1.1 CONCEITO

Para se compreender o sentido de “ônus” impõe-se contrapô-lo ao de “obrigação”. Isto se explica pela semelhança entre os institutos, bem como por serem vulgarmente utilizados como sinônimos, embora divirjam em essência e exerçam funções diversas, especialmente no âmbito jurídico.

O conceito de ônus  não se confunde com obrigação . Nessa última, verifica-se uma relação de bilateralidade, na qual uma das partes tem o direito de exigir da outra a realização de determinada conduta, consistente no adimplemento da prestação devida, sob pena de lhe ser imposta a execução pelo Estado-juiz. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona definem obrigação como “a própria relação jurídica pessoal que vincula duas pessoas, credor e devedor, em razão da qual uma fica obrigada a cumprir uma prestação patrimonial do interesse da outra” (GLAGLIANO, PAMPLONA, 2005, p. 10).

O ônus, por sua vez, relaciona-se com a noção de fardo, peso ou encargo. Nas exatas palavras de Alexandre Câmara, “Obrigação é imperativo do interesse alheio; ônus, o imperativo do interesse próprio” (2005, p. 10).

No âmbito jurídico, diz respeito à satisfação de um interesse do próprio onerado que, ao desincumbir-se do seu encargo, atende a um requisito capaz de lhe conferir uma posição de vantagem processual.

Tem dever, assim, no processo, a parte de comportar-se com lealdade (art.14, II do CPC); não a tem, porém de responder (= contestar, excepcionar, reconvir), senão simples ônus. Com efeito, o demandado que não responda terá contra si o peso de ver reputados como “verdadeiros os fatos afirmados pelo autor” (art.319, do CPC), segundo a severa regra sobre o efeito material da revelia hoje acolhida pelo nosso Código de Processo Civil (DALL’ AGNOL JR., 2001, p. 92-93).      A satisfação do ônus atua, por conseguinte, no campo da probabilidade; mas precisamente do risco. Atender a um ônus, embora seja uma conduta que possa favorecer aos interesses do onerado, não é capaz de, por si só, lhe garantir o êxito final na demanda. De modo inverso, o não atendimento ao ônus implica numa desvantagem, num maior risco de sucumbência ao final do processo, o que, contudo, pode não sobrevir.

A realização do ônus, portanto, consiste numa forma de ampliar a probabilidade de vencer a demanda. Neste sentido, Robson Renauti Godinho (2006, p. 301) esclarece:

O descumprimento do ônus da prova não implica num julgamento desfavorável – assim como seu cumprimento não significa necessariamente acolhimento judicial -, já que a prova suficiente pode ser trazida ao processo pela outra parte, pelo próprio juiz ou pelo Ministério Público, mas pode significar aumento do risco de uma decisão desfavorável, razão pela qual as partes devem estar cientes das regras de distribuição.

Divergem os institutos, ainda, quanto às conseqüências do seu descumprimento, já que “a obrigação existe quando a inatividade dá lugar a uma sanção jurídica (execução ou pena); se, ao contrário, a abstenção, em relação a um ato determinado, faz perder somente os efeitos úteis do mesmo, nos encontramos frente à figura do ônus” (PINA, 1975, p. 71).  Wilson Alves de Souza (1999, p. 241) aborda a questão da seguinte forma:

[...] (o ônus) não se trata de dever jurídico, porque este corresponde sempre ao direito de outrem (bilateralidade), de modo que o seu não cumprimento deve acarretar uma sanção, ao contrário daquele, em que não há correspondente direito nem possibilidade de sanção para a hipótese de quem tem o encargo dele não se desincumbir

Outra relevante diferença entre ônus e obrigação é a de que a ninguém é dado o direito de compelir o onerado a satisfazer o ônus que lhe corresponde. Primeiramente porque, divergindo do sentido de obrigação, o ônus não se relaciona com o direito a uma prestação cujo inadimplemento faz surgir o correlato direito a exigir, coercitivamente, o seu respectivo cumprimento. A satisfação do ônus se trata de decisão que integra o âmbito de discricionariedade individual e a sua não satisfação implica num risco que será suportado por quem dele deveria se desincumbir (CREMASCO, 2009, p. 25).

O “dever” relacionado ao ônus não é jurídico, mas ligado à noção de interesse.

O próprio sujeito é livre para organizar sua conduta como melhor lhe pareça, e, por conseguinte, também eventualmente em sentido contrário ao previsto pela norma. A não observância desta última, pois, não conduz a uma sanção jurídica, mas econômica; e, precisamente a não obtenção daquele fim, conduzirá, portanto, a uma situação de desvantagem para o sujeito titular do interesse tutelado (MICHELLI, 1989 apud CARNEIRO NETO, 2009, p.105).

Durval Carneiro Neto arremata o tema afirmando o seguinte:

[...] concluímos que os comportamentos dos litigantes não significam deveres de um, correspondentes a direitos de outro, mas sim, encargos derivados dos seus próprios interesses e que surgem no decorrer do processo e a depender das contingências de cada procedimento. (CARNEIRO NETO, 2009, p.105).

Uma última distinção entre ônus e obrigação é observada por Arruda Alvim (2000, p. 476), que seria “a circunstância de esta última ter um valor e poder, assim, ser convertida em pecúnia, o que não ocorre no que tange ao ônus”.

Já no âmbito probatório, o ônus pode ser definido como “a situação jurídica em que se encontra a parte de demonstrar a verdade dos fatos que alega no processo com a conseqüência de ter-se tais fatos como inexistentes caso tal demonstração não ocorra”. (SOUZA, 1999, p. 241). Ou seja, a vantagem processual almejada, neste caso, consiste na demonstração, pelas partes, das alegações fáticas que lastreiam seus interesses processuais. 1.2 DISTINÇÃO ENTRE ÔNUS PROBATÓRIO SUBJETIVO E OBJETIVO.

