos danos associados ao uso de drogas.

Até aí, nada a objetar. Sem embargo, aos dependentes e usuários, relativamente ao conteúdo normativo do artigo 28 da mesma lei, o legislador não tratou de impor qualquer tipo de medida com caráter coativo, uma vez que as penas impostas limitam-se a: a) advertência sobre os efeitos das drogas; b) prestação de serviços a comunidade; e c) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo . E para garantir o cumprimento das medidas educativas, o § 6º do mesmo artigo estipula que, no caso do agente que se recuse injustificadamente ao cumprimento das referidas medidas, o juiz poderá submetê-lo, sucessivamente, a admoestação verbal e pagamento de multa.

Então, onde está o poder coativo do Estado? Parece que o Estado não somente não está preocupado em reintegrar o individuo à sociedade – uma vez que dá um caráter facultativo ao usuário e ao dependente, caso queiram ser reintegrados – senão que se mostra igualmente descuidado pela urgência de tratamento desses indivíduos e pela efetividade das medidas “punitivas” previstas na lei. Nesse sentido, parece razoável admitir que a única maneira de que a lei não venha a tornar-se “motivo de burla” é a de dotar-lhe de força e meios eficazes para coibir a prática de atos que se consideram lesivos aos interesses da sociedade; e nas democracias liberais isto somente pode se dar, ou assim parece, através de alguma forma de medidas efetivamente punitivas.(Simone Weil).

Daí porque as leis não são simplesmente um conjunto de regras faladas, escritas ou formalizadas que as pessoas simplesmente seguem ou não. Representam a formalização de regras comportamentais tendentes à efetiva consecussão de fins que a própria sociedade, mediada pelo Estado, considera valiosos. Refletem as inclinações das aspirações valorativas de uma determinada sociedade e oferecem benefícios potenciais àqueles que às seguem. Quando as pessoas não reconhecem esses benefícios potenciais e sua eficácia, às leis são, com freqüência, não somente ignoradas ou desobedecidas senão que seu cumprimento fica condicionado à concordância anímica de seus destinatários. E uma vez que a sociedade usa leis para encorajar as pessoas a se comportar diferentemente do que elas se comportariam na falta de normas, esse propósito fundamental não somente torna a lei altamente dependente das medidas adotadas para que seja efetivamente cumprida como, e na mesma medida, faz com que quanto melhor seja sua força coativa melhor poderá atingir seus propósitos.

Pois bem, outro aspecto da lei que cabe destacar reside no fato de que o legislador trata o usuário de drogas em igualdade de condições ao dependente de drogas, dando-lhes claramente, no Capítulo II, tratamento igual a ambos. Tal postura, adotada pelo legislador e plasmada no texto normativo ora analisado, não parece de todo adequada do ponto de vista médico e psicológico. Há diferenças importantes entre o usuário, que consome esporádicamente algum tipo de droga, e o dependente que não consegue parar de consumir, gerando consequências danosas tanto para sua saúde como para a sociedade.

Segundo estudos do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP, o tratamento prioritário deve estar voltado às pessoas que se tornaram dependente das drogas, os quais deveriam ser devidamente tratados por medidas médico-psicológicas ( que assossiam o uso da medicina e da psicologia) e, como tal, tratados como enfermos. Essas medidas médico-psicológicas não impõem a internação necessária dos dependentes, uma vez que estão dirigidas, fundamentalmente, ao tratamento dos mesmos. Dependentes são aqueles indivíduos que utilizam drogas em quantidades e freqüências elevadas, e cujo organismo se defende estabelecendo um novo equilíbrio em seu funcionamento e adaptando-se à droga de tal forma que, na sua falta, funciona mal.

Assim que a melhor alternativa para esta lei deveria ser a de haver estabelecido a diferenciação entre o usuário esporádico, que estará perfeitamente enquadrado nos termos de seu (pouco convincente ) artigo 28, e o indivíduo dependente físico ou psíquico, o qual deve obter tratamento completamente diferenciado, visando assim sua efetiva recuperação e reintegração à sociedade. Afinal, a existência de profundas diferenças entre os indivíduos deve levar a certas diferenças nos direitos a serem atribuídos a uns e outros.

Dito de outro modo, quando se invoca um princípio de justiça, igualdade ou eqüidade (presente na maioria das teorias contemporâneas da justiça, ao estilo da de Rawls) não se está em absoluto pretendendo que deva conduzir a idêntico trato, senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições. Não implica necessariamente que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar, senão simplesmente que a consideração que merecem diferentes indivíduos conduz a distintos direitos.

Bem vindos sejam todos os avanços da lei que nos permitam combater melhor esse mal e suas causas. Mas ainda que os avanços da lei viabilize estratégias adequadas para coibir que determinados indivíduos , motivados pelo consumo de drogas, levem a cabo comportamentos patológicos e/ou anti-sociais, nada, absolutamente nada, virá a substituir a responsabilidade do Estado, em grau de tolerância zero, de adotar todos os meios necessários e eficazes para que possamos formar parte de uma sociedade na qual impere a segurança, a liberdade e a garantia de direitos e proteção a todos aqueles que, por essa razão, se encontram na parte mais escura da vida - “no pior de todos os mundos possíveis”, para usar a expressão de Schopenhauer .

 

Como citar o texto:

BISNETO, Atahualpa Fernandez..A Lei n. 11.343 / 2006 e o problema da não diferenciação entre usuário e dependente. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 208. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/1625/a-lei-n-11-343-2006-problema-nao-diferenciacao-entre-usuario-dependente. Acesso em 10 dez. 2006.

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