1 – Histórico da violência contra a mulher

 

A origem da violência surge com o homem, sem generalizar que todo homem seria violento desde o início, mas no sentido de que a falta da organização do homem em sociedade permitiu a prevalência da “lei do mais forte”, isto é, onde a força física era o quesito principal para alcançar um status ou mesmo garantir a própria sobrevivência.

Com a organização da sociedade primitiva, com pequenos agrupamentos dos homens da caverna, os mais fortes se destacaram e houve surgimento da submissão dos mais fracos, criando, assim, uma hierarquia baseada na força física que permitia angariar mais recursos (por exemplo, a caça). Nesse diapasão entram as mulheres, que, por possuírem estrutura mais frágil, acabaram tornando-se importantes apenas no tocante à reprodução.

No passar dos séculos a sociedade se desenvolveu já com base em uma hierarquia e os valores foram se modificando com o surgimento da economia, desde a época do escambo ao surgimento da moeda, nos diferentes tipos de Governo, onde o mais forte passou a ser aquele a princípio com mais terras e propriedades e com o surgimento da moeda e outras riquezas, aqueles que as possuíssem em maior quantidade.

O homem sempre figurou no pólo mais forte, submetendo as mulheres, no passado, à obrigação de se casarem e procriarem com fins de “produzirem” maior mão-de-obra ou herdeiros, dependendo da classe social a que pertencessem.

No Brasil, há uma construção simbólica dos gêneros nascidas do conceito da “honra”, onde o homem deveria ter controle sobre as mulheres e também disputar com outros homens.

Nas Ordenações Filipinas, a mulher tem a obrigação de obedecer ao companheiro e, caso não o fizesse, deveria ser corrigida e castigada. No Seminário de Capacitação dispõe o seguinte sobre o tema:

A idéia da correção do marido sobre a mulher está presente nos manuais dos confessores da época colonial como é o caso do Manual de Corella, citado por Almeida (1993): “...não é de seu ofício corrigir o marido, como o é , dele, corrigi-la.” (p.87).Se o Código Criminal Posterior às Ordenações Filipinas revogou a legalidade do castigo (físico), o dever de obediência é mantido. Segundo Lafayette (2000): “Em virtude do poder pátrio, (até o Código Civil de 1916) compete ao marido o direito de exigir obediência da mulher, a qual é obrigada a moldar suas ações pela vontade dele em tudo que for honesto e justo”. (ver Machado, 2004).

Com o Estatuto da Mulher Casada em 1962, é retirada da mulher a situação de parcialmente “incapaz”, entretanto, havia necessidade de autorização do marido para que ela pudesse trabalhar e também deveria obedecê-lo na escolha do local de moradia.

Embora sejam retrógrados, esses valores continuam atuais, provocando dilemas e tensões nas formas de socialização do homem e da mulher e também nos modos de interpretações jurídicas.

Apesar das inúmeras repressões às mulheres ao longo dos séculos, uma vez que as mulheres só tiveram espaço para o exercício de atividades econômicas e políticas significativas no pós-guerra, quando havia um déficit de homens nos países envolvidos nas batalhas, as denúncias de violência doméstica surgiram apenas a partir de 1978, no Brasil.

Nesse contexto, as denúncias começaram a ser contabilizadas apenas no ano seguinte à promulgação da Lei do Divórcio, quando a violência foi positivada como um dos motivos ensejadores do desligamento matrimonial e as mulheres passaram a denunciar o tipo de comportamento agressivo, porém, à época, havia a tese da legítima defesa da honra, fazendo que muitos desses crimes envolvendo violência contra a mulher restassem impunes.

Foi apenas em 1985 que surgiu a primeira Delegacia da Mulher, em São Paulo, para fornecer o tratamento diferenciado às vítimas dos crimes oriundos da violência doméstica. Entretanto, não havia disposição legal que tratasse o tema de maneira mais específica, que surgiu somente com a Constituição Federal de 1988, no § 8º do artigo 226, onde se admitiu a existência da violência doméstica e propôs mecanismos para erradicá-la.