Doutrinariamente, divide-se o ônus em subjetivo e objetivo. O ônus subjetivo se dirige às partes. É uma norma de conduta, no sentido de orientar a atividade probatória dos sujeitos processuais, servindo como resposta à pergunta sobre “a quem cabe a produção da prova”. Refere-se à necessidade jurídica de as partes subministrarem toda a prova necessária para demonstrar suas alegações. (LÉPORI, 2004, p. 55).

Quando a lei cuida de distribuir entre demandante e demandado o encargo de provar os fatos necessários ao deslinde da matéria controvertida, como preenchimento de uma das condições para obter uma decisão favorável, está, em verdade, fixando o ônus subjetivo da prova. Trata-se, portanto, da responsabilidade dirigida às partes para que tragam ao processo provas relativas a determinadas alegações controvertidas, como condição para assumirem posição de vantagem processual. Destarte, interessa a cada uma delas saber quais são os fatos que devem provar, a fim de que possam desincumbir-se deste ônus.

Nestes termos, o ônus subjetivo possui estreita ligação com o princípio da colaboração processual, pois visa incentivar às partes a trazerem ao processo o maior número de provas que entenderem relevantes. É um reforço à conduta desejada, sob a promessa de aumentar as possibilidades de vencer a demanda.

Barbosa Moreira (1988, p. 74) entende tratar-se o ônus subjetivo de um estímulo às partes que, ao desejaram obter a vitória, se esforçam para provar as alegações fáticas cujo reconhecimento lhes aproveitar:

[...] o maior interessado em que o juiz se convença da veracidade de um fato é o próprio litigante a quem aproveita o reconhecimento dele como verdadeiro. É esse interesse que estimula a parte a atuar no sentido de persuadir o julgador mediante as provas de que o fato realmente ocorreu. Assim, o desejo de vencer o litígio cria, no litigante, a necessidade de pesar os meios de que se pode valer em seu trabalho de persuasão e esforçar-se para que esses meios sejam efetivamente usados na instrução da causa.  

Consiste, também, numa forma de conferir maior transparência e segurança jurídica às relações processuais, uma vez que cada parte sabe como deve se portar no curso do processo e quais as possíveis conseqüências de eventual inobservância desta regra de conduta. “Desse modo, autor e réu têm conhecimento, a priori, daquilo que deve ser provado por um e por outro”. (CREMASCO, 2009, p. 25).

O ônus objetivo, ao seu turno, decorre da vedação ao non liquet (veda-se ao juiz a possibilidade de concluir o processo sem proferir uma decisão). Destina-se a responder a pergunta sobre quem deve suportar as conseqüências da não produção de determinada prova.

A sua função ganha relevo quando, a despeito das presunções, do poder instrutório do magistrado e da conduta das partes, o processo chegar ao seu final sem que os fatos relevantes estejam esclarecidos. Nesse caso, depara-se o juiz com a vedação ao non liquet, de modo que ainda que os elementos probatórios necessários à instrução do feito não sejam colacionados aos autos, impossibilitando o magistrado de formar o seu convencimento, está este adstrito a proferir uma decisão fundamentada.

Quando o juiz, no momento de sentenciar, verificar a ausência de prova essencial ao deslinde da questão e a impossibilidade de determinar a sua produção, decidirá com base no ônus da prova, que nesse momento assume a condição de regra de julgamento, destinada, justamente, a socorrer o magistrado quando este não encontrar elementos probatórios suficientes para lastrear seu convencimento.

A persistência de um insuficiente material probatório, portanto, compele o juiz a lançar mão das normas de distribuição do ônus da prova, espécie de ultima ratio que lhe permite sair de uma situação embaraçosa, constituído verdadeira tábua de salvação” (GODINHO, 2006, p. 300-301).

O ônus objetivo, neste sentido, consiste numa distribuição dos riscos, indicando quem suportará as conseqüências desfavoráveis de não se haver provado o fato que lhe aproveitaria.  

Conforme dito, diversamente do que ocorre com o subjetivo, o ônus objetivo encerra uma regra de julgamento, pois se dirige ao juiz, que, no momento de sentenciar, aplicará a regra em desfavor de quem não se desincumbiu do respectivo ônus. Noutras palavras, diante da vedação ao non liquet, resta ao juiz julgar contrariamente a quem deveria provar e não o fez, desde que a prova ausente seja fundamental ao deslinde da controvérsia.

Afirma-se que a regra de ônus da prova se destina a iluminar o juiz que chega ao final do processo sem se convencer sobre como os fatos se passaram. Nesse sentido, a regra de ônus da prova é um indicativo para o juiz se livrar do estado de dúvida e, assim, definir o mérito. Tal dúvida deve ser paga pela parte que tem o ônus da prova.

Não se pode perder de vista, contudo, que o ônus da prova é regra de julgamento subsidiária, condicionada ao estado de dúvida do juiz no momento de proferir sua decisão. Outrossim, estando a demanda satisfatoriamente instruída, não se justifica a sua aplicação.

1.3 ÔNUS OBJETIVO COMO REGRA SUBSIDIÁRIA DE JULGAMENTO

O ônus probatório exerce a função precípua de suprir a ausência da prova, permitindo que o juiz decida em desfavor de quem não se desincumbiu do encargo que lhe tocava. É possível dizer, então, que somente se decide com base no ônus da prova quando a demanda não se encontrar instruída com elementos probatórios suficientes ao convencimento judicial.

Para que incida a regra de ônus da prova, contudo, não basta a ausência de prova fundamental ao julgamento do magistrado, mas também a impossibilidade de sua produção. Isto porque, em razão dos poderes instrutórios do juiz, especialmente os indicados no art.130 do CPC, sendo possível a produção da prova, o magistrado deverá determinar a sua produção inclusive de ofício. Repita-se que verificando o juiz que a demanda foi instruída de modo satisfatório, deverá decidir com base nas provas colacionadas, não havendo espaço para aplicação da regra de ônus da prova.

