A medida de segurança é um instituto que, desde o seu surgimento, traz consigo uma série de controvérsias e polêmicas em virtude da natureza peculiar que ostenta. Partindo deste fato incontestável, há de se inquirir: é pertinente que o sujeito, apurada a sua enfermidade mental, sofra qualquer espécie de medida penal? A resposta a tal questionamento, por certo, pressupõe uma breve análise acerca das principais finalidades do Direito Penal e da sua compatibilidade ou não com os objetivos da medida de segurança.

Consiste o Direito Penal no ramo do Direito responsável pela definição de ilícitos penais, crimes ou contravenções, bem como das providências correspondentes à sua prática, penas ou medidas de segurança, com vistas à repressão da criminalidade e à proteção da sociedade.

Além da função retributiva para o exercício da qual foi criado, o Direito Penal apresenta hoje outras três funções de cunho preventivo, caracterizadas pelos objetivos de: restabelecer a confiança no Estado, fortalecendo os valores veiculados pela norma – prevenção geral positiva; intimidar a prática delitiva – prevenção geral negativa; e, por fim, emendar o delinqüente, coibindo-o de perpetrar novos ilícitos – prevenção especial.

É possível afirmar que as duas primeiras funções mencionadas não atingem de qualquer maneira os enfermos mentais, dada a incapacidade destes de compreender o conteúdo amoral das condutas praticadas, bem como de eventuais repressões. A partir desta análise, permite-se asseverar que a medida de segurança apenas se conforma com a última das funções apresentadas – emendar o delinqüente –, uma vez que criada com o fito não de punir, mas de tratar os inimputáveis e semi-imputáveis, neutralizando o suposto perigo destes, para o posterior retorno ao meio social.

Já da época da construção de providências alternativas às penas, defendiam os doutrinadores da Escola Penal Clássica que os portadores de anomalias psíquicas não deveriam ser objeto de quaisquer medidas de natureza penal, as quais, já em sua nomenclatura, traziam, sempre, uma forte carga de punição, castigo. Venceram, todavia, os partidários da Escola Penal Positiva, segundo a qual o Direito Penal deveria ultrapassar os limites do crime e da pena para proteger a sociedade também pela via da prevenção, oferecendo tratamento aos sujeitos considerados periculosos.  

Sucede, contudo, que a prática evidenciou o fracasso do Direito Penal no que tange ao cumprimento de um papel terapêutico, havendo mais uma vez se restringido a repreender, independentemente da ausência de imputabilidade plena de seu alvo.

            Criada para propiciar a recuperação do sujeito e a sua reinserção na comunidade, a medida de segurança vem produzindo, na realidade, efeitos bastante diversos, agravando as condições de saúde do enfermo mental autor de fato previsto como crime e excluindo-o, em regra, definitivamente, do cenário social.

Determinada a aplicação de medida de segurança, o indivíduo deve ser encaminhado a HCTP para o recebimento de assistência. Ocorre, contudo, que, a começar pela Lei de Execução Penal (LEP), no qual é classificado como estabelecimento penal, este hospital, com suas grades, altos muros e numerosos agentes penitenciários, em tudo se aproxima das prisões, nele não se procedendo ao real tratamento dos internos. O Estado, camuflado sob uma disciplina aparentemente terapêutica, restringe-se a guardar os enfermos mentais, em prol da segurança da sociedade.

Deveras, elementos comuns à disciplina dos HCTP associam-se de modo a produzir conseqüências danosas aos pacientes. De um lado, medidas como a padronização da aparência, retirada dos bens pessoais e imposição de um cotidiano rigorosamente controlado findam por amortecer, de modo progressivo, as subjetividades dos pacientes. De outro, o distanciamento da família e dos amigos, a aplicação de remédios e a ausência de cuidados destinados especificamente às necessidades de cada um deles cronificam ainda mais, não raro, a sua enfermidade mental. 

Apartados, sem receber o tratamento que lhes seria devido e convivendo constantemente com as deficiências de seus pares, os internos tendem a ver seus estados de saúde agravados com o tempo, criando-se assim um caminho sem retorno, em que o reconhecimento da cessação da periculosidade se torna cada vez mais distante e, com ela, também a extinção da medida de segurança.

