Resumo

 

O debate atual e recorrente sobre o aborto dos fetos anencefálicos tem gerado importantes discussões sobre a hermenêutica jurídica que envolve todas as controvérsias pertinentes à matéria. De um lado, correntes que tratam o direito à vida de forma absoluta, influenciados por crenças religiosas e, de outro, doutrinadores que proclamam uma visão mais cientificista sobre os critérios para se auferir o momento de início da vida, com os consequentes reflexos jurídicos para a proteção da vida humana, bem como se esta proteção deve ser estendida aos casos dos fetos anencefálicos. O presente artigo examina a possibilidade da interrupção da gestação de fetos anencéfalos, sustentando a tese de não ofensa à Constituição Federal e aos princípios do ordenamento jurídico brasileiro, ante a inexistência de expectativa de vida. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se sobre o tema em análise, corroborando o entendimento aqui exposto. Assim, o trabalho aborda o referido fenômeno desprovido de crenças religiosas, enfatizando o seu caráter científico. É nesse cenário que é defendida a licitude e a legitimidade da interrupção de gestação de feto anencéfalo.

Palavras-Chave: aborto – anencefalia - dignidade

Introdução

Este artigo tem como principal escopo a análise das controvérsias existentes no campo do direito sobre o aborto de feto anencéfalo, a apresentação e discussão das teses favoráveis à descriminalização deste tipo de “aborto”, bem como a interpretação da decisão do Supremo Tribunal Federal à luz das teorias contidas no trabalho.

Inicialmente, para melhor compreensão da matéria tratada no presente artigo, mister se faz pontuar alguns conceitos introdutórios como a evolução histórica do tratamento conferido ao aborto, lato sensu, as exceções surgidas em razão das transformações morais da sociedade, a definição de anencefalia, dentre outros temas.

A questão central a ser investigada gira em torno da interpretação constitucional sobre o tema, já que há uma disparidade ontológica entre a legislação penal, a Constituição Federal e os valores e anseios sociais. Nesse sentido, com o decorrer do tempo, as mudanças de paradigmas são inevitáveis: valores são modificados e tantos outros novos passam a fazer parte da sociedade. O direito, portanto, deve estar apto a acompanhar essas transformações, provocando os nossos julgadores a construir decisões em conformidade com a Constituição, envolta em toda a completude do ordenamento jurídico, e não apenas levar em consideração somente a legislação infraconstitucional.

O Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), trata, em seus artigos 124, 126, caput e 128 incisos I e II, respectivamente, do aborto, do aborto praticado pela gestante e do aborto terapêutico. Ocorre que, no que se refere ao aborto terapêutico, não há qualquer menção sobre a possibilidade de se realizar o aborto dos fetos anencéfalos, o que acaba por constituir, na hipótese de sua materialização, em conduta tipicamente antijurídica.

Não obstante toda luta para a preservação da dignidade da pessoa humana, por diversas vezes é o próprio Estado que viola o mencionado princípio. No momento em que proíbe a mulher de escolher interromper a gestação de feto anencéfalo, está ferindo brutalmente a sua dignidade.

Dentro dessa linha de raciocínio, a Constituição Federal assegura entre todas as liberdades individuais, a dignidade da pessoa humana – art.1º, IV -, os princípios da legalidade, liberdade e autonomia da vontade - art. 5º, II -, o direito à saúde – art. 6º, caput e art. 196, todos conflitando com os dispositivos penais acima mencionados.

O que se questiona, portanto, é se, diante de todas essas garantias e essas liberdades individuais asseguradas pela Constituição, uma mãe que resolve realizar um aborto de um feto anencéfalo é obrigada a levar essa gravidez adiante somente porque o Código Penal não contempla essa hipótese, criminalizando tal conduta com a pena de detenção.

Sendo assim, a problemática do tema é resolver o impasse envolvendo a interrupção da gestação de fetos anencefálicos, frente a liberdade e autonomia da mãe, conferidos pelo princípio da dignidade humana, examinando a legislação penal pátria em consonância com a Constituição Federal.

Para o desenvolvimento do trabalho foi realizada pesquisa bibliográfica em livros didáticos e análise de decisões judiciais, além de alguns artigos científicos. Para corroborar a tese aqui apresentada, faz-se a exposição do Julgamento do STF- Supremo Tribunal Federal, ocorrido em 12 de abril do ano em curso.

Para tanto, o trabalho foi dividido em nove partes. Inicialmente, nos três primeiros tópicos, apenas a título de informação, entendeu-se ser necessária a explanação do conceito de aborto e evolução do seu tratamento legal ao longo do tempo, além da definição de anencefalia. Vale ressaltar que a intenção é apenas apresentar ao leitor alguns elementos para melhor compreensão do tema.

Logo em seguida, no item quatro, passa-se a análise da legislação penal, com a abordagem das excludentes legais admissíveis para o aborto, defendendo-se a sua ampliação para abarcar a hipótese do feto anencéfalo.

No item subsequente, trata-se do conceito de morte segundo a lei de transplante de órgãos, com o escopo de sustentar, a contrario sensu, a inexistência de expectativa de vida do feto anencéfalo. No item seis, aborda-se os elementos descaracterizadores do crime de aborto de feto anencéfalo. No tópico seguinte, trata-se dos princípios e direitos fundamentais violados ao se admitir crime a interrupção da gestação de feto anencéfalo. Sustenta-se, neste tópico, que as decisões proferidas por magistrados que imponham a manutenção da gravidez à genitora agridem diretamente princípios basilares previstos na Constituição Federal.

No item oito, é colacionado ao trabalho importante decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, proferida em março do ano em curso, em que se verifica a procedência do pedido de antecipação terapêutica do parto, vez que a Douta Corte interpretou a anencefalia de modo similar ao aborto decorrente de estupro e praticado para salvaguardar a vida da mãe, preservando- lhe, desta forma, a integridade física, psíquica e social da gestante.

E, ainda, no item nove, há a exposição da posição atual da Suprema Corte com base no julgamento da ADPF nº 54-8. Por fim, conlui-se não ser contrário ao ordenamento jurídico brasileiro a interrupção da gestação de feto anencéfalo, mas ao contrário, vislumbra-se a consolidação/concretização do princípio da dignidade humana ao conferir à gestante a liberdade para decidir levar adiante ou não a referida gestação, posição corroborada com o entendimento do STF.