Sobre esse aspecto, é importante ressaltar que não prospera a idéia de que o poder instrutório do juiz suprimiria a importância do ônus da prova enquanto regra de julgamento, pois, conforme dito, para a sua aplicação não basta a ausência da prova, mas também a impossibilidade de sua produção, uma vez que o juiz pode de ofício, se for o caso, determinar a produção das provas necessárias à instrução da causa.

Ao lado da satisfatória instrução da causa, há uma hipótese de mitigação do ônus da prova como regra de julgamento: nas decisões provisórias, nas quais o juiz pode formar sua convicção apenas com base na verossimilhança do direito sustentado pelo autor.  Neste caso, o autor depara-se com um “ônus mínimo”, correspondente à demonstração da verossimilhança de suas alegação.

Em tais decisões, por razão de urgência ou dano eminente ao direito, o juiz encontrar-se legalmente autorizado a fundamentar seu convencimento, apenas, na verossimilhança (através de um juízo de probabilidade), sendo necessária, posteriormente, a confirmação desta decisão por outra, desta vez definitiva já que formada por cognição exauriente. Toda a questão passa, portanto, pelo grau de convencimento exigido para que o juiz possa proferir uma decisão. Sobre o tema, Luiz Guilherme Marinoni esclarece:

Em um caso como esse, a ausência de convicção plena ou de verdade não leva o juiz a um estado de dúvida, que teria que ser dissipada através da aplicação da regra do ônus da prova como “regra de decisão”, julgando-se improcedente o pedido pelo motivo de o autor não ter se desincumbido do ônus probatório. E isso por uma razão bastante simples: é que o juiz, nesses casos, não finaliza a fase de convencimento em estado de dúvida. Ora, estar convicto de que basta a verossimilhança não é o mesmo que estar em dúvida .

1.4 POLÊMICA SOBRE A VISÃO BIPARTIDA DO ÔNUS DA PROVA.

Questão tormentosa diz respeito à visão bipartida do ônus da prova. Para muitos autores, a distinção entre ônus subjetivo e objetivo não se justificaria, pois, em última análise, somente haveria utilidade prática na dimensão objetiva de ônus. Para tanto, utilizam como argumento o fato de que o critério subjetivo, quando em cotejo com o princípio da aquisição da prova, os poderes instrutórios do juiz e os critérios de valoração da prova para a formação do convencimento, se tornaria irrelevante.

Nas palavras do professor Wilson Alves de Souza, “o modo de colocar o problema tem pertinência, mas não se justifica a diferença de conceitos. É que, conquanto seja certo que ônus da prova é atribuído pela norma jurídica a determinada parte, esta, como observa SALVATORE SATTA, pelo princípio da aquisição, da prova não dispõe, de modo que a prova pode ser produzida por uma parte e beneficiar o adversário”. Para Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery, “O sistema não determina quem deve produzir a prova, mas sim que assume o risco caso ela não se produza” (NERY JUNIOR, NERY, 2006, p. 531). Fredie Didider, Paula Sarno e Rafael Oliveira sustentam que “as regras de distribuição do ônus da prova são regras de juízo: orientam o juiz quando há um non liquet em matéria de fato e constituem, também, uma indicação às partes quanto à sua atividade probatória”. (DIDIER, BRAGA, OLIVEIRA, 2008, p.75).

Em favor da importância do ônus subjetivo, encontra-se o argumento de que a existência do ônus objetivo assume uma posição de dependência lógica em relação ao ônus subjetivo, pois, aplicando-se o ônus como regra de julgamento, tem-se que a alguém seria imputada a ausência de determinada prova, e este “alguém” será identificado a partir do ônus subjetivo.  Neste sentido, Eduardo Cambi afirma:

Com efeito, o aspecto objetivo do ônus da prova está intimamente ligado com o aspecto subjetivo, sendo ambos necessários para a compreensão do instituto ônus da prova. Afinal, se pelo princípio da aquisição processual, para o juiz somente importam os fatos que foram demonstrados, não quem os demonstrou, quando o juiz não tem certeza sobre esses fatos, deve determinar quem sofre as conseqüências decorrentes da falta de prova, necessitando, para isso, recorrer ao aspecto subjetivo do ônus da prova.  (2001, p. 41).

Artur Thompsen Carpes ao defender a importância do ônus subjetivo, assevera que este

[...] permite dar conhecimento, a cada parte, de sua parcela de responsabilidade na construção do contexto probatório [...]. Com efeito, a regra do ônus da prova não se afigura tão somente uma regra de julgamento para o caso de haver incerteza no momento de julgar. É regra, portanto, que também se liga à organização da instrução processual, porque define os contornos da atividade probatória das partes. Mediante o conhecimento da regra, portanto, tanto a parte-autora quanto a parte-ré desenvolvem seus esforças na busca das provas que terão de empreender a fim de lograr êxito na demonstração dos fatos de seu interesse. (CARPES, 2007, p. 34-35).

Sucede que o ônus subjetivo somente repercute no processo de maneira indireta, ou seja, na medida em que influi psicologicamente no comportamento das partes, refletirá no melhor desempenho da atividade probatória desenvolvida por estas, o que não possui uma direta relação com a possibilidade de as provas carreadas aos autos serem, efetivamente, capazes de lastrear a convicção judicial. Isto porque para o processo pouco importar qual a motivação ou o esforço que balizou a conduta das partes, sendo relevante apenas o produto final da atuação delas. “Uma vez trazida a prova ao feito, ela se desgarra daquela que a produziu, passando a fazer parte do processo – é o que dispõe o princípio da aquisição processual ou da comunhão das provas”. (DIDIER, BRAGA, OLIVEIRA, 2008, p. 74).

