A Lei 12.403/11: novos e velhos problemas

 

Juliana Jobim do Amaral?

Resumo: Como é peculiar em alterações legislativas, a Lei 12.403/11, que recentemente entrou em vigor, modificou substancialmente o Título IX do Livro I do Código de Processo Penal, trazendo modificações importantes, algumas imprecisões, não sem antes, em pontos nodais, ter mantido algumas situações pouco condizentes com o texto constitucional. Pontualmente, para além de ressuscitar o já tão discutido – senão em desuso – instituto da fiança, ampliou-se, em particular, o leque de alternativas à proteção da regular tramitação do processo penal, com a instituição de diversas outras modalidades de medidas cautelares de natureza pessoal (artigo 319) potencializando nova gama de problemas a serem enfrentados brevemente pelo ator jurídico.

Palavras-chave: Lei 12.403/11 – Alterações – Código de Processo Penal – Medidas Cautelares.

Law 12.403/11: new and old problems

Abstract: As inherent in legislative amendments, Law 12.403/11, which recently came into force, substantially changed the Title IX of Book I of the Criminal Procedure Code, bringing about substantial changes, some inaccuracies, but not before, in nodal points, have maintained some situations not consistent with the constitutional text. Occasionally, in addition to resurrect the already much-discussed - but in disuse - Office of surety, widened, in particular, the range of alternatives to protect the regular conduct of criminal proceedings, with the establishment of several other types of precautionary measures personal nature (Article 319) leveraging new range of problems to be faced soon by the legal actor.

Keywords: Law 12.403/11 - Changes - Code of Criminal Procedure - Provisional Measures

 

Introdução

Após mais de uma década de tramitação no Congresso Nacional, foi aprovado o Projeto de Lei 4.208-C/01, transformado agora na Lei 12.403/11. O texto, que entrará em vigor no dia 04 do mês de julho do corrente ano, introduziu um novo sistema de medidas cautelares pessoais no processo penal brasileiro, estruturando, em um mesmo arcabouço, prisão preventiva e diversas outras medidas alternativas ao cárcere (art. 319 do CPP).

Em sua parte inicial, encontramos, ainda que de forma tímida, dispositivos que vão ao encontro da Constituição da República; contudo, já na sua parte final, especialmente no capítulo da prisão preventiva, propriamente dito, ocorre exatamente o inverso, conforme passo a seguir explanar.

 

1- O “norte” cautelar: o princípio da proporcionalidade

De início, o art. 282 do CPP traz para dentro do Código de Processo Penal, dois subprincípios integradores do princípio da proporcionalidade (CANOTILHO, 2003, p.266) servindo como elementos balizadores para aplicação das medidas cautelares, quais sejam, o da necessidade e da adequação. Não sem muita demora, houve um acerto terminológico, trocando-se a expressão “conveniência” por “necessidade”. É o que minimamente se espera num Estado que se diga Democrático de Direito não haver espaço para pensar em prisão por mera conveniência, devendo-se tão somente recorrer à privação de liberdade quando houver necessidade com o desiderato de acautelamento da regularidade da instrução criminal.

Em matéria penal, a exigência de proporcionalidade deve ser auferida mediante um juízo de ponderação entre a carga “coativa” da pena e o fim perseguido pela cominação penal. Com efeito, pelo “princípio da proporcionalidade na relação entre crime e pena deve existir um equilíbrio – abstrato (legislador) e concreto (judicial) – entre a gravidade de injusto penal e a pena aplicada” (PRADO, 2002, p. 122). Ademais, de acordo com Hassemer, o princípio da proporcionalidade não é outra coisa senão “uma concordância material entre ação e reação, causa e conseqüência jurídico-penal, constituindo parte do postulado de Justiça: ninguém pode ser incomodado ou lesionado em seus direitos com medidas jurídicas desproporcionais” (HASSEMER, 1984, p. 279).