1 Evolução histórica

Para melhor compreensão do tema a ser desenvolvido, faz-se necessário, inicialmente, apresentar algumas noções gerais sobre o aborto, abordando o conceito e tratamento legal conferido ao longo do tempo. Assim, antes de adentrar propriamente no núcleo da discussão, passa-se a explanar alguns conceitos introdutórios

De acordo com as lições doutrinárias de Luís Regis Prado (2007), entende-se que durante um longo período o aborto não foi tipificado como crime pelo ordenamento jurídico. Ao contrário, sua prática constituía uma liberalidade da mãe, que à época poderia decidir o que fazer com o feto.

Conforme o autor, o aborto não era um problema tutelado pelo Estado e tampouco ofendia um bem jurídico, pois o feto era considerado uma extensão do corpo da mãe, razão pela qual a genitora tinha a faculdade em dar prosseguimento à gravidez ou não.

Mais tarde, notou-se uma grande influência do cristianismo que se baseava em preceitos religiosos e morais para condenar a prática do aborto por se tratar, segundo sua dogmática, da interrupção da vontade divina, punindo a prática de tal ato com a pena de excomunhão. Desta forma, o aborto passou a ser equiparado ao homicídio, uma vez que possuía a mesma sanção deste.

Com a promulgação do primeiro código criminal do império em 1830, o abortamento tornou-se um tipo próprio cuja pena passou a ser menos severa do que a do homicídio, o que demonstrou uma grande evolução da legislação penal brasileira.

Em 1890, surgiu o Código Penal Republicano que passou a punir o auto-aborto, ou seja, aquele provocado pela própria gestante, pois até então só era incriminado o abortamento feito por terceiro.

Por fim, o Código Penal de 1940, predominante até os dias atuais, dispõe como crime de aborto quaisquer hipóteses que venha a ceifar a vida do embrião, abarcando dois permissivos legais que autorizam a interrupção da gravidez, quando a gravidez resulta de estupro e na iminência de risco à vida da gestante. Nesses dois casos previstos, não há a punição do agente. A exclusão de punibilidade imputada a essas hipóteses alastrou o debate sobre a possibilidade de ampliação dessas normas aos fetos anencéfalos.

A partir da análise histórica do tratamento conferido ao aborto no Brasil, entende-se a importância e influência dos movimentos cristãos na incriminação do aborto. Porém, seria correta a intervenção do Catolicismo em um assunto tão somente jurídico? As normas religiosas podem se sobrepor as normas de direito?

O aborto é, indiscutivelmente, um tema bastante polêmico e que gera muita discussão na esfera social. Todavia, ao analisar a realidade brasileira, percebe-se tratar claramente de um problema de saúde pública, cabendo ao Estado resguardar a integridade física e psíquica das mulheres.

2 Conceito de aborto

Inúmeras são as acepções empregadas pela doutrina na conceituação do aborto. Percebe-se que, cada autor imprime uma interpretação diferenciada ao delito. O professor Júlio Fabrini Mirabette define-o como:

[...] a interrupção da gravidez com destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão. (MIRABETE, 2005, p. 93).

No entanto, para Luís Regis Prado: “O aborto consiste, portanto, na morte dada ao nascituro intra uterum ou pela provocação de sua expulsão.” (PRADO, 2007, p. 112).

A divergência dos argumentos está na abordagem do ser protegido pelo direito. Enquanto Mirabete (2005) conclui genericamente sobre o sujeito passivo do crime, citando suas diversas fases de crescimento no útero, Luis Regis Prado (2007) o conceitua apenas como nascituro. O Código Penal, por sua vez, destaca a interrupção da gravidez sem delimitar qualquer estágio de desenvolvimento.

Sabiamente explana Paulo José da Costa Jr. acerca do assunto:

Entende-se por aborto (de ab-ortus, privação do nascimento) a interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da concepção. Não distinguiu a lei entre óvulo fecundado, embrião ou feto. Contentou-se com a interrupção da gravidez. No rigor etimológico, abortamento é o ato de abortar; aborto é o produto morto ou expelido. Por via de regra, o feto é expulso. Por vezes, interrompida a gestação, há a dissolução e reabsorção do embrião. Ou poderá ocorrer a mumificação ou calcificação do feto, que permanece no interior do útero, sem ser expulso. (COSTA JUNIOR, 2009, p. 308)

Com base na citação, depreende-se que, para o direito penal, o início da vida é marcado pela fecundação do óvulo, por não ter o legislador restringido o alcance da norma penal. Outra é a forma que prevê o direito civil quanto os direitos do nascituro, devidos somente a partir do nascimento com vida, segundo o art. 2º da Lei nº 10.406/2002.

Os Doutos Julgadores do Tribunal de Justiça de São Paulo aduzem que:

A ação de provocar aborto tem por objeto interromper a gravidez e eliminar o produto da concepção. Ela exerce-se sobre a gestante ou também sobre o próprio feto ou embrião. Isto significa que a mulher engravidada e o fruto da concepção constituem objeto material da ação de provocar aborto. Consuma-se o crime com a morte do feto ou embrião. Pouco importa que a morte ocorra no ventre materno ou fora dele. Irrelevante é, ainda, que o evento se dê com a expulsão do feto ou sem que este seja expelido das entranhas maternas. (TJSP - RJTJSP, 67/322)

Nota-se pela leitura que o aborto não ocorre somente quando há a morte seguida da expulsão do feto, mas o que leva a tipificação, e, por conseguinte a punição do agente é a utilização de meios que acarretem na morte ou destruição do feto, independentemente dos restos embrionários se encontrarem ainda no útero materno.

É evidente que o que importa para o direito é o ato de provocar o aborto que se traduz na interrupção da gravidez com a morte do produto da concepção. Torna-se irrelevante a averiguação da morte intra ou extra- uterina.

3 Anencefalia

Para uma melhor compreensão acerca do tema “aborto anencefálico” é imprescindível destacar algumas definições sobre o que seja anencefalia.