Nas exatas palavras de Barbosa Moreira:

Para os efeitos práticos, o que interessa não é saber se a parte onerada conseguiu ou não carrear para os autos os elementos necessários à demonstração do fato a ela favorável; o que interessa é, sim verificar se tais elementos foram carreados para os autos, por obra da parte onerada ou de outrem, pouco importa. [...]. Se persistiu a obscuridade, em nada aproveita a parte onerada alegar que fez, para dissipá-la, tudo que estava ao seu alcance, e, portanto, nenhuma culpa se lhe pode imputar. Inversamente, se a obscuridade cessou para dar lugar à certeza, em nada prejudica a parte onerada a circunstância de que ela própria não tenha contribuído, sequer com parcela mínima, e ainda que pudesse fazê-lo, para a formação do convencimento judicial, devendo-se o êxito, com exclusividade, a outros fatores. (1988, p. 75).  

De fato, a importância do ônus subjetivo no processo é mais psicológica que jurídica.  Isto se explica pelo fato de o ônus subjetivo ou formal (denominação dada por Barbosa Moreira) se dirigir às partes, buscando motivá-las a colaborar com o juiz na instrução da causa e transferindo para estas o interesse de desenvolver bem a sua atividade probatória. “Embora a regra de julgamento constitua a essência do fenômeno, o risco da insuficiência de provas para a formação da convicção judicial projeta-se sobre as partes, estimulando-as à produção”. (PACÍFICO, 2000, p. 142).

Destarte, o ônus da prova, em última análise, não determina quem deve produzir a prova, mas quem suportará as conseqüências pela sua não produção. É dizer, a parte onerada pode ter o seu encargo satisfeito pela parte adversa ou pelo próprio juiz, tendo desincumbindo-se do seu ônus sem praticar nenhuma conduta nesse sentido.

Pelo princípio da aquisição processual, estando a demanda satisfatoriamente instruída, irrelevante será perquirir o esforço probatório das partes, inclusive em razão dos poderes instrutórios do juiz, que poderá trazer ao processo, por exemplo, prova que aproveita à parte onerada. Ademais, saber sobre quem recairá o ônus pela insuficiência de provas é tarefa dirigida ao juiz, que buscará no ordenamento norma que oriente sua decisão em desfavor do onerado – regra de julgamento, portanto.

2 MODELOS DE DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA

2.1 FUNDAMENTOS PARA A DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA

Para o professor Wilson Alves de Souza, o fundamento da repartição do ônus da prova está no princípio da igualdade das partes, pois, assim como os deveres e obrigações, deve o ônus da prova ser repartindo igualmente entre estas.

Inegavelmente, num Estado Constitucional de Direito, deve-se conferir às partes tal igualdade, sob pena de lhes ser negado, na prática, o acesso substancial à justiça. É desta noção de igualdade que decorre a necessidade de se fixar critérios racionalmente legítimos de distribuição do ônus da prova, necessidade esta que já era percebida no próprio Direito Romano.

Neste sentido, Durval Carneiro Neto esclarece:

A busca destes critérios racionais sempre foi objeto da Ciência do Direito ao longo de sua evolução e inspirou legislações em diversos ordenamentos jurídicos positivos, tradicionalmente centrados na adoção de modelos rígidos e apriorísticos de fixação do ônus. Foram várias as teorias que buscaram fixar parâmetros lógicos de distribuição do ônus da prova, a começar pelo Direito Romano. (CARNEIRO NETO, 2009, p.108).

Isto porque na ausência ou insuficiência de provas, o órgão julgador sempre terá que se valer de um mecanismo formal de julgamento, consistente em desfavorecer aquele que não se desonerou de realizar a prova que lhe cabia (CARNEIRO NETO, 2009, p.108).

Não é por outra razão que os critérios de distribuição do ônus da prova devam se relacionar com o sentimento de justiça vigente nas comunidades em que são aplicados. Decorre, portanto, de uma escolha eminentemente jurídico-positiva, pois não há um modelo universal de distribuição de tal ônus, uma vez que o critério se relaciona com o ideal de aproximação da verdade e da justiça de cada comunidade, cujo fim último é a pacificação social. O sistema adotado em cada ordenamento decorre, portanto, de uma decisão política do legislador. (CARNEIRO NETO, 2009, p.107).  

2.2 PRINCIPAIS MODELOS DE DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA

Sobre este tema, importa ressaltar a dificuldade de se enumerar as diversas teorias sobre distribuição do ônus da prova. Além de serem variadas e em grande número, muitas delas são meras aplicações ou releituras de outras, de maneira que uma pretensa apresentação do tema, inevitavelmente, encontrará variantes na abordagem de outros autores.

Neste ponto, será adotada, como referência, as lições de Inés Lépori White (2004, p. 57-59), que identifica nove principais teorias. São elas: a) a que impõe ao autor o ato de provar; b) a que impõe a quem afirma o ônus de provar, c) teoria que impõe ao autor o ônus da prova dos fatos que fundamentam a pretensão, e ao réu os que fundamentam a exceção, d) teoria dos fatos normais como norma e dos anormais como exceção, e) teoria que impõe a prova a quem pretende inovar, f) teoria de Chiovenda, inspiradora do legislador do CPC de 1973, e defende a distribuição do ônus conforme a natureza dos fatos probandos, g) teoria de Micheli, que distribui o ônus segundo o efeito jurídico perseguido pelas partes h) teoria de Rosenberg, segundo a qual cada parte tem ônus de provar os pressupostos fáticos da norma jurídica que lhe é favorável i) teoria de Devis Echandía, que preceitua que o critério de distribuição do ônus da prova deve levar em conta os efeitos jurídicos buscados pelas partes.

Segundo a autora, a teoria que impõe ao autor o ato de provar, inserta na máxima onus probandi incumbit actori, foi herdada do direito romano e se funda em regras que, embora pouco numerosas, são impregnadas de lógica. Ademais, tais regras tiveram grande força durante muito tempo, avançando até o século XX.