Relembrando, ainda que adequação “informa que a medida cautelar deve ser apta aos seus motivos e fins” (LOPES, Volume II, 2010, p. 174); já a necessidade “envolve a verificação da existência de meios que sejam alternativos àquele inicialmente escolhido pelo Poder Legislativo ou Poder Executivo, e que possam promover igualmente o fim sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais afetados” (AVILA, 2010, p.172). Desse modo, manifesta proporcionalidade há em relação aos crimes culposos, para os quais permanece vedada a prisão preventiva (art. 313, par. Único, do CPP). Nesse sentido, igualmente não há razão que sustente a imposição de tal restrição da liberdade às infrações de menor potencial ofensivo, seja porque no âmbito dos Juizados Especiais Criminais o processo é orientado pelo princípio da informalidade, pela busca constante pela pacificação do conflito, seja pela possibilidade que há de suspensão condicional do processo, o que, por si só, já denota uma ausência de necessidade de preservação da efetividade do processo.

Com isso, denota-se uma ordem “preferencial” quando da decretação de medidas cautelares, reservando a prisão preventiva para as circunstâncias indicadoras de maior risco à efetividade do processo ou de reiteração criminosa.

2- Análise tópica: flagrante, medidas cautelares e outros imbróglios

No que pertine aos aspectos procedimentais das medidas cautelares, com base na nova legislação, alguns pontos merecem um cuidado especial. De acordo com o disposto no §2º do art. 282 do CPP, as medidas cautelares podem ser pleiteadas tanto na fase de investigação quanto depois de instalada a relação processual penal. Com isso, como regra, por não dependerem de anterior prisão em flagrante para a sua imposição, são consideras autônomas, em que pese possam também ser aplicadas como substitutivas dessa, quando não for cabível a prisão preventiva (conforme dispõe o art. 321 do CPP: Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código). Ainda, há possibilidade de aplicação de forma cumulada, devendo obedecer, para tanto, aos princípios da necessidade e adequação, bem como à natureza ou à modalidade das medidas a serem aplicadas, sob o prisma da compatibilidade.

Outro aspecto a ser salientado, importante para as medidas alternativas outras que não a preventiva, foi a criação do contraditório (art. 282 §3º do CPP) quando do recebimento, pelo magistrado, de pedido de medida cautelar, ainda que saibamos que, na prática, nada nos faz crer que tal contraditório não será uma exceção, devido à “urgência” e ao “perigo de ineficácia da medida” ? pressupostos de toda e qualquer medida que possua natureza cautelar, que não tardarão em aparecer como razões para afastá-lo.

Dispôs de forma louvável a legislação ao prever expressamente ser a prisão preventiva ultima ratio no que se refere às prisões cautelares (§§ 4º e 6º do art. 282 do CPP), forçando o juiz, no momento da escolha, a fundamentar o motivo da opção por determinada medida cautelar ao invés de outra. Assim, a decretação da prisão preventiva, que antes já deveria ser excepcional, passará a ser, em tese, ainda subsidiária, sendo apenas cabível quando não possível substituir a prisão por uma das medidas cautelares previstas no art. 319.

Como assevera Aury Lopes Junior (LOPES. Volume II, 2010, p. 132):

há que se dar um basta à banalização das prisões preventivas, reservadas seu uso aos casos em que ela é efetivamente cautelar e faz-se estritamente necessária. A prisão preventiva e todas as demais cautelares inserem-se, perfeitamente, na lógica do sofrimento, bem tratada por SCHIETTI, segundo a qual a prisão cautelar é a possibilidade de impor imediatamente um mal, uma punição, exercer a violência contra quem praticou um delito, ou seja, é a reação violenta àquele que cometeu uma violência. É nessa linha, importante que a pessoa sofra na própria carne pelo mal que fez.

Nesse diapasão, o art. 283, para além de reproduzir o que dispõe o art. 5º LXI da CRFB, no que tange à obrigatoriedade de fundamentação quando da imposição de medida cautelar, parece ter sepultado definitivamente a possibilidade de execução provisória da condenação, conforme se depreende do caput do respectivo texto legal, a exigir, ou ordem escrita e fundamentada para imposição da prisão, ou sentença condenatória transitada em julgado.