 

2 – A História de Maria da Penha

O Seminário de Capacitação observa o seguinte:

“A humanidade poderia ser vista como um pássaro, onde uma asa é o homem e a outra asa, a mulher. É o que ensina o sábio persa ´Abdu´l-Bahá (1844-1921). Pois bem, um pássaro não pode voar sem o equilíbrio das duas. Lamentavelmente, o mundo parece voar mais com a asa masculina, e isso reflete o desequilíbrio existente entre os sexos hoje em dia, o que resulta nos elevados índices de violência contra as mulheres. Por outro lado, as vítimas dessas violações não denunciam os agressores. Os principais motivos de tal omissão: a vergonha de que alguém descubra os maus-tratos; o medo de represálias de seu agressor; e o medo de perder o contato com os filhos. No entanto, denunciar quem viola os direitos humanos é, antes de tudo, uma questão de direito.”

E foi por esta questão de direito e injustiça que lutou a dona desta história, que revolucionou a legislação brasileira em busca da manutenção da equidade e da proteção feminina.

Maria da Penha Maia Fernandes, uma farmacêutica aposentada do estado do Ceará, após sofrer de diversas agressões do ex-marido, o economista colombiano naturalizado brasileiro Marco Antônio Heredia Viveros, resolve se separar e denunciá-lo à polícia.

Em maio 1983, aos 38 anos de idade, quando trabalhava no Instituto de Previdência do Ceará e cuidava de suas três filhas – à época entre 6 e 2 anos de idade – foi alvejada por tiros proferidos pelo então marido enquanto dormia. Heredia, para acobertar a tentativa de homicídio, simulou um assalto em sua residência.

Maria da Penha se submeteu a diversas cirurgias e, em decorrência do tiro, sofre de paraplegia irreversível. Após retornar para sua residência, foi vítima de mais uma tentativa de homicídio. Enquanto tomava banho o ex-marido tentou eletrocutá-la, além de mantê-la em cárcere em sua própria casa.

Foi nesse momento, então, que com ajuda dos familiares, conseguiu autorização judicial para o abandono do lar conjugal em companhia das filhas menores no mês de outubro daquele mesmo ano.

No início do ano seguinte, Maria da Penha dá seu primeiro depoimento à polícia, seguido de apresentação penal pelo Ministério Público no mês de setembro. Será apenas em outubro de 1986 que a juíza aceitará a denuncia e em maio de 1991 Heredia vai a Júri Popular, sendo condenado a quinze anos de prisão.

A defesa do agressor impetrou recursos, o Tribunal de Justiça do Ceará rejeita um dos recursos em abril de 1995 e solicita novo julgamento. Em maio, o Tribunal de Alçada Criminal do Ceará anula o primeiro julgamento argumentando que as perguntas aos jurados foram mal-formuladas.

Em março de 1996 ocorre novo julgamento, onde foi condenado por dez anos e seis meses de prisão. Ocasião na qual a defesa impetra novamente recurso, mesmo sendo a medida intempestiva. Ainda assim, o Tribunal de Alçada acolheu o recurso que alegava que o réu fora julgado a despeito das provas dos autos, anulando o segundo julgamento.

A impunidade de seu malfeitor fez com que a vítima procurasse justiça em outros órgãos de competência legítima e, em setembro de 1997, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) recebe petição sobre o caso.

Em agosto de 1999, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher pedem à OEA que aceite as denúncias contra o Brasil e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA adverte o governo brasileiro.

No mês de outubro de 2000, a Comissão da OEA aprova o relatório sobre o caso e não houve qualquer manifestação do governo brasileiro. Em março do ano seguinte, a OEA reencaminha o relatório ao Brasil dando prazo final de 30 dias para pronunciamento.