            O sistema, com tal funcionamento, apenas corrobora a desigualdade para com as pessoas acometidas de doenças mentais. Sob a escusa de oferecer-lhes um tratamento diferenciado, os exclui, contraditoriamente, a um só tempo, no âmbito do Direito Penal, da disciplina dedicada aos imputáveis e, no do Direito Sanitário, da proteção recentemente criada na legislação em favor dos portadores de transtornos mentais. Caminha-se, assim, em dupla contramão, adotando-se, ainda hoje, procedimentos punitivo-segregacionistas pensados no século XIX, quando imperavam na sociedade sentimentos apenas de temor e repulsa à enfermidade mental.

A medida de segurança, com todas as deficiências que caracterizam a sua disciplina e aplicação, ao contrariar frontalmente as diretrizes que norteiam a assistência à saúde mental, afastam-se por completo da função terapêutica para a qual foram criadas, consubstanciando, em verdade, lamentavelmente, somente as finalidades aflitivas presentes no Direito Penal.

Como se vê, nenhuma das funções penais apresentadas pode ser vislumbrada na medida de segurança. Impera agora, pois, a necessidade de que os ensinamentos deixados pela Escola Clássica sejam retomados para confirmar o descabimento da aplicação de providências penais àqueles que não possam compreender a reprovabilidade de suas condutas ou de determinar-se conforme a própria vontade.        

Definitivamente, na esteira do que já sustentavam a seu tempo os classicistas, o Direito Penal não pode ser utilizado em face do sujeito que, por faltar-lhe o elemento essencial da culpabilidade, não pratica sequer crime, mas apenas fato previsto como crime, sob pena de, em paráfrase ao que dizia Foucault, olvidarem-se os juízes dos crimes para julgar a alma de quem os cometeu ou, indo mais longe, para julgar a enfermidade de quem os cometeu, tendo em conta ser esta a grande causadora do suposto perigo.

A medida de segurança, pautada pela periculosidade e pela prevenção de um possível ilícito futuro, demonstra-se absolutamente incompatível com o Direito Penal tradicional, erigido sobre as bases sólidas da culpabilidade e do fato perpetrado no passado. Aproxima-se tal instituto, em verdade, das concepções sustentadas pelos precursores do Direito Penal do inimigo, duramente rechaçado, ao menos em tese, no Brasil. 

As incoerências do sistema, desafortunadamente, não param por aí. Tão contraditória é a multicitada providência penal que se vem considerando como grande avanço à sua aplicação a adoção de regras em realidade prejudiciais ao escopo profilático que leva à frente, tais como a previsão de que seja imposta em conformidade com as leis penais vigentes ao tempo do fato ilícito e não ao tempo do julgamento.a fixação de prazos para seu cumprimento, ante tantas outras. Sobre tais normas, advindas da aplicação das garantias da pena à medida de segurança, sustenta-se largamente na doutrina e na jurisprudência serem importantes meios de contenção do Estado em seu modo de atuar junto ao enfermo mental, com as quais se consegue impedir a prática de excessos.

Não se apercebem os partidários de tal entendimento, contudo, que tais conquistas, em verdade, dificultam que a medida de segurança logre êxito em seu objetivo, para o qual deveria adequar-se às condições de saúde de cada sujeito a que fosse aplicada e às necessidades que se apresentassem ao longo do tratamento, revelando-se manifestamente imprudente, assim, a determinação de sua espécie, modo de execução e período de duração antecipadamente, alheia às vicissitudes da realidade.

            As regras penais e de saúde concernentes ao tratamento dos enfermos mentais são notadamente díspares entre si, não se evidenciando possível promover qualquer espécie da assistência à saúde minimamente adequada por meio da aplicação de medida de segurança. Apurada, pois, a enfermidade mental de um sujeito, sensato evidenciar-se-ia que o Estado, no exercício do seu poder tutelar, retirasse-o da esfera penal, submetendo-o a cuidados de natureza estritamente sanitária.

Com efeito, o Direito Penal, como a face mais violenta do Estado, somente utilizado quando insuficiente a adoção de providências diversas, não deveria continuar a intervir sobre a liberdade dos portadores de anomalias psíquicas, para os quais devem ser destinadas políticas públicas de atenção à saúde mental, estas sim realmente aptas a promover assistência terapêutica eficaz e, por conseguinte, o controle de possíveis atos ilícitos. Respeitar-se-ia, destarte, a um só tempo, o mandamento político de subsidiariedade da intervenção penal e os direitos e necessidades dos doentes mentais. 