Segundo o Doutor Pedro Lazarini Neto:

A anencefalia (do grego na = sem; enkepalos = cérebro), ou seja, sem cérebro, é anomalia congênita, uma anormalidade do desenvolvimento do embrião e do feto, constituindo-se, pois, em gravíssimo problema do sistema nervoso, advindo assim uma anomalia resultante de um defeito do tubo neural do embrião. Essa anomalia, letal, ocorre entre o 20º e o 28º dia após a concepção, entre a terceira e a quarta semana do desenvolvimento do feto. Todas as funções do cérebro são comprometidas. (NETO, 2008, p. 381)

A anencefalia consiste, outrossim, em uma malformação gravíssima que se caracteriza pela falta total ou em parte do encéfalo e da calota craniana, correspondendo a um grave problema no sistema nervoso que compromete várias funções do cérebro. Quando o feto nasce com essa patologia é impossível a reversibilidade e a manutenção da vida do nascituro.

O ex- deputado e professor titular de ginecologia da USP, Profº José Aristodemo Pinotti discorre sobre o diagnóstico desta anomalia, bem como sobre suas características:

[...] O Brasil é um país com incidência alta, cerca de 18 casos para cada 10 mil nascidos vivos, a maioria do sexo feminino. O reconhecimento de concepto com anencefalia é imediato. Não há ossos frontal, parietal e occipital. A face é delimitada pela borda superior das órbitas que contém globos oculares salientes. O cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anencefalia tornou-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína aumentados no líquido amniótico obtido por amniocentese. A maioria dos anencéfalos sobrevive no máximo 48 horas após o nascimento. Quando a etiologia for brida amniótica podem sobreviver um pouco mais, mas sempre é questão de dias. As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido amniótico), levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado. (PINOTTI, 2004, p. 294-295)

Verifica-se que o embrião portador de anencefalia possui graves deformidades que impossibilitam a sobrevivência após o parto e expõe a um elevado grau de risco a vida da progenitora. Não restam dúvidas que a comprovação científica a respeito da inviabilidade de vida deste feto é exata, já que na maior parte das gestações o feto não alcança o estágio final do ciclo gestacional.

É por esta razão que a doutrina majoritária defende a saúde e o psiqué da mãe em detrimento de uma “vida” que está fadada a morte segundo diagnósticos médicos consistentes.

Qual seria o motivo relevante para o prolongamento da vida de um futuro natimorto que comprometerá a saúde da mãe? Nesses casos, a dignidade da pessoa humana deve prevalecer sobre a inviabilidade de vida extra- uterina.

4 Ampliação das excludentes legais

Segundo o jurista Mirabete (2005), o art. 128 do Código Penal vigente prevê duas excludentes penais, o aborto necessário ou terapêutico e o aborto sentimental. O aborto necessário está disposto no inciso I do mencionado artigo, enquanto o aborto sentimental está descrito no inciso II.

Assim dispõe o Código Penal em seu art. 128:

Não se pune o aborto quando praticado por médico: I- se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (RIDEEL, 2009)

No primeiro caso, o legislador excepcionou a realização do aborto pelo médico se da manutenção da gravidez houver iminente risco à vida da gestante, este aborto é designado como necessário por caracterizar-se o estado de necessidade. Por outro lado, a segunda parte do dispositivo refere-se ao aborto sentimental, que permite à genitora a interrupção da gravidez e não a obriga a cuidar de um filho proveniente de um ato violento. Nessa hipótese, justifica-se a licitude da conduta pela inexigibilidade de conduta diversa.

Contudo, não parece correto o tratamento diferenciado que se impõe ao aborto de fetos anencéfalos, que constitui também um estado de necessidade para a mulher, que tem seu psicológico abalado após ser noticiada sobre a doença do seu filho e a impossibilidade de sobrevivência.

Seria correto torturar uma mãe e obrigá-la a levar adiante uma gestação predestinada ao fracasso? E mais, seria necessário impor sanções a uma mãe que passa por imensurável dor? O aborto de fetos anencéfalos não está previsto no ordenamento jurídico, por isso as decisões judiciais baseavam-se em meios de integração para solucionar as causas.

Muitos magistrados influenciados pela moral cristã utilizavam argumentos sem bases defensáveis para dirimir as controvérsias. Os conteúdos decisórios traduziam a parcialidade dos julgamentos que denegavam os pedidos de antecipação terapêutica do parto. Tais decisões eram totalmente injustas, porque postergavam o sofrimento da mãe.

A manutenção de uma gestação de feto inviável ocasiona na mulher uma profunda angústia, pois de acordo com a medicina não existe nenhuma esperança de vida. No Brasil, inexistem adultos portadores de anencefalia, o que impende em definir este feto como um natimorto.

Por isso, a suspensão da gestação de anencéfalos é considerada conduta não reprovável por uma sociedade que conhece os transtornos e malefícios que essa gravidez pode trazer a gestante.

Ora, se é impossível exigir conduta diversa de uma mulher vítima de ato violento que não quer manter a gravidez, o que falar de uma que está desenganada e sabe que o filho está destinado à morte? O aborto de fetos anencéfalos é senão conduta menos reprovável do que o decorrente de estupro, pois se trata do descarte de um feto potencialmente morto, em contraposição, no aborto sentimental há a expulsão de um feto saudável.

Conforme Bittencourt (2008) cumpre ressaltar que o legislador ao tutelar o aborto e omitir a anencefalia em 1940, não tinha uma visão sobre a proporção dos avanços científicos e tecnológicos e a probabilidade de certeza dos diagnósticos médicos acerca dessa anomalia fetal. Todavia, há uma necessidade em se adaptar a legislação à realidade atual que constantemente passa por mudanças culturais, históricas, técnicas e científicas de grande respaldo. Sob essa perspectiva exige-se uma atualização do Código Penal e o ajustamento à realidade fática da anencefalia diante dos avanços da medicina e dos argumentos providos de razoabilidade.

