Resenha crítica do artigo Expansão do poder punitivo e violação dos direitos fundamentais de Maria Lúcia Karam, coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais          

          1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS           Com as notícias policiais tomando cada dia mais espaço nos noticiários brasileiros, acirram-se as discussões acerca do sistema punitivo não só entre os agentes do direito, mas em toda a sociedade, ansiosa por uma alternativa viável aos problemas da falta de segurança e do aumento desenfreado da violência. Motivada pela imprensa e por casos de crimes hediondos como o do menino João Hélio, seis anos, morto ao ficar preso ao cinto de segurança e ser arrastado do lado de fora do carro pelos assaltantes do automóvel de sua mãe, a sociedade clama por justiça, entendendo esta como uma punição ferrenha aos criminosos. Na contramão da opinião pública, que anseia por penas mais severas, estão operadores do direito e autores como Maria Lúcia Karam, coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que em seu artigo Expansão do poder punitivo e violação dos direitos fundamentais, objeto deste estudo, defende uma intervenção mínima do Estado. Corroborando com essa corrente, o professor da PUC/RS e ex-procurador de Justiça Cezar Roberto Bitencourt vai mais longe, defendendo a abolição progressiva da pena privativa de liberdade. 

          2. LEI PENAL X CONSTITUIÇÃO FEDERAL           Embalados pela onda de reportagens policiais e pela pressão da imprensa, os legisladores têm se debruçado sobre o ordenamento jurídico penal de forma a promover mudanças localizadas e nada eficientes em artigos do nosso já defasado Código Penal de 1941.  Alterações repressivas e que expandem o poder punitivo do Estado sem, contudo, resolver a problemática da desigualdade econômica e social, onde começa a marginalização. O mais alarmante nisso, é que as penas têm sido feitas justamente para atingir esses marginalizados, frutos de nossa sociedade capitalista, competitiva e individualista, conforme destaca Karam:

 

A seleção dos indivíduos que , processados e condenados, vão ser demonizados e etiquetados como “criminosos” – assim cumprindo o papel do “outro”, do “mau”, do “perigoso”, - necessariamente se faz de forma preferencial entre os mais vulneráveis, entre os desprovidos de poder, entre os marginalizados e excluídos....A punição de um ou outro réu identificado como enriquecido oupoderoso, serve tão somente para legitimar o sistema penal e melhor esconder, sem maiores perdas, seu papel na manutenção e reprodução dos mecanismos de dominação.       

 

          O que se vê é a busca de um controle social através do sistema penal, o que acaba gerando leis penais e processuais penais que afastam direitos fundamentais constitucionais, como o da igualdade, um dos mais atingidos. Não há como falar em princípio da isonomia quando verifica-se que a lei penal é aplicada sem hesitação aos menos favorecidos e que há um certo incômodo em aplicá-la aos indivíduos identificados com o poder. Ou seja, vai para a cadeia não o criminoso, mas o criminoso pobre e, na sua maioria, negro.  A pena de prisão mereceria um capítulo à parte visto que hoje é cumprida de maneira totalmente inconstitucional (desumana, cruel e torturante).           Outras falhas constitucionais da lei penal e do processo penal apontadas por Karam dizem respeito ao desrespeito à privacidade através de meios de investigação invasivos (como escutas telefônicas e câmeras ocultas), ao uso corriqueiro, e não excepcional, do instituto da prisão provisória e limites exacerbados de cominação de penas, com rigor à pena privativa de liberdade, em confronto com princípios da proporcionalidade.           Para a autora, até mesmo os acordos em que o delator recebe benefícios é um meio de ferir a garantia do direito que o acusado tem de não se auto-incriminar. A crítica vai mais longe pois para ela, “o expandido poder punitivo elogia e premia a delação, deseducando e transmitindo valores tão ou mais negativos do que os valores dos apontados “criminosos” (2006).  Discordo, pois o acordo é uma prerrogativa e não uma imposição. Ninguém está tendo um direito ferido, mas sim uma opção de atenuar a pena. Levando-se em conta a pouca estrutura da nossa polícia e as parcas ferramentas investigativas, não há que se abrir mão dessa prerrogativa.            Mas, que o Código Penal não está em sintonia com a Constituição é incontestável. Até mesmo pode-se arriscar dizer que é óbvio, uma vez que a Carta Magna surgiu apenas em 1988 e o CP em 1941, em momentos políticos totalmente diversos. Fauzi Hassan, em sua obra processo Penal à Luz da Constituição, declara que o Código Penal é marcadamente contrário ao texto constitucional em sua essência. A primeira é garantista, enquanto o segundo á autoritário, seguindo o modelo inquisitivo da Idade Média.

          3. FALÊNCIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE           Centrando esforços numa atuação negativa – na de punição da conduta – o Estado esquece do seu papel de prevenção. Na realidade, o sistema penal não realiza efetivamente a proteção dos direitos fundamentais e quando intervém, através de seu poder punitivo, ainda o faz confrontando tais direitos. Paradoxalmente, o Estado pune o infrator usando dos mesmos meios pelos quais o está recriminando, o que é um erro, pois “a construção de um mundo melhor jamais se fará se forem utilizados os mesmos métodos perversos utilizados no mundo que se quer transformar” (KARAM, 2006).           Como se vê, além de o Estado não fazer o seu papel de prevenção, usa meios equivocados de punição e, para piorar, a punição não é eficaz, pois não está intimidando a ocorrência de novos crimes e nem ressocializando o criminoso. O art. 1º da Lei de Execução Penal prevê que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou do internado”. Destaque especial para a pena de prisão, a que mais simboliza a manifestação de poder do Estado, e que na atualidade, longe está de cumprir sua finalidade ressocializadora.

