RESUMO: O objetivo pretendido no presente trabalho consiste em apresentar a perspectiva da Teoria Discursiva do Direito em contraposição à interpretação sugerida por Lênio Streck, para quem a referida teoria, tal como formulada por Jurgen Habermas (1997), pressuporia a superação da etapa do Welfare State em países como o Brasil. Para tanto será considerado o conceito de Moral em Kant que interpreta o fundamento supremo da moralidade: a autonomia moral (ou liberdade) como condição de possibilidade para o Princípio do Discurso (ou normas do agir naquilo que este agir tem de universal), pressuposto fundamental, sem o qual não seria possível a produção das normas do agir, ou, leis da liberdade que se justificassem em um fato não proveniente do mundo dos sentidos. A abordagem será feita por meio de uma contextualização da teoria moral de Kant no momento atual, passando pela construção feita pelo autor ao longo das obras especificadas, até ser possível apreender dos escritos do filósofo o conceito de autonomia moral, conceito transcendente (porque não pode ser encontrado na experiência) que justifica a moralidade (deveres fundamentados na razão). Posteriormente, será realizada uma comparação entre essa relação e aquela apresentada no princípio do discurso de Habermas, sendo para tanto, necessária uma análise da função da moral apresentada por este autor em sua obra Direito e Democracia: Entre Faticidade e Validade. Finalmente, se verificará os pontos semelhantes e divergentes existentes entre a Moral de Kant e o Princípio do Discurso de Habermas, para o qual se baseará em uma interpretação mais coerente da teoria kantiana, que leva em consideração tanto a sua doutrina do direito quanto a doutrina da virtude, sendo, Direito e Moral, considerados como um todo coerente e não isoladamente como querem alguns. Dessa forma, é possível sustentar que a Teoria Discursiva do Direito de Jurgen Habermas não encontra óbices para sua aplicação em razão da maior ou menor efetivação de direitos fundamentais de um determinado país, sendo, portanto, perfeitamente aplicável ao Brasil.

 

PALAVRAS-CHAVE: autonomia moral – discurso – democracia - Brasil

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

A perspectiva defendida neste trabalho contraria frontalmente a afirmação de alguns juristas brasileiros, em especial Lênio Streck. Para ele as especificidades de países como o Brasil - que não teriam passado pela etapa do Welfare State - exercem enorme influência na discussão sobre o papel do Direito e da Justiça Constitucional. Assim, a teoria discursiva do direito, tal como formulada por Jurgen Habermas (1997), pressuporia, equivocadamente, a superação desta etapa em países como o Brasil (2003, p. 268).

            Com efeito, a autonomia moral (ou liberdade) do indivíduo é condição de possibilidade para o Princípio do Discurso (TRIVISONNO, 2007, p. 55-75) - ou normas do agir naquilo que este agir tem de universal - sendo considerada como pressuposto fundamental, sem o qual não seria possível a produção das normas do agir, ou, leis da liberdade que se justificassem em um fato não proveniente do mundo dos sentidos. 

            Para reforçar tal afirmação, parte-se de uma contextualização sobre a interpretação da teoria moral de Kant no momento atual, passando pela construção feita pelo autor ao longo das obras Fundamentação à Metafísica dos Costumes e a Metafísica dos Costumes, até ser possível apreender dos escritos do filósofo o conceito de autonomia moral, noção transcendente (porque não pode ser encontrado na experiência) que justifica a moralidade (deveres fundamentados na razão).

            A ideia fundamental defendida neste trabalho é a de que a autonomia moral possibilita a validade da teoria discursiva do direito, uma vez que a produção de normas racionais depende, de forma categórica, do assentimento dos sujeitos, enquanto participantes de um discurso racional.

Assim, como a existência de capacidade racional do individuo reafirma o caráter universal da Teoria Discursiva de Jurgen Habermas, a referida teoria é perfeitamente aplicável ao Brasil, se estivermos corretos.

DESENVOLVIMENTO

Na Introdução à Metafísica dos Costumes, percebe-se também a adoção deste conceito. “Em contraste com as leis da natureza, essas leis da liberdade são denominadas leis morais.” (KANT, 1995, p. 63) Esse parece ser o entendimento adotado por Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno para quem “a Fundamentação à Metafísica dos Costumes e a Metafísica dos Costumes ensina que ética é a ciência das leis da liberdade; essas leis da liberdade são leis morais, quaisquer que sejam elas.” (2009, p. 200)

Assim, pode-se concluir que a moral consiste nas leis da liberdade fundamentadas na parte racional (a priori) da ética e que, por essa razão, se referem a todos os seres racionais. O ser humano, embora seja afetado pelas inclinações no uso prático de sua razão, ou seja, no momento de realização das escolhas, é livre o suficiente para assegurar que o peso de fundamentos a priori de uma razão prática, que é pura, justamente por não se contrapor aos móbeis da sensibilidade, faça “os pratos da balança oscilarem a favor da autoridade de seus preceitos”. (KANT, 2003, p. 57) Aqui, convém lembrar o dualismo kantiano, segundo o qual o ser humano é considerado como pertencente ao mundo sensível (fenoumenon) e inteligível (noumenon).