5 Conceito de morte segundo a lei de transplante de órgãos

Em conformidade com o que fora retratado nos tópicos anteriores, nota-se que o delito de aborto se consuma com a interrupção da gravidez através de manobras abortivas que proporcionam a morte do embrião. O jurista Cezar Roberto Bittencourt corrobora com o entendimento ao mencionar que: “O crime de aborto pressupõe gravidez em curso e é indispensável que o feto esteja vivo. E mais: que a morte seja resultado direto de manobras abortivas”. (BITTENCOURT, 2008, p. 150)

Dito isso, afirma-se que nos casos referentes à expulsão de fetos anencéfalos do útero materno não há a consumação do delito de aborto, porque a lei nº 9.434/97 pertinente ao procedimento dos transplantes de órgãos no Brasil permite a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo de pessoas falecidas quando houver diagnóstico que comprove a morte encefálica.

O seu art. 3º dispõe da seguinte maneira:

A retirada pós-morte de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. (RIDEEL, 2009)

Percebe-se que, para o legislador, a morte se configura quando atestada a ausência de atividade cerebral e não quando há parada cardiorrespiratória, mediante tais diagnósticos são autorizados os transplantes. É por este motivo que se questiona a atipicidade do crime de aborto de fetos anencéfalos, já que o delito somente se configura com a morte do feto provocada por manobras maternas ou de terceiro.

Por outras palavras, não há que se enquadrar a antecipação do parto de um anencéfalo como crime de aborto, pois a conseqüente expulsão do embrião ocorre quando atestada anteriormente a morte cerebral do feto. O que implica em concluir que se o crime de aborto só ocorre no curso da gravidez e quando o feto se encontra vivo estaríamos diante de um crime impossível.

6 Elementos descaracterizadores do crime de aborto anencefálico

No âmbito penal, há alguns elementos que afastam a anencefalia de incidir como crime de aborto, dentre estes, destacam-se: as causas excludentes de ilicitude, tipicidade e culpabilidade. A ilicitude pode ser definida como uma conduta que contraria o ordenamento jurídico; infringe a lei e desrespeita a Ordem Jurídica do Estado. Esta prática é traduzida em uma ação ou omissão que lesiona um bem juridicamente protegido e atinge a esfera do direito de outrem. Destarte, conceitua Ney Moura Teles: “Do ponto de vista formal, portanto, a ilicitude seria a simples contradição entre o fato realizado pelo agente e a norma penal incriminadora. (TELES, 2004, p.245)

O Código Penal Brasileiro, no seu art. 23, prevê três excludentes de ilicitude, o inciso I corresponde ao estado de necessidade; o inciso II a legítima defesa e o inciso III ao estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito. Cumpre analisar, porém, apenas o estado de necessidade e a legítima defesa como institutos que desconstituem o aborto de feto anencéfalo. (RIDEEL, 2009)

Nucci (2008) entende que o estado de necessidade é aquela conduta que mesmo a contrariar a lei, é a única possível a ser tomada no momento da ação, assim o agente a pratica para evitar a concretização de perigo atual e inevitável, buscando proteger direito próprio ou alheio.

Enquanto Capez explicita o estado de necessidade como:

Causa de exclusão da ilicitude da conduta de quem, não tendo o dever legal de enfrentar uma situação de perigo atual, a qual não provocou por sua vontade, sacrifica um bem jurídico ameaçado por esse perigo para salvar outro, próprio ou alheio, cuja perda não era razoável exigir. No estado de necessidade existem dois ou mais bem jurídicos postos em perigo, de modo que a preservação de um depende da destruição dos demais. Como o agente não criou a situação de ameaça, pode escolher, dentro de um critério de razoabilidade ditado pelo senso comum, qual deve ser salvo. (CAPEZ, 2008, p. 274)

Quanto à anencefalia, afirma-se que a gestante ao ter que sacrificar a vida inviável do embrião para salvar outros bens jurídicos, como a sua saúde e psicológico, age em conformidade com o estado de necessidade. Ademais, se o aborto anencefálico não tem previsão legal, a genitora não tem o dever de dar continuidade a uma gravidez prejudicial a sua saúde, vez que ninguém pode ser impelido a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.

Desta forma, não é possível julgar uma mãe por simplesmente escolher não passar por uma situação de extremo perigo e sofrimento. A gestante que perde um filho, ainda mais nessas condições, passa por um abalo psicológico, muitas vezes incorrendo à depressão pós-parto.

É importante ressaltar que a mãe não tem culpa nenhuma do feto nascer com essa anomalia, portanto diante de uma situação alheia a sua vontade cabe a genitora utilizar a ponderação e razoabilidade para optar pelo direito a ser protegido, a sua dignidade humana ou a “vida” de um feto potencialmente morto.

A legítima defesa, segunda excludente de ilicitude abordada pelo código penal, é definida por Nucci (2008), como uma defesa impetrada quando houver injusta lesão a direito próprio ou alheio, utilizando-se o agente moderadamente dos meios necessários que assegurem o resguardo de seus direitos.

Esta excludente está inserida no campo do aborto anencefálico, uma vez que, a gestante protege a sua higidez psicológica, a sua dignidade humana, a sua liberdade de escolha, tais como direitos personalíssimos que são e que podem vir a serem feridos caso haja a manutenção da gravidez.

A tipicidade, por sua vez, é conceituada por Nucci (2008), como a justa adequação do fato ocorrido no mundo real ao tipo penal discriminado na lei, ou seja, é a prática da conduta prevista no Código Penal, em seus artigos, descrita como fato criminoso. Visto o que é tipicidade convém destacar o crime impossível como sua forma excludente.

Nota-se pela leitura do art. 17 do Código Penal que a ineficácia absoluta do meio ou a absoluta impropriedade do objeto tornam o crime impossível de ser cometido, não podendo ser punida nem a sua tentativa.

Consoante ao assunto acrescenta Mirabette: “Na segunda parte, o art. 17 refere-se à absoluta impropriedade do objeto material do crime, que não existe ou, nas circunstâncias em que se encontra, torna impossível a consumação”. (MIRABETE, 2003, p. 166).

A anencefalia torna impossível a consumação do crime de aborto, isto porque dadas as circunstâncias nas quais se encontra o feto há a impossibilidade de vida útil. Conforme aludido anteriormente, o aborto de fetos anencéfalos é crime impossível e, por conseguinte atípico, pois no momento em que a gravidez é interrompida o feto já está morto, não mais possuindo atividade cerebral. É evidente que não ocorre o enquadramento da norma prevista e conduta praticada, o que caracteriza a atipicidade pela falta de objeto do crime.