Em abril, as denúncias são aceitas e o relatório passa a ser público, exigindo-se providências por parte do governo brasileiro. No mês de março do ano subseqüente, há nova audiência sobre o caso na OEA e o governo finalmente apresenta considerações, comprometendo-se a cumprir as recomendações da Comissão.

Foi apenas após 15 dias da segunda reunião da OEA, em setembro de 2002 que Marco Antônio Heredia Viveros finalmente é preso.

O Seminário de Capacitação dispõe relatos do ocorrido, inclusive da própria Maria da Penha, como vemos a seguir:

“Para mim foi muitíssimo importante denunciar a agressão, porque ficou registrado internacionalmente, através do meu caso, que eram inúmeras as vítimas do machismo e da falta de compromisso do Estado para acabar com a impunidade”, afirma Maria da Penha. “Me senti recompensada por todos os momentos nos quais, mesmo morrendo de vergonha, expunha minha indignação e pedia justiça para meu caso não ser esquecido”, acrescenta.

Com 60 anos de idade, completados em fevereiro de 2005, Maria da Penha é atualmente uma das coordenadoras da Associação dos Parentes e Amigos de Vítimas de Violência (Apavv), com sede em Fortaleza. Passar da condição de vítima para a de protagonista no combate à violência foi para Maria da Penha, ao longo de 23 anos, “uma luta muito difícil”. “Em 1994, publiquei o livro Sobrevivi... Posso Contar, que considero a minha carta de alforria, pois foi através dele que o meu caso passou a ser algo concreto, palpável, em relação aos casos de violência doméstica”, conta.

 

3 – Histórico da Lei Maria da Penha

 

A partir do ano de 1999, foram apresentados diversos projetos de lei versando sobre a violência doméstica sobre diversos aspectos como, por exemplo: definição de institutos básicos (definição de violência familiar e violência psicológica, por exemplo), tipificação das condutas como crime, afastamento cautelar do agressor, etc.

O primeiro a ser apresentado foi o Projeto Lei nº 905/1999, que tratou principalmente de definir institutos básicos, como os tipos de violência (psicológica, familiar, etc.) e tipificando diversas condutas como crime. Além disso, trouxe alguns aspectos processuais, como a representação pela vítima para se proceder a ação penal. Entretanto, este projeto foi considerado inconstitucional por ferir o princípio do devido processo legal.

O Projeto seguinte, de número 1.439/1999 foi apresentado como anexo ao anterior, praticamente idêntico, apenas tentando suprir a inconstitucionalidade apontada.

No ano seguinte, foi apresentado o Projeto Lei nº 2.372/2000, que tratava do afastamento cautelar do agressor do lar conjugal. Porém, foi integralmente vetado pelo Presidente da República. Já o Projeto de Lei nº 5.172/2001 visava acrescentar um artigo à Lei do Divórcio, tratando do abandono justificado do lar conjugal.

Ainda no ano de 2000, foi apresentado o Projeto de nº 3.901/2000, que foi convertido na Lei nº 10.455/2002, que levou a violência doméstica à competência dos Juizados Especiais Criminais. Com esse projeto houve a substituição da exceção à regra da não imposição da prisão em flagrante e fiança pela possibilidade de determinação judicial cautelar de afastamento do lar conjugal nos casos de violência doméstica.

Em 2002, houve um Projeto Lei que visava alterar o artigo 129 do Código Penal, aplicando uma pena mais severa caso a lesão corporal fosse praticada por cônjuge ou companheiro; este foi o Projeto Lei nº 6.760/2002.

Foi apenas no ano de 2004 que o Projeto Lei nº /2004, que seria convertido na Lei nº 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha” em homenagem à luta desta mulher, inconformada com a impunidade de seu ex-marido.