Para esta teoria, deve-se levar em conta a posição processual ocupada pela parte, cabendo ao autor, de modo absoluto, a prova quanto a todo e qualquer fato aduzido no processo. Assim, não basta que ele demonstre a ocorrência dos fatos constitutivos do seu direito, mas também a inocorrência dos fatos impeditivos, extintivos e modificativos.

Não é difícil concluir que este critério gerava inúmeros entraves à consecução dos direitos do autor, pois este, não raras vezes, deparava-se com probatios diabolicas . Por esta razão, a regra acabou sendo temperada pela de que a exceção oposta pelo demandado o equipararia ao autor quanto aos fatos alegados em sua defesa, cabendo-lhe, por conseguinte, o ônus de prová-los (CREMASCO, 2009, p. 42-43).

É neste momento que surge a regra segundo a qual quem afirma a existência de um fato deve prová-lo, liberando-se quem o nega. Esta segunda teoria decorre da máxima romana ei incumbit probatio qui dicit non qui negat e encontra seu maior representante em Bethmann-Howlleg (CREMASCO, 2009, p. 45). Conforme estabelece a teoria, atribuiu-se o ônus da prova a quem afirma o fato e não a quem o nega, ignorando a hipótese de que este último possa se encontrar em melhores condições de demonstrar a sua inocorrência.   Diferentemente da teoria anterior, pouco importa a posição processual ocupada pelas partes, sendo relevante, apenas, saber qual delas é a responsável pela alegação ou negação do fato que deve ser objeto de prova.  

Esta concepção, como é de se notar, está impregnada da idéia de que “fato negativo” não se prova. Partindo desta premissa, impõe a quem alegou a ocorrência do “fato positivo” o ônus de sua prova. Sucede que a todo fato negativo determinado há um fato positivo correspondente, razão pela qual, face à impossibilidade de provar o fato negativo, impende se provar a afirmativa correspondente.

A questão é bem tratada pelos professores Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2008, p. 85-8), que diferenciam negativa absoluta da negativa relativa.

Para os autores, a negativa absoluta diz respeito a um não-fato, cuja afirmação é indefinida no tempo e/ou no espaço. Já a negativa relativa é definida no tempo e no espaço, de modo que a não ocorrência de um fato pode ser demonstrada através da prova da ocorrência de outro fato.  Este fato que faz prova da não ocorrência de outro é o famoso “álibi”, normalmente utilizado pela defesa em processos criminais, o que não afasta a sua utilidade também no processo civil.

Destarte, somente as negativas absolutas, via de regra, são insuscetíveis de prova. Não há como alguém provar que nunca esteve no Japão, por exemplo. Poderá provar, contudo, que não esteve no Japão em 17 de agosto de 2008, pois durante todo este dia esteve realizando uma cirurgia plástica no Brasil. Assim, à negativa relativa sempre haverá um fato positivo correspondente que poderá ser objeto de prova.

Neste sentido, Moacyr Amaral dos Santos (1977, p. 132) esclarece:

Certamente, quando a negativa é pura e simples, absoluta ou indefinida, a situação criada pelo réu é quase impossível de ser por ele mesmo provada. Assim, quando Tício, contestando ação de cobrança que Caio lhe intenta, apenas se limita a dizer coisas mais ou menos parecidas com esta – “não devo” ou “nunca lhe devi” – a Tício será muito difícil fazer prova de sua alegação. Por outro lado, como ao autor cumpre sempre, em regra, dar a prova de sua ação, sob pena de, arcando com os riscos, decair dela, nada mais natural e lógico que lhe caiba o ônus de provar a afirmação negada pelo réu.

Há hipóteses, contudo, em que é possível se fazer prova de negativas absolutas. Além de poder ser provada por confissão, existem formas de se demonstrar, em alguns casos, a inocorrência de fatos indeterminados. Um exemplo disto é quando alguém afirma que nunca esteve na academia de ginástica “X”, onde só é possível entrar com um cartão magnético que registra o nome das pessoas que acessam o local.  Não estando o nome do indivíduo na relação de pessoas que nela já adentraram, prova-se a não ocorrência do fato, ou no caso de fornecimento, pelo ente público, das chamadas “Certidões Negativas de Débito”.

Percebe-se, por conseguinte, a insustentabilidade da teoria que atribui o ônus da prova a quem afirma um fato desonerando quem o nega, pois, freqüentemente, a negação ou afirmação de um fato é uma questão meramente semântica, já que negar um fato é, muitas vezes, afirmar o contrário (negar a vida é afirmar a morte; negar a capacidade é afirmar a incapacidade; negar a regularidade é afirmar a irregularidade...).

Ademais, não raras vezes quem nega um fato possui melhores condições de provar que este não ocorreu que o inverso, como na hipótese de ser mais fácil fazer prova da ocorrência do álibi que do fato acusatório.

Feitas estas observações, cumpre analisar a teoria que impõe ao autor o ato de provar os fatos fundamentais à sua pretensão e o réu, os da exceção. Para Inés Lépori, esta versão é muito similar à anterior e tal como ela admite inúmeras exceções, dificultando a aplicação do princípio geral contido no seu enunciado.

Já a teoria que prevê os fatos normais como regra e os anormais como exceção afirma que os fatos normais se presumem, cabendo a prova a quem alegar um fato anormal. Nada mais é que a utilização das máximas da experiência como forma de distribuição do ônus da prova.

Esta visão concebe, como fato normal, a liberdade jurídica, econômica, física, o respeito aos direitos alheios e o cumprimento à lei. Quem alegar situação lesiva a tais direitos deverá assumir o encargo de prová-la. Amplia-se, com esta teoria, o âmbito de discricionariedade do juiz e dela decorre a regra que impõe a prova a quem pretende inovar, em quase nada divergindo da anterior.