Finalmente, o último elemento a ser analisado é a exclusão da culpabilidade da gestante de feto anencéfalo. No Direito Penal, a culpabilidade é estabelecida como um juízo de reprovação social sobre o ato praticado por um agente que detinha noções mínimas sobre direito e conduta criminosa.

Bittencourt (2008) evidencia que somente é culpável a pessoa que executa um ato ilícito quando outra conduta era exigível de sua parte. Em virtude disto, não é possível culpar uma gestante de feto anencéfalo por interromper a gravidez, pois a sua conduta não é reprovável dada à impossibilidade de vida do feto e o estado emocional da mãe. Não é esperado outro comportamento da mãe, além da antecipação do parto, uma vez que é desumana a manutenção dessa gravidez atípica até o fim. A excludente da culpa da gestante nesse caso é designada como inexigibilidade de conduta diversa.

Desse modo, não há como exigir outra conduta de uma gestante que deseja acabar com o seu sofrimento, visto que há uma necessidade em ponderar se a vida inviável do embrião é superior ao respeito à concretude da vida da gestante.

7 Princípios e direitos fundamentais violados

Um dos argumentos mais utilizados a favor da descriminalização do aborto anencefálico é a violação dos direitos e princípios fundamentais concernentes à gestante. De acordo com essa teoria as decisões proferidas por magistrados que imponham a manutenção da gravidez à genitora agridem diretamente princípios basilares previstos na Constituição Federal. Dentre os princípios destacam-se a dignidade da pessoa humana, a liberdade, autonomia da vontade e a legalidade.

O princípio da dignidade humana é visto como o fundamento de maior importância no Estado Democrático de Direito. Através dele se propagam os ideais de condições sociais, culturais e econômicas dignas à existência. Assim salienta Yuri Carneiro Coelho:

[...] a dignidade da pessoa humana encerra a necessidade de um absoluto respeito à pessoa humana, enaltecendo o ser humano como um fim em si mesmo, sendo, portanto, instrumento materializador dos Direitos Fundamentais, constituindo ele o próprio fundamento material dos Direitos Fundamentais, o que limita, sobremaneira, a atuação estatal na restrição desses direitos, proposição fundamental a um Direito Penal de garantia, que enalteça a liberdade humana e se restrinja a tutelar apenas os bens jurídicos fundamentais, e em suas lesões mais graves. (COELHO, 2009, p. 79-80)

Ainda sobre a dignidade da pessoa humana preceitua Alexandre de Moraes:

[...] é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo vulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos [...] (MORAES, 2003, p. 60-61)

Diante do exposto entende-se que o princípio da dignidade humana leva em conta que todos os seres humanos devem ser considerados sujeitos de direito e merecem o mínimo de condições dignas à sobrevivência, sendo vedado o tratamento degradante ou cruel. É através deste princípio que são interpretados os demais direitos fundamentais, pois a dignidade humana corresponde à fonte material de onde emanaram as garantias fundamentais.

Mesmo o Estado Brasileiro sendo fundamentado neste princípio da dignidade humana, o que se observava nas hipóteses referentes à anencefalia era a imposição de sentenças que negavam as mães o direito de interromper a gestação as submetendo a intensa tortura de carregar por nove meses uma criança que não sobreviveria.

O proferimento destas decisões atentava não só contra a dignidade da pessoa humana, mas também feriam o direito social à saúde e a vedação à tortura. A Constituição é clara ao prever que a saúde é um direito de todo o indivíduo e um dever do Estado, o qual deve criar políticas públicas para reduzir a propagação de doenças. Assim, baseado nesse dever legal compete ao Estado zelar pela saúde da progenitora de um feto anencéfalo, de modo a evitar os riscos inerentes a uma gestação fadada ao insucesso.

Ainda que sejam violados tais princípios, o debate de maior importância concentra-se na colisão entre o direito à liberdade da gestante e o direito à vida do nascituro. Este questionamento é bastante complexo, pois não há hierarquia entre os direitos fundamentais, no entanto a resolução desta controvérsia está no princípio da razoabilidade ou proporcionalidade.

Steinmetz (2001 apud LOPEZ, 2006, p.3) bem explica o princípio da proporcionalidade:

Uma colisão de princípios não se resolve com uma cláusula de exceção nem com um juízo de (in)validez. Requer um juízo de peso. Trata-se da ponderação de bens, com a qual, tendo presente às circunstâncias relevantes do caso e o jogo de argumentos a favor e contra, decidir-se-á pela precedência de um princípio em relação ao outro.

Nesse sentido, é preciso preponderar o direito à liberdade da gestante e o direito à vida nas hipóteses de anencefalia, pois, apesar de nessas hipóteses, o feto ser a parte mais vulnerável a ser protegida, verifica-se a inviabilidade de vida útil.

O Desembargador Raimundo Cutrim em entrevista à revista jurídica Consulex, edição de 15 de outubro de 2008 compartilha da mesma opinião, ao ressaltar que se há a proteção ao portador de anencefalia e é assegurado a este o direito ao crescimento celular no útero materno, também não há como esquecer a gestante que está fragilizada, tendo em risco à sua saúde, o psicossomático e sujeita a depressão cujas conseqüências podem acarretar o suicídio.

8 Jurisprudência

Embora, a Suprema Corte em 2004 tenha suspendido o julgamento dos processos pendentes que versavam sobre a anencefalia, em março de 2012 o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro apreciou Ação de Habeas Corpus no 0005182-45.2012.8.19.0000 impetrada pela paciente Jaqueline Alves de Lima em face do juízo da 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias, apontada como autoridade coatora.

O que ocorre é que a paciente em questão, já havia pleiteado em primeira instância a interrupção da gravidez de um feto anencéfalo, porém o Juízo julgou improcedente o seu pedido alegando que havia carência de previsão legal acerca do tema. Justificou também que as hipóteses de anencefalia não estavam agasalhadas no rol dos permissivos legais previstos no art. 128 do Código Criminal. Desta forma, o magistrado interpretou literalmente a lei enquadrando também os casos dos anencéfalos como crime de aborto, ferindo as garantias fundamentais da liberdade, autonomia da vontade, dignidade da pessoa humana, vedação à tortura, legalidade, direito à saúde e o direito à prestação jurisdicional.

