1. Introdução

Atualmente, os temas relacionados à Previdência Social e Privada têm ocupado lugar de grande destaque na mídia em geral. A questão previdenciária é bastante complexa e abrangente, principalmente em países que ainda não equacionaram sistematicamente seu modelo de Previdência Privada.

Sabemos que no Brasil pontos cruciais estão sendo discutidos e aperfeiçoados, principalmente agora, no atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com vistas a uma possível Reforma Previdenciária. Todavia, o trabalho é árduo e diletante, que envolve um planejamento em longo prazo e interesse diversos. Surge então o dever aos operadores do direito de analisar de forma imparcial e equilibrada este acontecimento à luz da legislação e entender o "Espírito da Lei", como sendo benéfico ou prejudicial ao Estado.

Neste contexto, a previdência complementar ocupa lugar de relevo, pois, é através dela e seus benefícios que os trabalhadores terão opções de complementação de renda e pensões com perspectivas a um futuro mais tranqüilo.

A Previdência Privada tem sido por demais debatida nos últimos dias, considerada como o vilão da última hora por alguns e levada ao escárnio por outros. Todavia, antes de nos preocuparmos com tal tema e lhe açoitarmos inadvertidamente, é necessário à priori, compreendermos realmente o que seja previdência privada, e qual as suas implicações jurídicas.

O modelo previdenciário nacional baseia-se no binômio social-privado, a saber:

 

 

a) Seguridade básica, campo da Previdência Social, compulsória e gerida pelo Estado. Divide-se em Regime Geral que engloba todos os trabalhadores regidos pela CLT e o Regime Peculiar ou Estatutário que engloba os servidores públicos.

b) Seguridade supletiva, facultativa, desenvolvida pela iniciativa privada para atender aos anseios individuais de preservação do modo de vida. A Previdência Privada por sua vez divide-se em outras duas classes:

I) Entidades Fechadas, constituído pelas instituições que operam no dentro de uma empresa ou grupo de empresas, com planos de formulação grupal, absolutamente mutualistas, para a prestação de benefícios complementares e assemelhados aos da Previdência Social (Ex. Petros, Previ). Estão subordinadas ao Ministério da Previdência e Assistência Social, fiscalizadas pela Secretaria de Previdência Complementar (SPC).

II) Entidades Abertas, constituído pelas instituições abertas à participação pública, para a prestação de benefícios opcionais, de caráter mais individual (Ex. Bradesco Previdência, AGF). Estão subordinadas ao Ministério da Fazenda e fiscalizadas pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP).

A Previdência Privada surgiu da necessidade de complementação de renda aos participantes do regime geral da previdência. A sua origem advém da própria idéia da seguridade social, que é dar aos indivíduos e suas famílias tranqüilidade, de modo que, na ocorrência de um evento, como a morte ou invalidez, a qualidade de vida do associado ou de seus dependentes não venha a ser diminuída significativamente.

É integrante da seguridade social, a qual, no entendimento de Sérgio Pinto Martins(1) , "deve garantir os meios de subsistência básicos do indivíduo, não só o presente, mas principalmente para o futuro".

Até mesmo a Declaração dos Direitos Universais da ONU em 1948 já previa;

"Toda pessoa (...) tem direito aos seguros em caso de desemprego, doença, invalidez, velhice e em outros casos de perda de seus meios de subsistência por circunstancia independentes da sua vontade". (Declaração dos Direitos Universais - ONU, 1948).(2)

 

Assim, nota-se a importância social alcançada pelo instituto da previdência complementar.

2. Histórico

A previdência iniciou no Brasil no século XIX, em 1543, quando Brás Cubas fundou a Santa Casa de Misericórdia, em Santos, e, na mesma época, criou um plano de pensão para seus empregados, tendo o mesmo sido estendido também ás Santas Casas de Salvador, Rio de Janeiro e às Ordens Terceiras.

Esses planos foram bases para o seguro médico, tudo oriundo da iniciativa privada. Eram as sociedades de socorro mútuo, organizadas sem bases técnicas, mas que deram uma grande contribuição até que a previdência social assumisse esses riscos.

No entanto, é nos anos 70 que se vislumbra o imenso crescimento destes institutos nos moldes atuais. Segundo Eliane Romeiro(3) o pioneiro no ramo foi a Petros da Petrobrás, nascido em 1979, o fundo de pensão (EFPP) transformou-se em símbolo de modernização das empresas.

Nos anos 80, os brasileiros entre 30 e 40 anos com rendimentos de mais de 10 salários mínimos, não sendo funcionários públicos, nem ligados à outra forma de aposentadoria que não fosse a do INPS , constituíam o alvo dos grupos financeiros para o plano de previdência privada.

A Previ-Caixa foi fundada em 1904 como caixa de montepio, destinava pagamento de pensão à família do empregado. Nos anos 40, o Banco do Brasil instituiu a complementação da aposentadoria. Em 1964 o fundo foi constituído e regulamentado em 1977.

Em 1977 a Previdência Privada é regulamentada através da Lei Complementar nº 6.435, que foi alterada pela Lei nº 6.462 no mesmo ano e regulamentadas pelo Decreto nº 81.240 de 1978, entidades fechadas; pelo Decreto 81.402 também 1978, as entidades abertas.