Nesse sentido, já sustentavam Wunderlich e Carvalho: “o entendimento que funda a execução penal antecipada, advindo da leitura isolada do artigo 27, §2º da Lei nº 8.038/90, densifica o sistema inquisitivo projetado no velho CPP”. E ainda acrescentam: “a experiência forense revelou que a pena antecipada acaba por ser definitiva, pois em muitas oportunidades o recorrente cumpre sua integralidade (provisoriamente), ou até é indultado, sem contudo, haver o julgamento de seus recursos aos Tribunais Superiores”. (WUNDERLICH; CARVALHO, 2007, p. 451)

A grande novidade, há que se dizer, está na extinção da até então acalentada discussão entre juristas sobre o caráter pré-cautelar da prisão em flagrante.

Assim (LOPES. Volume II, 2010, p. 72):

A prisão em flagrante é uma medida pré-cautelar, de natureza pessoal, cuja precariedade vem marcada pela possibilidade de ser adotada por particulares ou autoridade policial, e que somente está justificada pela brevidade de sua duração e o imperioso dever de análise judicial em até 24 horas, onde cumprirá ao juiz analisar sua legalidade e decidir sobre a manutenção da prisão (agora como preventiva) ou não.

Agora, ao que se pode inferir do art. 310 do CPP, o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, não poderá mais se limitar a analisá-lo nos seus aspectos meramente formais. Deverá, sim, relaxar a prisão, conceder liberdade provisória ou convertê-la em preventiva (uma vez examinado o não cabimento das demais medidas cautelares alternativas do art. 319 do CPP), sempre de maneira fundamentada, exterminando, por derradeiro, os argumentos de ser esse tipo de encarceramento espécie de prisão cautelar, sob o fundamento de que o flagrante prende “por si só”, como ressoa ainda em alguma doutrina. Esclarece-se, suma, que sequer se trata de manter a prisão em flagrante, mas, se for o caso, de sua conversão “em” ou “na” decretação da prisão preventiva (art. 310 II do CPP). Com isso, “sepultam-se, de vez, as absolutamente ilegais prisões em flagrantes que perduravam por vários dias, muitas vezes até a conclusão do inquérito policial (!) sem a necessária decretação e fundamentação da prisão preventiva”. (LOPES. Volume II, 2010, p. 178)

Destarte, importante ressalva, conforme alude o par. 1º do art. 283 do CPP, as medidas alternativas à prisão preventiva apenas podem ser aplicadas às infrações as quais for cominada pena privativa de liberdade, não alcançando aquelas em que se prevê pena restritiva de direito.

A inovação não parou por aí. Pelo art. 306 do CPP, acerca da comunicação da prisão, até então, quando da sua realização, a mesma deveria ser comunicada ao juiz competente, família ou pessoa indicada pelo preso. Nesse rol, a lei incluiu o Ministério Público. Tal inclusão guarda relação ao fato de não poder o juiz decretar de ofício medida cautelar ao menos na fase pré-processual – antes de se tornar “presidente do processo” diante do recebimento da denúncia –, sob pena de se converter em um juiz-acusador, rompendo com a sua imparcialidade com relação ao objeto do processo (LOPES, Volume I, 2010, p.135) – tencionando devidamente o argumento, tal não deveria se dar nem quando na dita fase propriamente processual, também sob o preço de se romper com o sistema acusatório resguardado constitucionalmente (PRADO, 2006).

Quanto à fiança – ainda que em nada se tenha discutido sobre o mérito de seu caráter discriminatório no tocante à possibilidade ou não de cumprimento pela maioria da clientela do sistema penal – essa, agora, poderá ser arbitrada pela autoridade policial, não mais levando em consideração o tipo de pena (prisão simples ou detenção), mas tendo como parâmetro o máximo da pena privativa de liberdade cominada (não superior a quatro anos).

Em contrapartida, no art. 311 do CPP, há a consagração do poder de agir de ofício do juiz, afrontando o princípio do sistema acusatório, basilar de um Estado Democrático de Direito, não resistindo a uma filtragem constitucional. É cediço que tal espécie de sistema, na esteira do princípio do devido processo legal e também da titularidade da ação penal pública pelo Ministério Público (art. 129, I, da CRFB), impõe uma postura de alheamento do juiz, sob pena de não assegurar a sua própria imparcialidade.