 

A crítica tem sido tão persistente que se pode afirmar, sem exagero, que a prisão está em crise. Essa crise abrange também o objetivo ressocializadorda pena privativa de liberdade, visto que grande parte das críticas e questionamentos que se fazem à prisão referem-se à impossibilidade – absoluta ou relativa – de obter algum efeito positivo sobre o apenado. (BITENCOURT, Cezar Roberto)

 

          Alguns autores defendem que a pena privativa de liberdade não fracassou pois cumpriu com o seu papel de segregar, separar do resto do mundo os delinqüentes. Aí vê-se mais uma vez que o que se pune não são as práticas delituosas, pois se assim fosse, fraudadores iriam para a cadeia. Os delinqüentes em questão são os pobres, os mendigos, os analfabetos, os desempregados.           Mas, nem mesmo a hipócrita função de isolamento dos chamados “marginais” está sendo cumprida visto que, com freqüência, há fugas no nosso sistema. Como esperar então que nossos presídios aprensentem as condições mínimas para ressocializar alguém. Ao contrário, produzem efeitos devastadores na personalidade da pessoa.  

 

Sabe-se, hoje, que a prisão reforça os valores negativos do condenado. O réu tem um código de valores distinto daquele da sociedade. Por isso, o centro de gravidade das reformas situa-se nas sanções, na reação penal. Daí a advertência de Claus Roxin de (...) não ser exagero dizer que a pena privativa de liberdade de curta duração, em vez de prevenir delitos, promove-os. (BITENCOURT, 2007)

 

           Por conta de todas essas injustiças (entre elas a impunidade dos criminosos do colarinho branco) e crise no sistema punitivo, está se ampliando entre os operadores do direito uma corrente que defende que as penas privativas de liberdade limitem-se às penas de longa duração e àqueles condenados efetivamente perigosos e de difícil recuperação. 

 

Propõe-se, assim, aperfeiçoar a pena privativa de liberdade, quando necessária, e substituí-la, quando possível e recomendável. Todas as reformas de nossos dias deixam patente o descrédito na grande esperança depositada na pena de prisão, como forma quase que exclusiva de controle social formalizado. Pouco mais de dois séculos foram suficientes para se constatar sua mais absoluta falência em termos de medidas retributivas e preventivas. (BITENCOURT, 2007)

 

          Não há como negar, e nem é preciso analisar as estatísticas, pois está explícito que os crimes, as contravenções e todas as condutas indesejadas não estão desaparecendo com o rigor da lei penal. Buscar penas mais humanas e não fazer coro àqueles que querem retroceder aos tempos medievais da prisão perpétua e pena de morte aparece como uma  alternativa compatível, pois “somar ao dano do crime a dor da pena, é multiplicar danos” (KARAM, 2006).           4. CONSIDERAÇÕES FINAIS           A sensação generalizada de insegurança e a realidade da violência impõe-nos a repensar o papel da pena e da prisão e a criar mecanismos eficazes de contenção e até mesmo de eliminação da criminalidade. O sistema penitenciário que aí está posto não cumpre há muito tempo a sua verdadeira função, e as respostas dadas atualmente em nada têm contribuído para melhorar a segurança. Pior que isso, têm sim contribuído para estigmatizar ainda mais os já excluídos e para servir de palanque à elite política, que faz as leis para que os outros cumpram.           Porém, pensar de forma isolada em políticas criminais e penitenciárias não vai resolver o problema da criminalidade e da marginalização. A mudança no sistema punitivo brasileiro deve vir acompanhada de uma mudança social. Não podemos pensar apenas em punir as condutas criminosas, mas também nos preocupar em não deixá-las acontecer. Não basta encarcerar os “criminosos”, mas criar condições para que os potenciais criminosos, hoje meninos nas favelas ou nas ruas das grandes cidades, possam ter oportunidades de seguir outro caminho.             A mudança social começa por cada um de nós, em não nos deixarmos envolver pela deformada opinião pública, massa de manobra da elite dominante. Em não aplaudirmos discursos pobres de promessas de leis mais severas. Vamos cobrar de nossos políticos que o Estado expanda sua atuação nas políticas sociais. O fim da criminalidade, ou, para não soar como utopia, a sua contenção, passa necessariamente pela superação dos desequilíbrios econômico-sociais.

REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Pena de Prisão Perpétua. Disponível na internet: http://www.cjf.gov.br/revista/PainelIV-2.htm. Acesso em 10/06/2007. GOMES, Luiz Flávio. FUNÇÕES DA PENA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO.  (Publicada no Juris Síntese nº 59 - MAI/JUN de 2006) KARAM, Maria Lúcia. Expansão do poder punitivo e violação dos direitos fundamentais. Disponível na internet: http://www.mundojuridico.adv.br

PRAZERES, José de Ribamar Sanches. O Direito Penal Simbólico Brasileiro. Disponível na internet: http://www.pgj.ma.gov.br/simbolico.html

 

Como citar o texto:

FEIJÓ, Isabel Cristina.A falência do sistema punitivo brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 240. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/1813/a-falencia-sistema-punitivo-brasileiro. Acesso em 2 set. 2007.

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