Em seguida surge a teoria de Chiovenda, cuja principal contribuição foi distribuir o ônus da prova de acordo com a natureza do fato a ser provado, deixando a distribuição de se referir apenas à posição processual das partes. Sendo o fato constitutivo, deverá ser provado pelo autor. Se for extintivo, impeditivo ou modificativo, caberá a sua prova ao réu.

Indubitavelmente, esta teoria inspirou o legislador processualista de 1973, de modo que segundo ao art. 333 do CPC, cabe ao autor a prova do fato constitutivo do seu direito, e ao réu a dos fatos extintivos, impeditivos e modificativos. Conjuga-se o critério da posição processual das partes com o da natureza dos fatos alegados.

Dada a sua relevância, especialmente por ter sido adotada no Código de Processo pátrio, é necessário um aprofundamento na teoria, devendo-se analisar a sua classificação quanto aos fatos probandos (constitutivo, extintivo, impeditivo e modificativo).

O fato constitutivo compõe o suporte fático sobre o qual se pretende a incidência de determinada norma jurídica, para que dele se extraia o direito alegado. O fato constitutivo integra a chamada causa de pedir remota do direito de ação. Ou seja, o autor alega a ocorrência de determinados fatos da vida que, por entender serem juridicamente relevantes, pretende extrair deles a conseqüência jurídica almejada.  O fato constitutivo, por tanto, é o que dá origem a um direito.

Só terá o réu o ônus de provar os fatos novos por ele aduzidos através da chamada defesa indireta. Estes fatos podem ser extintivos, impeditivos ou modificativos do direito do autor.

Ao alegar a ocorrência de um fato extintivo, não está o réu negando a ocorrência do fato constitutivo, está, antes, pressupondo-o. Fala-se que ao fato constitutivo sobreveio outro que lhe retirou a eficácia, como é o caso de o réu alegar que devia, mas já pagou.

O fato impeditivo, intuitivamente, impede que do fato constitutivo nasça o direito. Admite-se a ocorrência do fato constitutivo, mas nega-lhe a produção dos seus efeitos e o surgimento do direito dele decorrente. Fato impeditivo é a ausência de um requisito de validade do fato gerador do direito.

Por fim, o fato modificativo é aquele que admitindo o fato constitutivo, afirma ter ocorrido fato outro que modificou os efeitos que decorreriam do fato constitutivo.

Esta teoria, dada a sua importância, além de se refletir na técnica de distribuição do ônus da prova adotada pelo Código de Processo Civil brasileiro, influenciou a doutrina e jurisprudência de diversos países.  

Micheli, por sua vez, defende a distribuição da carga probatória segundo o efeito jurídico perseguido pelas partes, de modo que quem pretende determinado efeito jurídico deverá provar a ocorrência de seus pressupostos fáticos. Não difere muito o critério de Rosenberg, segundo o qual se impõe a cada uma das partes o ônus de provar os pressupostos fáticos da norma jurídica que lhe é favorável. Também a teoria de Devis Echandía coincide, substancialmente, com as de Micheli e Rosenberg, consistindo, basicamente na soma da teoria destes dois, preceituando que o critério de distribuição do ônus da prova deve levar em conta os efeitos jurídicos buscados pelas partes e estes efeitos jurídicos em relação à norma jurídica que o consagra.

A despeito do valor de cada uma das teorias clássicas, percebeu a jurisprudência e doutrina mais atentas que a fixação prévia e abstrata da distribuição do ônus da prova, a depender das peculiaridades da relação jurídica de direito material discutida em juízo, comprometia a igualdade processual das partes e dificultava a adequada instrução da causa. Inúmeras eram as situações em que, de acordo com uma distribuição apriorística do ônus da prova, deparava-se, uma das partes com probatios diabolicas.   Verifica-se então que os modelos clássicos de distribuição do ônus da prova, por uniformizarem procedimentos sem atentar para as particularidades do direito material tutelado, deixaram transparecer a intensa influência exercida pelo pensamento defendido na escola sistemática, a seguir analisada. 3 A OPÇÃO LEGISLATIVA BRASILEIRA

3.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS QUE INFLUENCIARAM O LEGISLADOR PÁTRIO

O Estado liberal, como bem analisa Luiz Guilherme Marinoni (2009), preocupado em garantir a liberdade dos cidadãos, promoveu uma rígida limitação dos seus poderes de intervenção na esfera privada. De um lado, tinha-se uma lei “onisciente” e, por isto, geral e abstrata, de outro, uma atividade jurisdicional limitada a afirmar o conteúdo desta lei.

Inegavelmente, a visão individualista e eminentemente patrimonial consagrada nesse modelo de Estado repercutiu na configuração dos institutos processuais, razão pela qual ainda hoje se verifica o receio em conferir ao juiz o poder-dever de, a partir de uma margem interpretativa mais ampla, conformar o processo às particularidades das demandas que lhe competir julgar. A influência deste pensamento é verificada na escolha, pelo legislador processualista brasileiro, de um modelo de distribuição do ônus da prova que, segundo letra fria da lei, não confere ao juiz a possibilidade de adequá-lo às particularidades de cada processo.

A escola exegética, inerente ao período de supremacia do pensamento liberal (por sustentar que cabia ao intérprete extrair o sentido literal do texto legal, numa tentativa de limitar os poderes do juiz), acabou por ser superada pela escola italiana denominada histórico-dogmática, ou sistemática, que, a partir da obra de Lodovico Mortara, evidenciou a insuficiência dos métodos até então adotados.  Esta nova escola surge com a nítida preocupação de separar o processo civil do direito material, pretendendo conferir autonomia e cientificidade ao primeiro.

Nessa tentativa de promover o isolamento do processo em face do direito material, a escola sistemática ergueu as bases de um direito processual civil sem qualquer preocupação com o direito substancial, tendo como principal fruto a uniformização dos procedimentos, na ilusão de que estes seriam capazes de atender às diferentes situações de direito material. Disto decorre a visão, inclusive dos processualistas atuais, de que os procedimentos especiais, são, em verdade, exceções ao procedimento ordinário.