Destarte, o defensor público constituído impetrou habeas corpus sob o argumento de ter a respectiva autoridade criminal restringido o direito de ir e vir da paciente, bem como teria cometido abuso de poder e ilegalidade. Por fim, o impetrante requereu também à segunda instância a antecipação terapêutica do parto através de concessão de alvará judicial.

Analisando a Ação a Segunda Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu o seguinte:

AÇÃO CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ. DIAGNÓSTICO DE ANENCEFALIA FETAL. INDEFERIMENTO PELO JUÍZO IMPETRADO, AO ARGUMENTO DE FALTA DE AMPARO LEGAL. CABIMENTO DA AÇÃO CONSTITUCIONAL. POSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO. JURISPRUDÊNCIA RECENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE CABIMENTO DE HABEAS CORPUS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DO CABIMENTO DA AÇÃO CONSTITUCIONAL. ANTEPROJETO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. RESTRIÇÃO DE LEGE FERENDA. INTERPRETAÇÃO AMPLA DO CABIMENTO DO WRIT PARA SALVAGUARDAR GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. NECESSIDADE DE AFASTAMENTO DA NORMA INCRIMINADORA. RISCO À LIBERDADE AMBULATORIAL. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. APONTADA ILEGALIDADE DIANTE DA DECISÃO FUNDAMENTADA DE FORMA INSUFICIENTE. PÓS-POSITIVISMO. [...] ATIPICIDADE DA CONDUTA. LIÇÕES DA DOUTRINA. ANALOGIA IN BONAM PARTEM. ARTIGO 128 DO CÓDIGO PENAL. CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DE ILICITUDE. PONDERAÇÃO DE INTERESSES. CONGRUÊNCIA DO SISTEMA JURÍDICO. ABORTO TERAPÊUTICO E ABORTO SENTIMENTAL. PREVALÊNCIA DO DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA, PSÍQUICA, MORAL E SOCIAL DA GESTANTE QUE DEVE SER ESTENDIDA À HIPÓTESE DE ANENCEFALIA, PORQUE INVIÁVEL A VIDA EXTRAUTERINA. EXCULPANTES PENAIS. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA. PROIBIÇÃO DE SUBMISSÃO A TORTURA, TRATAMENTO DESUMANO OU DEGRADANTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. CONCESSÃO DA ORDEM. (HABEAS CORPUS, nº 0005182-45.2012.8.19.0000).

De acordo com a aludida ementa, a Segunda Câmara do respectivo tribunal declarou a procedência dos pedidos, visto que o Habeas Corpus seria o meio adequado para o pleito por não haver dissenso jurisdicional a respeito da ação adequada para recorrer da denegação de antecipação terapêutica do parto, utilizando as partes ora apelação cível, apelação criminal, ora mandado de segurança, habeas corpus. A adequação do meio processual utilizado estava na restrição do direito à locomoção e direitos e garantias fundamentais concernentes a gestante. A autoridade coatora teria se omitido diante de um caso não previsto em lei, dispensando os meios de integração previstos e necessários para preencher a lacuna. E não teria interpretado a questão mediante analogia in bona partem como prevê o ordenamento jurídico. O coator proferiu a decisão sem atentar para os direitos individuais e sociais inseridos na Constituição Federal, tais como o direito à liberdade, à saúde que é dever do Estado e a dignidade humana fundamento precursor de todo o Estado Democrático de Direito impondo a mãe o termo de uma gravidez que a constrange e tortura.

Quanto ao pedido de antecipação terapêutica do parto, o Tribunal também julgou procedente, vez que interpretou a anencefalia de modo similar ao aborto decorrente de estupro e praticado para salvaguardar a vida da mãe, preservando- lhe desta forma a integridade física, psíquica, social. Como fundamentações da decisão foram utilizadas a teoria da inviabilidade de vida extra-uterina do feto em detrimento da tutela pela vida e saúde da gestante; a inexigibilidade de conduta diversa reconhecida à mãe que passa pelo sofrimento de uma gravidez de feto anencéfalo; bem como a vedação à violação de preceitos basilares garantidos constitucionalmente a todo indivíduo, tais como a dignidade humana, liberdade, direito à saúde, entre outros.

Percebe-se que, o respectivo Tribunal proferiu essa decisão um mês antes do julgamento da controvérsia pelo Supremo Tribunal Federal, o que ratifica mais uma vez o direito da gestante à antecipação terapêutica do parto.

9 A posição atual da Suprema Corte com base no julgamento da ADPF nº 54-8

Há poucos dias, ocorreu o tão esperado julgamento concernente ao aborto de fetos anencéfalos. O Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário responsável pela guarda da Constituição Federal, enfim conseguiu dirimir a controvérsia existente que tinha como parte argüente a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde.

Muito embora, o julgamento da Arguição de Preceito Fundamental, movida pela CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde) tenha se consolidado recentemente com a decisão do Supremo Tribunal Federal a favor da liberação do aborto de fetos anencéfalos, ressalta-se que anteriormente o Ilustre Ministro Marco Aurélio Mello, relator da Ação, já havia se pronunciado em julho de 2004 pela descriminalização do aborto anencefálico.

Há exatamente oito anos atrás a CNTS, trouxe a debate do STF o pleito referente à situação em que se encontrava a mãe de um feto anencéfalo e o médico como terceiro capacitado a auxiliar a gestante na realização do aborto. Os sindicatos dos trabalhadores na saúde do Brasil buscavam o crivo do Judiciário para a interrupção terapêutica do parto, visto a impossibilidade de vida extra-uterina do feto portador desta anomalia.

Na ação movida percebe-se que a finalidade da argüição seria evitar a aplicação de sanções previstas pelo Código Penal aos profissionais de saúde que optam por ajudar as pacientes na interrupção da gravidez anencefálica.