Assim (LOPES. Volume II, 2010, p. 102):

a imparcialidade do juiz fica evidentemente comprometida quando estamos diante de um juiz-instrutor (poderes investigatórios) ou, pior, quando ele assume uma postura inquisitória decretando – de ofício – a prisão preventiva. É um contraste que se estabelece entre a posição totalmente ativa e atuante do inquisidor, contrastando com a inércia que caracteriza o julgador. Um é sinônimo de atividade e outro de inércia.

 

No que diz respeito à prisão preventiva, no sistema anterior à Lei 12.403/11, essa somente poderia ser decretada se atendidas as circunstâncias fáticas do art. 312, cumuladas com os casos expressamente mencionados no art. 313 do diploma processual penal. Hoje, com o ingresso de diversas medidas cautelares alternativas ao cárcere, nos deparamos com nova fundamentação, bem como com inéditas situações de cabimento da prisão preventiva, independentemente das hipóteses arroladas no art. 313 do CPP.

Isso porque também será possível a decretação da preventiva, não somente quando presente as circunstâncias de fato do art. 312 do CPP, mas quando e sempre que for necessário para garantir a execução de outra medida cautelar, diversa da prisão (§4º do art. 282 do CPP). Portanto, a Lei 12.403/11 cria um sistema alternativo, de tal modo que a prisão preventiva seja, em regra, como já sustentado, a última providência cautelar. O que não impede, todavia, que para sua decretação seja preciso necessariamente a anterior aplicação de alguma outra medida acautelatória.

Diante do exposto, haverá três situações em que se poderá ser imposta a previsão preventiva: a) com base do art. 311 do CPP, a qualquer momento na fase de investigação ou do processo, de modo autônomo e independente; b) de acordo com o disposto no art. 310 II, do CPP, como conversão da prisão em flagrante, quando insuficientes ou inadequadas outras medidas cautelares; e c) conforme art. 282 §4º e art. 312 par. único, ambos do CPP, em substituição à medida cautelar eventualmente descumprida. Impende ressaltar que nas duas primeiras hipóteses, a decretação da prisão preventiva dependerá da presença das hipóteses fáticas e normativas do art. 312 do CPP, bem como daquelas do art. 313 do mesmo diploma legal, enquanto na última não se exigirá a presença destas últimas.

Contudo, portou-se o legislador de forma precária quando, para além de incluir mais uma hipótese de prisão preventiva, qual seja, em caso de descumprimento de medida cautelar anteriormente imposta (par. único do art. 312 do CPP), manteve integralmente intacto o caput do referido artigo, com suas expressões ambíguas quando não irrefutáveis, concretizando uma verdadeira vitória do decisionismo judicial (FERRAJOLI, 1995, p. 541) e, por certo, do famigerado direito penal de autor (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2003, p. 131). Ademais, no art. 311, há a consagração do juiz-ator e seu poder de agir de ofício, afrontando vez mais o já tão vilipendiado princípio acusatório basilar de nosso Estado Democrático de Direito.

As prisões preventivas por conveniência da instrução criminal e também para assegurar a aplicação da lei penal são evidentemente instrumentais (cautelares), intimamente relacionadas à proteção do processo penal; contudo, a manutenção das expressões garantia da ordem pública e da ordem econômica denota um verdadeiro e lamentável ranço autoritário que há tempos continua a assombrar a nossa legislação.

Nem preciso seria renovar a constatação de que a prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública, ao revés de proteger o processo penal, enquanto instrumento de aplicação da lei penal, resguarda uma suposta “comunidade”, coletivamente considerada, sob o pretexto de que ela seria ferrenhamente atingida pelo não encarceramento dos supostos autores do delito, o que infere num nefasto e ilegítimo controle da vida pública social (SANGUINÉ, 2003, PP. 113-119). Adiante, tal modalidade de prisão, ao menos, viola o princípio constitucional da presunção da inocência, já que, quer se pretenda sustentar a prisão preventiva para a garantia da ordem pública em razão do risco de novas infrações penais, quer em razão da intranqüilidade originada pelo crime, estar-se-ia partindo de uma antecipação de culpabilidade (MORAES, 2010, PP. 382-398). Ademais, o art. 312 do CPP, quanto à prisão preventiva, apenas apõe a conveniência da “instrução criminal”, já o art. 282 I, do CPP, refere-se à instrução e também à investigação, com certeza ampliando o arco de incidência das medidas cautelares.