Apesar de as entidades de previdência privada já estarem regulamentadas desde 1977, com a lei 6.435, o crescimento mais pronunciado dessas instituições só foi verificado na década de 90, com destaque para a trajetória após a estabilidade monetária alcançada no Plano Real. Grande parte desse crescimento deveu-se à modernização do mercado financeiro e de capitais, principalmente após a estabilização, e à evolução da legislação pertinente que regulamentou pontos específicos ao funcionamento do sistema.

Depois da estabilidade a demanda pela previdência privada cresceu e foi atendida basicamente pelas instituições abertas. De acordo com estimativas da ANAPP (Associação Nacional da Previdência Privada), a receita anual dos planos previdenciários cresceu 490% entre 1994 e 1998, atingindo o total de R$ 3,2 bilhões no ano de 2000.

3. Natureza Jurídica

Em nível constitucional, a previdência privada está prevista no artigo 202 e seus parágrafos da Lex Mater, in verbis:

Art. 202. "O regime de previdência privado, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o beneficio contratado, e regulado na lei complementar".

Quanto ao aspecto infraconstitucional, a lei de regência das entidades de previdência privada, é a Lei nº 6.435, de 15.07.77, com as alterações introduzidas pela Lei nº 6.462, de 09.11.77, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1978, recepcionada pela atual Constituição no que não contraria seus ditames, especialmente o art. 21, VIII, no qual se consigna a competência normativa da União, e pela Lei nº 8.020 de 12.04.90. Ainda a Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 200.

No âmbito regulamentar, cabe ainda destacar o Decreto nº 81.240, de 20.01.78, que normaliza as disposições da Lei 6.435/77, no tocante às entidades fechadas de previdência privada.

As instituições de Previdência Privada possuem personalidade jurídica de direito privado, considerados como "ente de colaboração" da administração pública. Hely Lopes(4) é quem categoricamente define o que são esses entes:

"(...) embora oficializadas pelo Estado, não integram a administração direta e nem a indireta, mas trabalham sob o seu amparo, cooperando nos setores, atividades e serviços que lhes são atribuídos, por considerados de interesse específico de determinados beneficiários."

A natureza privada das instituições de previdência privada é indiscutível, sejam elas abertas ou fechadas e independentemente da personalidade jurídica da sua patrocinadora. Assim, mesmo que a pessoa jurídica que a criou e patrocina seja uma entidade governamental, ou uma sociedade de economia mista, a entidade e as relações jurídicas interna e externa corporis hão de reger-se pelas regras de Direito Privado, como assinalam Arnaldo Süssekind e Délio Maranhão.

 

 

4. Segurança Jurídica

A principal alegação, fruto dos receios contra a Previdência Privada reside nas perguntas: Qual a segurança jurídica de tais institutos? Como tenho certeza que receberei o dinheiro investido? O que ocorre se nova lei revogar aquilo que fora pactuado no meu contrato de previdência?

As perguntas são pertinentes e necessárias, tendo em vista os fenômenos que vem ocorrendo contra o povo brasileiro, massacrado pelo liberalismo econômico em demasia, onde se retiram do Estado suas principais prerrogativas e atribui aos entes privados mais poder que o necessário; por isso, tais respostas são imprescindíveis.

A atuação interveniente do Estado em referência à Previdência Privada se desdobra em normativa e fiscalizadora-sancionadora, sendo considerado destarte, um dos entes privados mais fiscalizados pelo poder público.

Além de subordinar a criação, a organização e o funcionamento destas entidades à autorização do Governo Federal, a ação do poder público será exercido com os seguintes objetivos: proteger os interesses dos participantes; determinar padrões mínimos adequados de segurança econômico-financeiro para preservação da liquidez e da solvência dos planos de benefícios e disciplinar a expansão dos planos de benefícios.

Ponto crucial da segurança de tais planos, encontra-se na necessidade das entidades previdenciárias criarem as reservas técnicas, fundos e provisões, de tal forma a garantir a integralidade dos benefícios de todos os participantes.

A fiscalização das reservas técnicas cabe à Secretaria de Previdência Complementar (SPC) subordinada ao Ministério da Previdência e Assistência Social no caso das Entidades Fechadas da Previdência Privada e à Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) subordinada ao Ministério da Fazenda a fiscalização das Entidades Abertas.

Tal fiscalização será efetivada mediante análises contábeis efetuadas periodicamente. Sendo, de fato, verificadas irregularidades ou insuficiência das reservas, ou aplicação de forma inadequada e em desacordo com as normas vigentes, caberá a decretação da Intervenção.

Na fase da Intervenção, haverá prazo para análise da entidade e encaminhamento de plano para sua recuperação. A intervenção cessará quando for aprovado o plano de recuperação ou em sendo reconhecida sua inviabilidade de recuperação ou pela ausência de condições para o seu funcionamento será decretada a sua liquidação extrajudicial, fase esta em que os beneficiários terão privilégios especiais sobre os ativos e não necessitam se habilitarem para receberem seus direitos, como ocorre no processo de Falência, que por sinal não ocorre em hipótese alguma em se tratando de Previdência Privada.