Preliminarmente, a CNTS tratou de distinguir a antecipação terapêutica do parto da conduta abortiva, afirmando que no aborto há o descarte de uma vida em potencial que se estenderá fora do útero materno, diferentemente dos casos de fetos portadores de anencefalia. Em segundo plano, os argumentos trazidos em prol da defesa médica, levavam em consideração a periculosidade em deixar um feto anencéfalo no útero da mãe, o que poderia acarretar em riscos à saúde e a vida da gestante.

Salientou também a CNTS, que forçar a mulher a carregar por nove meses um nascituro que sem sombra de dúvidas virá a óbito, contradiz com os ideais da dignidade da pessoa humana contemplados na Constituição Federal. Isto porque, aguardar o momento do parto provoca à gestante enorme dor, angústia e frustração.

Ainda conforme a arguente, a vedação ao aborto anencefálico além de não contemplar o bem-estar físico, mental e moral da mãe, fere a autonomia da vontade da gestante que tem seu direito à liberdade cerceada.

Entre as pretensões da Confederação, destacava-se a declaração do Supremo Tribunal Federal pela Inconstitucionalidade da aplicação das penas dispostas nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, nas hipóteses de anencefalia. De outra forma, a argüente pleiteava pela descriminalização do aborto anencefálico e a conseqüente extinção de punibilidade.

Destarte, sustentava os profissionais de saúde a necessidade de medida emergencial a ser tomada pela mais alta Instância do Poder Judiciário visando à suspensão do andamento de processos e dos efeitos judiciais decorrentes da aplicação das sanções previstas no Código Penal.

Analisando o pleito, o Ministro Marco Aurélio em substituição ao colegiado acolheu os pedidos da Confederação e concedeu liminar autorizando todas as gestantes de fetos anencéfalos a procederem com a antecipação terapêutica do parto mediante exame médico comprobatório da anomalia fetal.

Em seguida, a decisão do relator foi levada ao plenário para crivo pertinente. Em Outubro de 2004, o colegiado maior concluiu pelo sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, porém cassou a liminar que reconhecia o direito das gestantes a submeter-se, sem a implicação penal, à antecipação do parto.

Percebe-se que, ao conceder medida de natureza acautelatória consolidando o direito da gestante em interromper a gravidez, Marco Aurélio compartilhou dos mesmos ideais de Bittencourt quando explica que o aborto anencefálico: “... não representará uma obrigação – que constrange, humilha e deprime a gestante -, mas, pelo contrário, será apenas uma faculdade que, se não desejar, não precisará usá-la, sem ademais, ficar submetida aos rigores próprios da violação de norma jurídico-penal com suas drásticas consequências punitivas. (2008, p.146)

No entanto, o colegiado ao revogar tal decisão apenas postergou o sofrimento das mães, uma vez que, recentemente deliberou da mesma forma, aprovando por oito votos a dois a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. O STF reconheceu de forma definitiva o direito de escolha da gestante, que poderá optar por manter a gravidez ou interrompê-la, apresentando o devido diagnóstico de médico habilitado sem ter que requerer a autorização da justiça.

A resolução da Suprema Corte opõe o efeito vinculante e erga omnes, o que significa dizer que a possibilidade de antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos passa a valer em todo o país e que todos devem acatar a decisão proferida pelo STF.

Visto as implicações da decisão cabe destacar o inteiro teor dos votos de alguns ministros que corroboram com os apontamentos previstos nos tópicos anteriores.

O relator da ação, o ministro Marco Aurélio afirmou que:

Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal. [...] O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é incompatível com a vida. (autor desconhecido, 2012)

O principal enfoque do voto do jurista foi a impossibilidade de sobrevivência do feto após o parto. A impossibilidade de vida útil extra-uterina do feto em face da anencefalia torna impossível a criminalização do aborto como retratado ao longo do trabalho.

O ministro Luiz Fux pontuou as várias deformidades provenientes da anencefalia ao aduzir que um bebê anencéfalo tem muitas limitações, quase sempre apresentando deficiência visual, surdez, inconsciência e incapacidade de sentir dor. Sendo assim, impedir a interrupção da gravidez de um feto que certamente morrerá equivale a prática de tortura vedada pela Constituição Federal.

Já a ministra Carmem Lúcia fez questão de frisar que a gestante deve ter a liberalidade em decidir qual o melhor caminho a tomar. Desta forma, a jurista elevou os direitos da dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade prevista na Carta Magna.

O atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Ayres Britto definiu a locução dar à luz como dar a vida e não dar à morte, atribuindo à antecipação do parto como uma faculdade da mulher.

Celso de Melo partiu sobre a vertente das excludentes do crime de aborto anencefálico. Para o ministro, o crime de aborto pressupõe gravidez em curso, que o feto esteja vivo e que a morte do embrião deva ser consequência direta de manobras abortivas. Conforme fora explanado anteriormente, quando ocorre a interrupção da gravidez de um feto anencéfalo nota-se a falta desses elementos que caracterizam o crime de aborto.

Por fim, é válido relembrar que a decisão supramencionada passa a ter efeitos somente após a publicação no Diário de Justiça.

Considerações Finais

Embora não seja fácil tratar do tema abordado no presente trabalho, por uma vez envolver valores humanos e conceitos ainda não bem delimitados pelas diversas áreas do conhecimento, juridicamente, verifica-se ser incompatível com a Constituição Federal obrigar a gestante a manter uma gravidez destinada ao insucesso, já que é assegurado a todo ser humano o direito à liberdade de escolha e a uma vida digna.

Diante dos avanços médicos e científicos, atualmente é possível constatar com precisão, diagnóstico de doenças como a anencefalia, o que não ocorria no passado. Desta forma, não se justifica a interpretação da interrupção de gestação de feto anencéfalo apenas sob a ótica da legislação penal, visto que o Código Penal vigente é de 1940, momento em que a sociedade possuía valores diferentes aos da atual; momento em que se pretendia a tutela de bem jurídico diverso do que se pretende hodiernamente. A (re)leitura que deve ser feita pelos tribunais pátrios deve-se pautar numa hermenêutica constitucional, fundamentada em valores humanistas e em consonância com a evolução-transformação da sociedade.