Com relação à liberdade provisória com ou sem fiança, tratada a partir dos artigos 321 e seguintes do CPP, impôs-se uma completa revisão do sistema. Antes mesmo de referir as alterações, frise-se que o termo “liberdade provisória” equivocadamente fora mantido na nova legislação, reafirmando-se seu inadequado manejo frente ao texto constitucional (art. 5º LXVI da CRFB). Será por força exatamente dos mesmos direitos e garantias fundamentais, esculpidos em especial no artigo 5º, que não se deverá deixar incólume a infeliz expressão utilizada pelo texto, em descompasso com os demais valores republicanos. Não será porque, ao que parece, o constituinte de 88 tenha se equivocado e tenha manejado de forma pouco rigorosa com a expressão liberdade provisória, que hoje devêssemos permanecer atrelados a isto. O que pode ser provisório, pois, é, e sempre deverá ser, a prisão, assim como todas as demais medidas cautelares que impliquem restrições a direitos fundamentais. Até mesmo, a rigor, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, a restrição da liberdade eventualmente imposta não será perpétua, sendo sempre provisória (Cf. KARAM, 2009).

É de se notar que a própria lei nova autoriza a concessão de liberdade provisória para todo e qualquer crime quando ausentes as razões que permitiriam a decretação da prisão preventiva (art. 321 do CPP), estando aí vedada a exigência de fiança justamente para os crimes ditos mais graves e de maior reprovação social (arts. 323 e 324, ambos do CPP). Assim, por um lado, possibilita a liberdade com a imposição de uma ou de várias cautelares, desde que não seja a fiança. E, para os demais crimes, tidos por afiançáveis por não se enquadrarem no rol dos artigos 323 e 324, ambos do CPP, a liberdade poderá ser obtida mediante a imposição de uma ou de várias cautelares, incluindo a fiança.

Com isso, visível o descompasso da lei, beirando a contradição: de um lado, evita-se a fiança para não onerar excessivamente autores de infrações menos graves, para os quais sequer prevê pena privativa de liberdade; de outro, proíbe-se a fiança para as mais reprováveis e graves infrações penais. Logo, se mesmo aos crimes rotulados como inafiançáveis, ao acusado pode ser concedida liberdade provisória sem fiança, tal instituto, a menos para o juiz, tornou-se completamente inócuo, quando não esdrúxulo.

De todo modo, o legislador perdeu uma ótima oportunidade para concertar os desvios produzidos pela previsão da inafiançabilidade na Constituição da República. Contudo, como assim não o fez, alguns comentários a respeito da liberdade provisória com fiança merecem ser explanados.

Em tese, a simples imposição de fiança, isolada ou cumulativamente com outra medida cautelar, seja na fase de investigação, seja na do processo, poderia ser entendida como uma forma de “liberdade provisória com fiança”. Da mesma forma, a cominação de medida cautelar desacompanhada desse instituto, levaria à hipótese de “liberdade provisória sem fiança”. Entretanto, isso não é verdade. Por isso, há que se indicar de forma mais adequada que a expressão “liberdade provisória”, sem entramos novamente na discussão a respeito de sua impropriedade terminológica, deva ser reservada para as diversas formas de restituição da liberdade, após uma prisão em flagrante, por exemplo.

Assim sendo, a liberdade provisória com fiança se diferenciará das outras modalidades acautelatórias, sem fiança, ou vinculada, pela simples imposição da fiança, que poderá vir, ou não, acompanhada de outra medida cautelar, conforme dispõem os artigos 282 §1º e 319, §4º do CPP.