Quem apresenta interessante crítica sobre o pensamento predominante neste período é o professor Luiz Guilherme Marinoni (2009):

Somente é possível negar a pluralidade procedimental caso esquecida a diferença entre as posições sociais e as situações de direito substancial. Portanto, se uniformidade procedimental é mito, as idéias de ação e defesa desvinculadas de direito material, se tiveram algum valor em outra época, hoje certamente perderam a importância.

Sem desconsiderar as inúmeras contribuições trazidas pela “emancipação” do direito processual sobre o direito material, não se podem olvidar os exageros conduzidos por este movimento. O isolamento entre os direitos material e processual acabou por ultrapassar o limite necessário à autonomia deste último, resultando na previsão de regras processuais que, embora abstratamente coerentes do ponto de vista racional, careciam, na prática, de eficácia social, pois desconectadas com a realidade sobre a qual incidiam. Inés Lépori, analizando o problema, apresenta a seguinte crítica:

La doctrina procesal se enamoro tanto de sus obras, algunas muy buenas por cierto, que prefirió verlas solas y aisladas, lejos incluso de la materia sobre la que iban a ser aplicadas y a la cual debían aprovechar. En definitivo, se olvidó de los hechos. […]. Construyó así dogmas lógicos, pero en algunos casos alejados de la realidad, o de difícil o imposible aplicación a la misma. (WHITE, 2004, p. 64).   Hoje já se percebe que a escola sistemática, ao reagir ao sincretismo inicial entre direito material e direito processual, não atentou a para a interdependência entre ambos. Isto porque o direito processual, embora autônomo, não é neutro em relação ao direito material; não pode ele ser indiferente à natureza dos interesses em conflito, razão pelo qual se impõe que sejam pensados procedimentos idôneos a fornecer tutelas jurisdicionais adequadas às necessidades dos casos concretos.

Fredie Didier sintetiza a idéia com esta afirmação: A visão instrumentalista do processo estabelece a ponte entre direito processual e o direito material. [...] Bem pensadas as coisas, a relação que se estabelece entre o direito material e o direito processual é circular. (DIDIER JR, 2007, p. 54).

A despeito deste necessário paralelismo entre as normas de direito processual e material, o legislador processualista brasileiro optou por um modelo de distribuição do ônus da prova excessivamente abstrato e rígido, primando pela segurança jurídica em detrimento, muitas vezes, da adequada prestação jurisdicional. Não atentou para a importância de se conferir ao intérprete a possibilidade de adaptar a norma geral às particularidades do caso concreto. Previu apenas, repita-se, um procedimento uniforme, resultando, por isso mesmo, na inconstitucionalidade de sua aplicação em não poucos casos.

3.2 A PREVISÃO DE UM MODELO ESTÁTICO E INFLEXÍVEL DE DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA NO ART. 333 DO CPC

A opção legislativa contida do art.333 do Código Processual vigente consiste, em essência, na repetição do modelo de distribuição do ônus da prova fixado no art. 209 Código de 1939, que, por sua vez, importou a teoria de Chiovenda.

Tal repetição reflete a forte influência do pensamento liberal na fixação de modelos que privilegiam a segurança jurídica e a igualdade formal em detrimento de uma maior liberdade do juiz na adequação da lei ao caso concreto, além de apresentar traços da escola exegética, que criou institutos processuais muitas vezes desconectados com o direito material.

Sobre estes aspectos, importa analisar diretamente o art.333 do Código de Processo Civil brasileiro: Art. 333. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando: I - recair sobre direito indisponível da parte; II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. O legislador processualista, conforme dito, seguiu o modelo capitaneado por Chiovenda, prefixando uma distribuição do ônus da prova baseada num duplo critério: posição processual da parte e natureza do fato alegado, adotando-se, basicamente, a regra de quem o ônus da prova é de quem alega. A única possibilidade de variação da regra, como se nota, é na hipótese de convenção entre as partes.   A primeira crítica é a de que a adoção do duplo critério de distribuição do ônus da prova peca pela falta de precisão, pois, como bem pontua Dall’agnol Jr., um ato pode ser constitutivo para o direito pretendido por uma parte e extintivo, impeditivo ou modificativo em relação ao alegado por outra. (DALL`AGNOL JR, 2001, p. 94). Ademais, equivoca-se o dispositivo ao conceber a distribuição do ônus da prova de modo estático, o que contrasta com o caráter dinâmico tanto do processo como das situações processuais das partes. (CÂMARA, 2005, p. 13). Percebe-se, também, que o legislador brasileiro, ignorando a possibilidade de serem levadas ao Judiciário situações em que a regra geral não funcionasse bem, não deu margem ao juiz para que, diante do caso concreto, adotasse um modelo mais adequado. Este rigor inflexível peca pela despreocupação com as particularidades do direito material, de modo que o art.333 do CPC representa uma clara manifestação do pensamento sistemático, que, na tentativa de conferir autonomia e “cientificidade” ao processo, incidiu no equívoco de dissociá-lo do direito material e, por conseqüência, da realidade da vida. Sobre o assunto, Dall’gnol Jr. é preciso: “Na visão tradicional, a incidência do art.333 do CPC, ostentar-se-ia inexorável; e asséptica, porque de resolução em abstrato, sem consideração para com o caso concreto”. (DALL`AGNOL JR., 2001, p. 95). Contraditoriamente, na tentativa de garantir a igualdade formal e a segurança jurídica às partes, o legislador entendeu por fixar uma regra prévia abstrata de distribuição do ônus da prova, o que acabou por gerar, na prática, inúmeras situações de desigualdade entre os litigantes. “O que se via era que aquela regra, que tinha por fundamento justamente a igualdade, quedava por deixar as partes em situação de flagrante desequilíbrio na busca do material probatório necessário ao frutuoso deslinde da demanda”. (CARPES, 2006, p. 7).  Isto porque, não raras vezes, o onerado não possui condições técnicas, econômicas ou culturais de produzir a prova que lhe toca, não sendo incomum que o adversário do onerado possa produzir a prova com maior facilidade. Este problema não passou despercebido por Artur Thompsen Carpes, que, ao criticar a opção legislativa, afirma o seguinte: Ao dispor que é nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus probatório quando tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício de um direito, o legislador teve a intenção de autorizar a exceção apenas quando a convenção acerca do ônus probatórios tornar excessivamente difícil a produção da prova. Tal circunstância acaba por reafirmar o caráter de universalidade da regra prevista no caput, pois autoriza deduzir que a dificuldade na produção da prova apenas poderia resultar da convenção entre as partes, jamais da fixação legal (CARPES, 2008, p. 68). Neste diapasão, há que se ter em mente que as leis não são oniscientes e, portanto, jamais conseguirão prever toda e qualquer situação particular que a vida apresentar. Por isso se afirma que uma regra geral e abstrata, principalmente em matéria de prova, dificilmente terá aplicabilidade irrestrita. Neste contexto, a previsão fechada do art.333 do CPC, embora seja adequada à grande parte dos casos, em muitos outros se revela incompatível com a resolução de situações cuja configuração escapa ao padrão imaginado pelo legislador de 1973, fazendo-se necessária a sua adaptação às questões de direito material, cujas peculiaridades demandam outro modelo de distribuição do ônus da prova.