Segundo entendimento mais moderno, não há expectativa de vida do feto portador de tal anomalia. Portanto, a anencefalia torna impossível a consumação do crime de aborto, isto porque dadas as circunstâncias nas quais se encontra o feto, há a impossibilidade de vida útil. Conforme aludido anteriormente, o aborto de fetos anencéfalos é crime impossível e, por conseguinte, atípico, pois no momento em que a gravidez é interrompida o feto já está morto, não mais possuindo atividade cerebral.

Não obstante as religiões possuírem suas crenças, preceitos éticos e convicções, percebe-se que a anencefalia, como tema inserido no campo da saúde e do direito, merece uma interpretação sistemática e uma análise concreta do ponto de vista científico. Observando que a anencefalia trata de uma malformação fetal inviável à vida e que pode colocar em risco a vida da gestante, reafirma-se os direitos da progenitora em detrimento da “vida” do embrião.

No dia 12 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal resolveu a controvérsia e descriminalizou o aborto de fetos sem cérebro, os votos favoráveis dos ministros convalidam os entendimentos inseridos no presente artigo. De acordo com a Suprema Corte o aborto de feto anencéfalo é um fato atípico, sem previsão legal e não há qualquer necessidade de autorização judicial para a interrupção da gravidez pleiteada pela gestante. Ademais, torna-se necessária a tutela da dignidade da gestante, vez que a Carta Magna protege a vida do indivíduo e não uma vida inviável.

Nesse sentido, é um dever do Estado a proteção à integridade física e psíquica da mulher de modo a não constranger a gestante a manter uma gravidez que vai de encontro aos direitos humanos. É de concluir que, a antecipação terapêutica do parto deve ser uma faculdade da mãe, que poderá ou não interromper a gravidez, desta forma são contemplados o direito à liberdade e a autonomia da vontade.

Bibliografia Consultada

ANDRADE, Laís Amaral Rezende de. Aborto, o delito e a pena. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 42, jun. 2000. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2012.

BEZERRA, Marcelle Andrízia. Aborto anencefálico e o ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito, São Paulo, ano 2009, n. 15, ago. 2009. Disponível em: . Acesso em: 04 mar. 2012.

CAMARA, Edson de Arruda: Aborto: humanismo filosófico, lei e medicina. Revista Consulex. [Brasília, DF], ano XIII, n. 293, p. 23, mar. 2012

COSTA, Ive Seidel de Souza. A legalidade do aborto eugênico em casos de anencefalia. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 8, maio – jun. 2007, p. 169-189. Disponível em: . Acesso em: 04 mar. 2012.

DINIZ, Débora; VÉLEZ, Ana Cristina Gonzalez: Anencefalia e razão pública no Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. [São Paulo]. Ano 17, n. 77, p. 219-235, mar – abril. 2009.

MORATO, Eric Grossi: Morte encefálica: conceitos essenciais, diagnóstico e atualização. Revista Médica de Minas Gerais. Minas Gerais, v. 19, n.3, p. 227-235, set. 2009.

OLIVEIRA, Regis Fernandes: Descriminação do aborto: uma visão jurídica. Revista Consulex. [Brasília, DF], ano XIII, n. 293, p. 29-31, mar. 2012.

OLIVEIRA, Rodrigo Gonçalves. Existe este direito de nascer para morrer? Revista Internacional de Direito e Cidadania, [S.l.], ano 2010, n. 6, fev. 2010, p. 193-205. Disponível em: . Acesso em: 04 mar. 2012.

 

PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética, 9. ed. São Paulo: Loyola, 2010.

PONTES, Manuel Sabino. A anencefalia e o crime de aborto: atipicidade por ausência de lesividade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 859, 9 nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 4 mar. 2012.

XAVIER, Valter. Aborto: direito à vida versus direito à liberdade. Revista Consulex, [Brasília, DF], ano XIII, n. 293, p. 27, mar. 2012.

Referências

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

BRASIL. Código Penal (1940). Vade mecum acadêmico de direito. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Vade mecum acadêmico de direito. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009.

BRASIL. Decisão Cautelar do Ministro Marco Aurélio Mello. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2012.

BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o atual Código Penal. Vade mecum acadêmico de direito. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009.

BRASIL. Legislação Complementar nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Vade mecum acadêmico de direito. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Vade mecum acadêmico de direito. 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009.

 

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Habeas Corpus nº 0005182-45.2012.8.19.0000, julgado em 13 de março de 2012. Desembargador: José Muinos Pineiro Filho (relator). Disponível em:

. Acesso em: 10 de maio de 2012.

.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Recurso nº 67/322. Relator Onei Raphael. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2012.

BRASIL. STF vota a favor do aborto de anencéfalos com placar de 8 a 2. Editoria: CAPA, Direito&Justiça. Disponível em: http://jornaldalinha.com/v2/noticias/direitojustica/stf-vota-a-favor-do-aborto-de-anencefalos-com-placar-de-8-a-2/. Acesso em: 19 abr. 2012

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. Vol.1. Parte geral. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

COELHO, Yuri Carneiro. Introdução ao Direito Penal: conceito, teorias da pena, direito penal constitucional, hermenêutica e aplicação da lei penal. [Salvador]: Juspodivm, 2009.

COSTA JUNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

CUTRIM, Raimundo. Temas polêmicos do Judiciário na ótica do presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão. [Brasília, DF], 15 out. 2004. Entrevista concedida ao professor Léo da Silva Alves, do grupo Consulex.

LOPEZ, Ana Carolina Dode. Colisão de direitos fundamentais: direito à vida X direito à liberdade religiosa. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 958, fev. 2006. Disponível em: . Acesso em: 9 maio 2012.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

______________________. Manual de direito penal: parte especial. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

NETO, Pedro Lazarini. Código Penal Comentado e Leis Penais Especiais Comentadas. 3. ed. São Paulo: Primeira Impressão, 2008.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

PINOTTI, José Aristodemo. Anencefalia. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 nov. 2004. Mulher: Saúde & Direitos, p. 294-295. Disponível em:

. Acesso em: 16 mar. 2012.

 

Data de elaboração: maio/2012

 

Como citar o texto:

ROCHA, Manuela Carvalho de Oliveira..A descriminalização do aborto anencefálico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1004. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/2557/a-descriminalizacao-aborto-anencefalico. Acesso em 12 ago. 2012.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.