Entende-se, pois, que caso o órgão fiscalizador não desempenhe seu papel consoante estabelecido na legislação, no tocante à fiscalização, terá ele a responsabilidade civil objetiva, haja vista ser dele a total vigilância das atividades administrativas confiadas pela lei.

A CF de 88 acolheu a responsabilidade objetiva do Estado:

Art. 37 § 6º "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa".

Conforme leciona Marcio Fernando Elias Rosa :

"(...) Basta, portanto, a ocorrência do dano resultante da atuação administrativa, independentemente de culpa. A norma constitucional é aplicável à Administração direta e indireta, bem assim às prestadoras de serviços públicos, ainda que constituídas sob o domínio do direito privado".

No tocante à edição de novas leis que acabem por revogar cláusulas que constem dos contratos vigentes, tem-se que os contratos de previdência privada são classificados como contratos de adesão, cujas regras deverão estar em conformidade com a legislação vigente; destarte, diz-se que o ato é juridicamente perfeito, quando elaborado em harmonia com as leis vigentes, não podendo lei posterior modificar cláusulas antes contratadas, sob pena de ferir o estabelecido no artigo 5º da Constituição Federal que expressa que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

Ora, nada pode ferir o ato jurídico perfeito, conforme magistério de José Afonso da Silva(6) :

"A Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º, § 1º, reputa ao jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Essa definição dá a idéia que o ato jurídico perfeito é àquela situação consumada ou direito consumado, referido acima, como direito definitivamente exercido. Esse direito consumado é também inatingível pela lei nova, não por ser ato perfeito, mas por ser direito mais que adquirido (isto é, direito que integrou o patrimônio mas não foi ainda exercido) é protegido contra interferência de nova lei, mais ainda o é o direito adquirido já consumado" .

A diferença entre direito adquirido e ato jurídico perfeito está em que aquele emana diretamente da lei em favor de um titular, enquanto o segundo é negócio fundado na lei.

Ao contrário da previdência privada, na previdência social o contribuinte tem apenas a expectativa de direito. Silvio Rodrigues citando Vicente Raó, assim expõe sobre expectativa de direito:

"(...) Vicente Raó define a expectativa de direito como a mera esperança de vir a adquirir um direito; trata-se de mera potencialidade de aquisição, resultante da personalidade e da capacidade como situações genéricas; na expectativa de direito, embora a pessoa reúna os requisitos de capacidade e legitimidade, o direito só surge e se adquire ao se verificar o fato ou o ato capaz de produzi-lo ou de lhe conferir aperfeiçoamento e vida".

Isto posto, conclui-se que em tese, legalmente a Previdência Privada possui mais segurança jurídica que a Previdência Social, pois esta, quando o participante contribui, ele possui mera expectativa de direito, podendo lei nova alterar a forma do sistema, enquanto o contribuinte não estiver recebendo o beneficio, ao passo que na Previdência Privada existe um ato jurídico perfeito tutelado pelo direito.

 

5. Notas:

1. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade social. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1993. p. 24.

2.CAPPI, Luiz Carlos Trabuco. Raízes da Previdência Privada. Disponível em: http://WWW.Anapp.com.br. Acesso em 15 de Julho de 2001.

3. COSTA, Eliane Romeiro. Previdência Privada e fundos de pensão (Brasil, Chile e França). Goiânia: Lúmen Júris, 1996.

4. LOPES, Hely Meirelles. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.331.

5. ROSA, Marcio Fernando Elias. Direito Administrativo - Sinopses Jurídicas. 3º Ed. Saraiva. São Paulo. 2002, p. 164.

6. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16º ed. São Paulo: Malheiros.1999. p. 435, 436.

7. RODRIGUES, Silvio. Apud RAÓ, Vicente in Direito Civil - Parte Geral vol 1. 28º Ed. Saraiva. São Paulo. 1998, p. 164.

6. Referência Bibliográfica

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade social. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1993. p. 24.

CAPPI, Luiz Carlos Trabuco. Raízes da Previdência Privada. Disponível em: http://WWW.Anapp.com.br. Acesso em 15 de Julho de 2001.

COSTA, Eliane Romeiro. Previdência Privada e fundos de pensão (Brasil, Chile e França). Goiânia: Lúmen Júris, 1996.

LOPES, Hely Meirelles. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.331.

Previdência Privada Complementar, in Direito do Trabalho e Previdência Social - Pareceres. V. 4, p.302-314.

ROSA, Marcio Fernando Elias. Direito Administrativo - Sinopses Juridicias. 3º Ed. Saraiva. São Paulo. 2002, p. 164.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16º ed. São Paulo: Malheiros.1999. p. 435, 436.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil - Parte Geral vol 1. 28º Ed. Saraiva. São Paulo. 1998, p. 164.

(Elaborado em 11/2003)

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Como citar o texto:

SANTOS, Valmir Nascimento Milomem..Aspectos jurídicos da previdência complementar. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 1, nº 88. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-previdenciario/318/aspectos-juridicos-previdencia-complementar. Acesso em 1 ago. 2004.

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