Eis aí a solução que se apresenta mais adequada. Enquanto não adotada no ordenamento jurídico brasileiro, contudo, é preciso reconhecer a medida de segurança como uma realidade, inserta no sistema normativo e colocada em prática a todo tempo, e dar-lhe a melhor aplicação possível, tirando, como já afirmava Tobias Barreto ao tratar da mesma matéria em 1886, “[...] dos defeitos mesmos o melhor partido possível, estudando-os e supprimindo-os por meio das fontes regulares de direito” [1].

            No Brasil, em 2001, foi aprovada a Lei n.º 10.216, responsável por dispor acerca dos direitos e da proteção dos portadores de transtornos mentais, bem como por reorientar o modelo de assistência em saúde mental. Resultado de um lento caminhar rumo à salvaguarda destes sujeitos historicamente excluídos, o mencionado diploma trouxe ao ordenamento jurídico pátrio importantes modificações no sentido de, negando o caráter profilático do internamento e somente autorizando tal medida quando absolutamente necessária, reconhecer no paciente psiquiátrico um sujeito social, dotado de direitos, e, assim, buscar reinseri-lo em sua comunidade.

            Dada a intrínseca relação entre justiça e saúde que envolve a matéria, é preciso atentar para como o portador de enfermidade mental vem sendo tratado em ambas as searas. Atenta ao processo de inovação marcado pela promulgação da mencionada lei, Tânia Marchewka, na linha do que aqui se sustenta, afirma que “há possibilidade da utilização de alguns recursos que já existem à disposição dos operadores do Direito para possibilitar modificações no contexto das medidas de segurança” [2].

Diante das alterações recentemente realizadas na política nacional de saúde mental, há de se buscar, como se vê, adequar a medida de segurança ao Direito Sanitário, reconhecendo-se, enfim, a dignidade dos enfermos mentais autores de ilícitos-típicos e passando-se a assisti-los de maneira terapeuticamente apropriada, em observância ao que se pensa e desenvolve hoje no campo sanitário, de modo a pôr termo à aplicação de técnicas desenvolvidas pela psiquiatria séculos atrás, não mais condizentes com a realidade. 

REFERÊNCIAS

BARRETO, Tobias. Menores e Loucos em Direito Criminal. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.

ANTUNES, Maria João. Discussão em torno do internamento de inimputável em razão de anomalia psíquica. Revista Brasileira de Ciência Criminais, São Paulo, ano 11, n. 42, p. 90-102, jan./mar., 2003. 

BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral, Tomo III: Pena e Medida de Segurança. 5. ed. rev. e at.. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

CORREIA, Ludmila Cerqueira. Avanços e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delitos. 2007. 174 f.. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2007. Disponível em: <http://www.aatr.org.br>. Acesso em: 05 set. 2012.

COSTA, Álvaro Mayrink. Medidas de Segurança. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v.10, n.37, p. 17-40, 2007.

FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

FOUCAULT, Michel. História da loucura. 8. ed.. São Paulo: Perspectiva, 2009.

JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito Penal da Loucura. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2008.

MARCHEWKA, Tânia Maria Nava. As contradições das medidas de segurança no contexto do direito penal e da reforma psiquiátrica no Brasil. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, ano 1, n. 00, p. 175-189, 2004.

MATTOS, Virgílio de. Crime e Psiquiatria - Uma saída: preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

  

[1] BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 2.

[2] MARCHEWKA, Tânia Maria Nava. As contradições das medidas de segurança no contexto do direito penal e da reforma psiquiátrica no Brasil. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, ano 1, n. 00, 2004, p. 188. 

 

 

Elaborado em fevereiro/2012

 

Como citar o texto:

ARAÚJO, Carla Graziela Costantino de..Medida de Segurança: o fracasso da aplicação de uma medida pretensamente curativa no âmbito do Direito Penal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1110. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/2714/medida-seguranca-fracasso-aplicacao-medida-pretensamente-curativa-ambito-direito-penal. Acesso em 11 out. 2013.

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