Outro aspecto instigante é o que alude o par. único do art. 322 do diploma processual penal, ao prever, na hipótese da não possibilidade de arbitramento da fiança pela autoridade policial, que o juiz decidirá sobre o requerimento de fiança em 48 (quarenta e oito) horas. Frise-se que o instituto da fiança independe de requerimento e, por isso, pode ser imposto de ofício, após a prisão em flagrante (art. 310 III do CPP), além das outras oportunidades em que ele se mostre necessário e adequado (art. 282, §§ 2º e 6º, todos do CPP).

Tal fato denota mais um exemplo da falta de sistematicidade no trato com a matéria, pois, após a prisão em flagrante (art. 310, caput, do CPP), o juiz deverá, como já exposto, relaxar a prisão, ou converter o flagrante em prisão preventiva, ou, ainda, conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Isto é, a concessão de liberdade provisória, seja com ou sem fiança, independe de qualquer requerimento do aprisionado ou de qualquer outra pessoa.

Destarte, nada impede, também, que o juiz imponha outra medida cautelar além da fiança, ainda quando da existência de pedido unicamente dela pelo aprisionado. Assim, não se trata mais de um “benefício” a ser conferido, mas de imposição de restrição de direitos por necessidade acautelatória, o que modifica tudo, sob o ponto de vista da aplicação da fiança, e, sobretudo, quanto ao momento e a pertinência de sua apreciação.

Por seu turno, imperiosa a análise do inciso I do art. 310. Por tratar de caso de relaxamento da prisão, por óbvio, não diz respeito a qualquer forma de liberdade provisória. A expressão relaxamento significa exclusivamente uma via de controle da legalidade da prisão, independentemente da modalidade, não se restringindo à hipótese de flagrante delito, em que pese a sua aplicação prática, em regra, ocorra em relação a essa.

Importante registrar que havendo uma situação de excesso de prazo na prisão preventiva decretada, o tribunal, por via do remédio constitucional do habeas corpus ou até mesmo de recurso inominado, deverá cassar a decisão, determinando de imediato o relaxamento do encarceramento, cuja continuidade já seria ilegal. Todavia, diferentemente do relaxamento, a revogação da prisão deverá ser decidida, tanto pelo juiz que a decretou como pelo tribunal em grau de revisão, com fundamento na falta de motivo para que subsista, nos termos do art. 316.

Com isso, tendo o juiz constatado a existência de ilegalidade da prisão em flagrante, deve determinar, de imediato, seu relaxamento e, por conseqüência, parece claro, sem a imposição nem de fiança nem de qualquer outra modalidade de cautelar, limitando-se à exigência de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena que revogação. ? Assim, agora parece adequada a antiga classificação doutrinária “liberdade vinculada”, embora pouco técnica, para a diferenciação da providência com as demais cautelares dos artigos 319 e 320, que podem ser impostas isolada ou cumulativamente, incluindo a fiança ?.

Desta maneira, deparamo-nos com as seguintes espécies de liberdade: a) liberdade provisória em que será vedada a fiança, com possibilidade de imposição de qualquer modalidade de cautelar prevista nos artigos 319 e 320, ambos do CPP, por absoluta vedação do instituto da fiança (artigos 323 e 324 do CPP); b) liberdade provisória com fiança, sempre cabível após a prisão em flagrante ou quando não necessária a preventiva (imposição de fiança, além de outra cautelar, se assim entender necessário o juiz); c) liberdade provisória vinculada ao comparecimento obrigatório a todos os atos do processo (art. 310 par. Único, do CPP); d) liberdade provisória sem fiança, cabível após a prisão em flagrante, quando inapropriada ou incabível a preventiva, com posterior imposição de qualquer outra medida cautelar.

Já o par. único do art. 313 traz a possibilidade de prisão preventiva em razão da dificuldade na identificação civil do acusado, sem mencionar em quais tipos de crimes tal medida poderá ser aplicada, nem se os requisitos do art. 312 devem estar presentes para tal decretação. Desse modo, profundamente preocupante, e necessário o alerta: “uma leitura isolada (que infelizmente será feita) permite prisão preventiva para averiguações, ainda que judicialmente autorizada, burlando as restrições existentes na prisão temporária, em que a jurisprudência consagrou a impossibilidade de prisão com base (isoladamente) no inciso II do artigo 1º da Lei nº 7.960. Essa prisão será contrária a toda principiologia da prisão preventiva e constituirá fonte de graves abusos” (LOPES. Volume I, 2010, p. 179).

