1. Justiça terapêutica – Em relação ao usuário de droga ilícita (que não for traficante), a nova Lei das Drogas adotou o paradigma terapêutico e não o punitivo. “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”, conforme tipo previsto no art. 28.

O uso indevido de drogas continua sendo crime porque previsto como crime no art. 28 da Lei 11.343/06. Mas crime sem punição. Sua pena não é castigo, mas tratamento. Pelo paradigma terapêutico, usuários e dependentes de drogas não são um problema policial, mas de saúde pública. Aquele que for processado por posse de droga para uso próprio tem direito a um projeto terapêutico individualizado, orientado para a inclusão social e para a redução de riscos e de danos sociais e à saúde (art. 22, inc. III).

2. Procedimento penal – A mudança de paradigma no enfrentamento do problema das drogas também alterou o procedimento penal. Pela nova Lei: “Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal. §1º O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos art. 33 a 37 desta Lei, será processado o julgado na forma dos art. 60 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais. §2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários. §3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no §2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente. §4º Concluídos os procedimentos de que trata o § 2º deste artigo, o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida liberado. §5º Para os fins do disposto no art. 76 da Lei nº 9.099, de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena prevista no art. 28 dessa Lei, a ser especificada na proposta.”

3. Alteração no procedimento policial – A novidade neste procedimento está na “vedação da detenção do agente” (§3º) que se justifica pela mudança do paradigma: pela adoção da pena-tratamento e proibição da pena-castigo. A vedação da prisão em flagrante (§2º) já existia desde 2001. Agora, o usuário de drogas flagrado sequer pode ser levado detido (conduzido) para a delegacia de polícia, porque passou a ser um problema de saúde pública e não de polícia.

Pela lei anterior, o usuário era levado detido (conduzido) à delegacia pela autoridade policial que o tivesse flagrado. Lá, a autoridade de polícia judiciária lavrava o termo circunstanciado, requisitava as perícias necessárias e, imediatamente, o encaminhava ao juizado especial criminal. Agora, pela nova Lei, a autoridade policial imediatamente encaminha o usuário flagrado para o juizado (§2º), sem conduzi-lo à delegacia.

4. Encaminhamento imediato ao juizado pela polícia – Vedada a detenção, o encaminhamento imediato ao juizado não pode ocorrer pela condução coercitiva. O usuário flagrado não pode ser levado detido – algemado na viatura – para o juizado. Um projeto terapêutico individualizado não pode se iniciar dessa maneira, sob pena de fracasso. Para o sucesso do tratamento, é fundamental o reconhecimento do uso indevido de drogas como fator de interferência na qualidade de vida do indivíduo e na sua relação com a comunidade à qual pertence (art. 19, inc. I). Esta conscientização dos males das drogas não se faz pela força física, mas pela persuasão que necessita da concordância do usuário ou dependente.

Trabalho terapêutico lento que exige paciência e determinação. Por isso, a Lei não exige plantão 24 horas no juizado para receber os usuários flagrados. O comparecimento ao juizado deve ocorrer em data próxima, previamente agendada entre a autoridade policial e o juízo competente. Se houver esse agendamento prévio, a autoridade policial apreende a droga, lavra boletim de ocorrência e intima o usuário para comparecer ao juizado na data marcada, liberando-o imediatamente. Como ocorre, por exemplo, quando a autoridade de trânsito autua um motorista infrator: intima-o da “multa” e o libera imediatamente.

5. Ausência de agendamento prévio – Se ausente a autoridade judicial (§3º), pela ausência de agendamento prévio, o usuário deve assumir o compromisso de comparecer ao juizado quando for intimado. O compromisso de comparecer ao juizado também será firmado no local em que se encontrar (§3º), ou seja, no local em que o usuário foi flagrado, perante a autoridade policial que o flagrou, ficando consignado no boletim de ocorrência o seu compromisso.

6. Vedada a detenção do agente – A novidade no procedimento policial, portanto, não se refere aos poderes dos juízes (STF, ADI 3807), mas à vedação da detenção do usuário flagrado no crime de posse de droga para uso próprio. A autoridade policial e não necessariamente a autoridade de polícia judiciária, no local em que se encontrar (§3º), deverá apreender a droga, lavrar o boletim de ocorrência e nele consignar a intimação do usuário para comparecer ao juizado na data marcada ou colher o compromisso de a ele comparecer.

7. Termo circunstanciado e perícias – Concluído esse procedimento (§4º), a autoridade policial leva a droga apreendida e o boletim de ocorrência para a delegacia de polícia para que seja elaborado o termo circunstanciado – pela autoridade de polícia judiciária –, envio ao Juizado e requisições das perícias necessárias. Ao analisar o BO, pode a autoridade de polícia judiciária concluir pela conveniência de realização de exame de corpo de delito no usuário para apurar eventual abuso de autoridade. Nesta hipótese, o exame de corpo de delito também pode ser requerido pelo próprio usuário à autoridade de polícia judiciária (§4º).

8. Autoridade policial e autoridade de polícia judiciária – A nova Lei diferenciou autoridade policial (art. 48, §3º) da autoridade de polícia judiciária (arts. 32, §2º; 48, §4º; 50, 51, par. único; 52; 60; etc.). Ficando claro que a autoridade policial não é necessariamente o delegado ou a delegada de polícia. Permanecendo, como atribuição da autoridade de polícia judiciária a elaboração do termo circunstanciado e as requisições das perícias necessárias.

9. Conclusão – O procedimento policial nos crimes de posse de droga para uso próprio não autorizou o juiz adotar providências no âmbito do procedimento sumaríssimo e muito menos conferiu a eles poderes inquisitivos (STF, ADI 3807). O texto legal em estudo (art. 48 e parágrafos) tem outro conteúdo, qual seja: o agente que for flagrado na posse de drogas ilícitas para uso próprio não pode ser levado detido (conduzido) para a delegacia de polícia. Esta é a principal novidade da nova Lei em relação ao procedimento policial nos crimes de posse de droga para uso próprio, justificada pela mudança de paradigma em relação ao uso indevido de drogas – que deixou de ser um problema policial para ser uma questão de saúde pública.

 

Como citar o texto:

SILVA JR, Edison Miguel da Silva..Lei 11.343/06: procedimento policial nos crimes de posse de droga para uso próprio. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 211. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/1652/lei-11-34306-procedimento-policial-crimes-posse-droga-uso-proprio. Acesso em 7 jan. 2007.

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