3.2.1 Possibilidade de inversão convencional do ônus da prova

Lopes da Costa critica a possibilidade de inversão convencional do ônus da prova. Segundo o autor, “não é lícita a distribuição convencional do ônus da prova. As partes não podem tolher ao juiz a liberdade de avaliação da prova” (LOPES DA COSTA, 1959, p. 278). Seguindo essa linha, João Batista Lopes sustenta: A admissão do princípio dispositivo não significa, porém, que as partes possam orientar o processo a seu talante. Dono do processo (dominus processi) é o juiz e, se às partes se conferem certos poderes de disposição (indicar os meios de prova, fixar o objeto da demanda, transigir, etc.) tal se compreende fora da atividade própria do juiz, não sendo este obrigado, na formação das bases da sentença, a aceitar a convenção das partes. (LOPES, 1999, p. 42). Sandra Aparecida Santi (2006, p. 64) entende que a convenção é ineficaz, dado o caráter público da matéria e afirma que as restrições às convenções previstas no parágrafo único do art.333 acabam por, na prática, tornar ineficiente a possibilidade de as partes inverterem o ônus. Artur Thompsen Carpes, por sua vez, defendendo uma interpretação analógica, sustenta que a flexibilização da regra geral pode se ocorrer com base no próprio parágrafo único do art. 333, que impede que as partes convencionem sobre a distribuição do ônus da prova quando esta tornar excessivamente difícil para uma delas o exercício do seu direito. Segundo entende, poderá o juiz valer-se desta previsão para afastar a regra dos incisos I e II do caput do art.333 quando a sua aplicação, de igual modo, dificultar o exercício do direito pela parte. Nas palavras do autor: “Assim, independe se a distribuição é legal ou convencional, os ônus probatórios deverão conformar-se à Constituição” (CARPES, 2008, p. 123). 4. CONCLUSÃO O certo é que nem sempre a aplicação literal do art.333 do CPC se mostrará capaz de solucionar as questões de direito material postas em juízo. Defende-se então que o juiz, na condição de destinatário das provas, promova um controle (ainda que de ofício) da distribuição convencional do ônus da prova, uma vez que se trata de matéria de ordem pública. Ao lado desse controle, entende-se que próprio magistrado possui a prerrogativa de promover tal inversão, desde que a providência se revele a mais adequada à solução do caso concreto.   Outrossim, não se verifica óbice, a priori, à inversão tanto convencional quanto judicial do ônus da prova, ressalvada a hipótese, em ambos os casos, de se “tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito”.

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  Na definição de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1998), o conceito de ônus pode se relacionar com o de obrigação: “ônus. (Do lat. onus) S. m. 2 n. 1. Aquilo que sobrecarrega; carga, peso. 2. Fig. Encargo, obrigação pesada, de cumprimento difícil ou desagradável”. No âmbito jurídico, contudo, assumem sentidos diversos. Conforme indica Antônio Janyr Dall’Agnol Jr. (2001, p. 92): “Não se ressente a nossa Língua de vocábulo expressivo do que seja oneroso, contrariamente ao que ocorre com as línguas francesa e espanhola [...], embora na linguagem comum possa, por vezes, confundir-se com o expressado pelo termo obrigação, na técnica-jurídica serve este (o vocábulo obrigação) justamente de contraponto ao conceito de ônus”.   Adotaremos o sentido amplo de obrigação, abarcando o de dever jurídico, que nada mais é que uma obrigação legal, cujo sujeito ativo é a sociedade, representada pelo Estado.   Como exceção à vedação ao non liquet, encontramos no ordenamento brasileiro o art.103 do CDC contendo a previsão de que nas ações coletivas só haverá coisa julgada quando a decisão for proferida com base no exaurimento de provas. Havendo insuficiência de probatória, não sobrevirá a coisa julgada.   MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da Convicção e Inversão do Ônus da Prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Disponível em: www.professormarinoni.com.br., acessado em 08/09/2009.   MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da Convicção e Inversão do Ônus da Prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Disponível em: www.professormarinoni.com.br., acessado em 08/09/2009.   Provas impossíveis ou excessivamente onerosas de serem produzidas.

 

 

Elaborado em setembro/2012

 

Como citar o texto:

FRANÇA, Marcela Moura. .O Ônus da Prova no Direito Processual Brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1129. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/2929/o-onus-prova-direito-processual-brasileiro. Acesso em 27 dez. 2013.

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