Não bastando tais aspectos problemáticos da nova legislação processual penal, a reforma deixou de tratar de temas importantíssimos, como por exemplo, a fundamental questão quanto ao prazo para a prisão preventiva. Não se estipulando prazo algum, continua-se a abrir a guarda para a pouco democrática teoria do não-prazo (DEU, 2007, p. 183).

Outro aspecto esquecido pelo legislador foi em relação ao recurso cabível da decisão que defere e que indefere a medida cautelar. Para além da possibilidade de impetração do Habeas Corpus, com fundamento no risco mediato à liberdade de locomoção, dado que, uma vez descumprida aquela será possível a preventiva, entendo ser também cabível, salvo melhor juízo, o recurso em sentido estrito, com base no art. 581 V.

Neste interregno, uma pergunta ainda estará a instigar a atenta doutrina: o tempo de cumprimento das medidas cautelares diversa da prisão preventiva será levado em conta para detração da pena, conforme o caso, como se se tratasse de verdadeira prisão provisória, nos termos do artigo 42 do Código Penal?

Alhures, embora com precioso anseio, instituiu-se um sistema polimorfo, como dito, com diversas medidas cautelares alternativas à prisão preventiva (art. 319), o que veio a plasmar sua excepcionalidade. Contudo, pouco se refletiu sobre se tal engenho fará com que acusados, que antes respondiam ao processo em liberdade sem qualquer tipo de ônus ou encargo, terão que suportar algum deles, seja, por exemplo, a proibição de acesso ou freqüência a determinados lugares seja manter contato com pessoa determinada, ampliando assim a malha de controle punitivo estatal. Isso denota que o legislador, no afã de tentar desinchar e desafogar a máquina judiciária, além de ter criado uma verdadeira lista de ônus a serem suportados por pessoas que antes se “livrariam soltas” para responder o processo em liberdade, sem qualquer tipo de encargo a ser cumprido, não se preocupou com os gravames que terão de ser suportados pelos serventuários da justiça que, para além dos infindáveis afazeres cotidianos, padecerão ainda mais na incumbência de fiscalizarem o cumprimento de tais medidas.

Contudo, importante tecer alguns comentários a respeito de algumas destas outras medidas cautelares. A primeira medida (inciso I) implica o comparecimento periódico a sede do juízo, para informação a respeito das atividades regulares. Tal medida deve se limitar às informações sobre as eventuais atividades em desenvolvimento pelo investigado ou processado, ou, conforme o caso, as razões pelas quais não se exerce qualquer uma delas. Interpretação diversa implicaria reconhecer como válida, imagine-se, uma norma penal que pune, por exemplo, a “vadiagem”, tal como formalmente previsto no art. 59 do DL 3.688/41 (Contravenções Penais). Assim, deve-se cuidar para não confundir uma investigação a respeito da origem dos recursos utilizados para a manutenção e sobrevivência daquele que afirma não ter fonte de receitas, com algo muito diferente que é punir a indolência ou, ainda, a miserabilidade.

A segunda cautelar (inciso II) refere à proibição de acesso ou freqüência a determinados lugares. A medida, ressalte-se, fulcrada na tentativa de impedir a prática de novas infrações, não requer a imposição, cumulativa, do monitoramento eletrônico (art. 319, IX).

Uma inovação trazida pela Lei 12.403/11 repousa da previsão de recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga (inciso V). Trata-se de medida de acautelamento prévio e anterior à decretação da preventiva, podendo até ser imposta independentemente de anterior prisão em flagrante, mas, segundo parece, mais adequada se revelaria como substitutiva da prisão em flagrante.

Importante salientar a diferença que há entre o recolhimento domiciliar e a prisão domiciliar. Esta última é cabível somente como substitutivo da prisão preventiva, atendidas determinadas condições e circunstâncias pessoais do agente, segundo artigo 318 do CPP.

Ademais, tal inciso não se entusiasmou em apontar a finalidade do recolhimento domiciliar, como o fez nos demais, o que indica maiores cuidados quando do seu manejo.