O Seminário de Capacitação aponta que:

“Até 2004, não havia previsão do crime de violência doméstica na legislação do país. O Código Penal, de 1940, em seu artigo 61, considerava tão-somente como circunstâncias agravantes da pena o fato de o crime ter sido cometido contra “ascendente, descendente, irmãos ou cônjuges (inciso II, letra e); com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade (inciso II, letra f) e contra criança, velho, enfermo ou mulher grávida” (inciso II, letra h). Na parte referente aos crimes contra os costumes78, onde estão tipificados os delitos sexuais, incluindo o estupro (artigo 213), o Código determinava, no artigo 226, inciso II, que a pena é aumentada de quarta parte “se o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro tipo tem autoridade sobre ela”.”

Referido projeto foi apresentado pelo Grupo de Trabalho Interministerial, que por sua vez fora criado pelo Decreto nº 5.030/2004 do Ministério Público do Distrito Federal, que Institui o Grupo de Trabalho Interministerial para elaborar proposta de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica contra a mulher, e dá outras providências.

O Decreto, além de instituir referido grupo, determinou sua composição da seguinte forma:

“Art. 2º O Grupo de Trabalho Interministerial será composto por:

I - um representante de cada órgão a seguir indicado:

a) Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, que o coordenará;

b) Casa Civil da Presidência da República;

c) Advocacia-Geral da União;

d) Ministério da Saúde;

e) Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República;

f) Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; e

II - dois representantes do Ministério da Justiça, sendo um da Secretaria Nacional de Segurança Pública.

1º Os integrantes do Grupo de Trabalho serão indicados pelos titulares dos órgãos representados e designados em portaria da Secretária Especial de Políticas para as Mulheres.

2º O Coordenador do Grupo de Trabalho poderá convidar representantes de outros órgãos, entidades públicas ou de organizações da sociedade civil, para participar de suas reuniões e de discussões por ele organizadas.”

Antes de ser sancionado, referido Projeto passou por argumentações com Organizações Não-Governamentais de proteção à mulher em conjunto com os Órgãos Públicos. Além de ampla discussão, o Projeto também tramitou por três comissões, a saber: a Comissão de Seguridade Social e Família, a Comissão de Finanças e Tributação, e pela Comissão de Justiça e Cidadania.

No início do ano de 2006, as entidades de defesa dos direitos das mulheres tentaram fazer com que a Lei nº 11.340/2006 fosse pautada para votação logo para o início do ano para que fosse aprovada de pronto pelas duas casas legislativas e sancionada pelo Presidente no dia 8 de maio, dia internacional da mulher. Porém, não tiveram sucesso e o Presidente sancionou a Lei apenas em 7 de agosto de 2006.

Bibliografia:

1. ARAÚJO, L. F. (2003) Violência contra a mulher: a ineficácia da justiça penal consensuada. Campinas – SP: CS; São Paulo: Lex.

2. Gonçalves, Hebe Signorini; Brandão, Eduardo Ponte, coordenadores. Psicologia Jurídica no Brasil. Editora Nau.

3. Parodi, Ana Cecília; Gama, Ricardo Rodrigues. Lei Maria da Penha – Comentários À Lei nº 11.340/2006 – 1ª ed. Campinas: Russell Editores, 2009.

4. Souza, Sérgio Ricardo de. Comentários à Lei de Combate à Violência Doméstica Contra a Mulher – 2ª Ed. Curitiba: Juruá, 2009.

5. Teles, Maria Amélia de Almeida; Melo, Mônica de. O que é violência contra a mulher. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2003.

6. Vários autores. Seminário de Capacitação para juízes, procuradores, promotores, advogados e delegados no Brasil, 2006 Fórum Nacional de Educação em Direitos Humanos - Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres midia.pgr.mpf.gov.br/.../diadamulher/.../cartilha_violencia_domestica.pdf – (acessado em 25/02/10 às 10:30)

 

Data de elaboração: julho/2010

 

Como citar o texto:

FONSECA, Paula Schiavini da.Histórico da Lei nº 11.340/2006. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/2172/historico-lei-n-11-3402006. Acesso em 19 fev. 2011.

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