No que refere à internação provisória do inimputável ou do semi-imputável (inciso VII), isto dependerá, por adequado, além da existência de indícios veementes de autoria e de materialidade do delito, que este seja de natureza violenta ou cometido mediante grave ameaça.

Com a Lei 6.416/77, que alterou o par. único do art. 310 do Código de Processo Penal, o instituto da fiança havia perdido sua importância, em razão da instituição legal da liberdade provisória sem fiança. Ao que parece, agora, o legislador fez ressurgir das cinzas tal instituto (inciso VIII). Medida essa que faz com que aspectos econômicos e financeiros do cidadão interfiram na mantença de sua liberdade, trocando-a por pecúnia.

Não há como deixar passar imune à crítica tal inovação. Em que pese a lei se refira apenas ao comparecimento ao processo penal, não resta dúvida que ela poderá ser imposta e prestada desde o momento da efetivação da prisão em flagrante, o que denota ser completamente aceitável quando ainda na fase de investigação. Destarte, o legislador não pôde ser mais inconsistente quanto ao requisito “resistência injustificada à ordem judicial”, devendo-se, ao menos, entender que se refira ao descumprimento de outra cautelar, como mecanismo de tentativa a salvar o instituo da fiança, como espécie de medida cautelar. Assim, a única alternativa para tentarmos compreender a inserção de tal instituto como espécie de medida cautelar é entendermos como apenas um reforço de fundamentação no que diz respeito ao comparecimento obrigatório a todos os atos do processo, sempre que a tanto for intimado, com base nos arts. 327 e 328. Ou seja, fiança como espécie de liberdade provisória substitutiva da prisão em flagrante.

Por derradeiro, a novidade de maior destaque encontra-se no inciso IX, qual seja o monitoramento eletrônico. Medida essa que deve ter um teor excepcional, devendo contar com a concordância e aderência do monitorado, pois mais importante ainda é não confundir o monitoramento a presos já condenados (como alternativa à prisão já imposta), com o monitoramento previsto aqui como medida cautelar.

Superada tal questão, o monitoramento eletrônico parece ser uma ferramenta que possibilita uma alternativa ao cárcere provisório, bem como a oportunidade de antecipar o fim da segregação provisória do acusado, permitindo de plano o retorno ao convívio familiar e o acesso a programas de tratamento disponibilizados pelo Estado, promovendo sua reinserção na sociedade. Todavia, importante observar que, se de um lado, o monitoramento eletrônico pode estigmatizar o usuário, uma vez que, dependendo do sistema utilizado, ao seu corpo é fixado um dispositivo que não poderá ser violado enquanto perdurar a condição imposta; de outro, o Estado não parece querer abrir mão de aprofundar seu poder de vigilância sob o corpo social.

Considerações finais

Com alguma força de síntese, ao final, permite-se dizer que a nova Lei 12.403/11 trouxe relevantes alterações no âmbito das prisões e da liberdade provisória, bem como fez inserir, (in)felizmente, inúmeras alternativas ao cárcere, cabendo aos juízes e tribunais romperem com a cultura até então existente, para finalmente reservar-se a prisão preventiva para situações excepcionalíssimas. Porém, as novas espécies de cautelares pessoais não podem ser banalizadas e muito menos serem objetos de utilização indiscriminada pelos operadores do direito, tendo em vista que, por lógica, nenhuma providência cautelar pode se tornar superior ao resultado final do processo a que se destina tutelar.

Desse modo, somente com a observância dos princípios da provisoriedade, provisionalidade, excepcionalidade e proporcionalidade (DEU, 2007, pp.171) é que as medidas cautelares, bem como as espécies de prisões acautelatórias poderão estar constitucionalmente conforme. Do contrário, serão consideradas ilegítimas, por configurarem espécies de antecipação de pena, desproporcional e desnecessária.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Data de elaboração: julho/2011

 

Como citar o texto:

AMARAL, Juliana Jobim do..A Lei 12.403/11: novos e velhos problemas. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/2337/a-lei-12-40311-novos-velhos-problemas. Acesso em 18 out. 2011.

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