Desse modo, uma fundamentação racional do direito tem que observar a universalidade para que este tipo de normatividade não resulte em um conceito vazio. Percebe-se, então, que a mesma lógica de fundamentação da Moral (strictu sensu) é utilizada para o Direito.

            Por isso, a proposição segundo a qual o Direito se fundamenta na Moral não significa que aquele imita uma ordem de valores pré-estabelecidos de um “reino dos fins” (esta) como afirma Habermas. Na verdade, o conceito de Direito, entendido em um sentido estrito: como a possibilidade de ligar a coerção recíproca com a liberdade de todos, pressupõe a moral, que impõe a obrigatoriedade de utilização dessa coerção recíproca.

Segundo Jurgen Habermas (1997), o princípio do discurso é suficientemente abstrato a ponto de não limitar as razões levantadas pelos participantes para justificar as normas de ação. A Moral seria, então, decorrência de uma especificação do Princípio do Discurso para expectativas de comportamento que possam ser justificadas a partir de uma consideração igualitária dos interesses. Enquanto que o Direito seria decorrente de uma correspondente especificação do Princípio do Discurso para normas de ação caracterizadas pela forma jurídica e pela possibilidade de serem justificadas por razões pragmáticas, ético-políticas e morais. Este último é denominado Princípio da Democracia.

Desse modo, percebe-se que o conceito de autonomia, tal como apresentado neste trabalho, é condição de possibilidade para o princípio do discurso e seus desdobramentos na Moral e no Direito. Ora, embora Habermas rejeite a fundamentação moral do princípio do discurso, não pode negar que o conceito de autonomia, entendido como a propriedade da vontade humana de ser lei para si mesma, pode ser visto como um pressuposto que fundamenta sua teoria.

Contudo, essa discussão extrapola os limites deste trabalho, cuja questão fundamental proposta é a defesa da universalidade da teoria discursiva de Jurgen Habermas e sua plena aplicabilidade no Brasil.

            Em sentido diverso, Lênio Streck afirma que países como o Brasil precisam superar uma crise anterior à que envolve o modelo liberal e do Estado Social: a crise de paradigma liberal-individualista (2003, p. 280). Esta, de acordo com o autor, impede a manifestação da própria Constituição, que diante do novo modelo do Estado Democrático de Direito, é traduzida pelo processo constituinte – portanto, pacto fundante do que se propôs como o novo (2003, p. 281).

            Streck argumenta ainda que o Brasil se caracteriza pelo açoitamento dos direitos sociais não realizados, os direitos fundamentais não respeitados. Além disso, o Direito seria reduzido a um mecanismo de eficiência, impedindo o aparecimento do sentido transformador próprio do paradigma do Estado Democrático de Direito.

Por fim, assevera que o Direito Constitucional neste país é transformado em um Direito Constitucional simbólico, uma vez que frustra as expectativas decorrentes do contrato social fundante.

            Assim, esse déficit resultante do histórico descumprimento das promessas da modernidade, em países de modernidade tardia como o Brasil, acarretaria a necessidade de formulação de uma teoria da Constituinte dirigente adequada a países periféricos (STRECK, 2003, p. 276).

            Portanto, com base nessas razões, Streck (STRECK, 2003, p. 277) propõe uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia (TCDAPMT), que tem como escopo principal a construção das condições de possibilidade para o resgate das promessas da modernidade historicamente descumpridas, que comprometem os dois pilares que sustentam a Teoria Discursiva do Direito: soberania popular e efetividade dos direitos fundamentais (HABERAS, 1997).

CONCLUSÃO

            Não discordamos das constatações de Streck quanto à ausência de uma forte implementação de direitos fundamentais no Brasil. O problema é a ligação que ele faz disso com a validade da Teoria Discursiva do Direito apresentada por Jurgen Habermas.

            Se estivermos corretos há um sério equívoco nas suas constatações. O déficit de autonomia dos participantes do discurso não invalida a teoria discursiva. O que ocorre é um afastamento do caráter ideal do discurso quando praticado por indivíduos de países que não possuem alto grau de efetivação dos direitos fundamentais.

            Nota-se, assim, que o essencial é o conceito de autonomia, uma vez que a propriedade da vontade humana de ser lei para si mesma (livre convencimento) é que possibilita que os seres humanos possam concordar com as expectativas de comportamento generalizadas e problematizadas no discurso. Segundo o princípio do discurso são consideradas válidas apenas as normas para as quais todos possam dar o seu assentimento enquanto participantes de um discurso racional (HABERMAS, 1997, p. 15).

            Para que os participantes do discurso possam aceitar uma norma como válida sem coação, ou seja, racionalmente, é necessário que sejam livres o suficientes para criar esta norma. Em outros termos, a propriedade da vontade humana de ser lei para si mesma e de determinar a vontade (afetada por inclinações) à ação é que possibilita qualquer consenso racional sobre normas do agir. Assim, pode-se dizer que a Teoria Discursiva do Direito de Jurgen Habermas “parte, portanto, de uma capacidade de juízo em princípio existente, suficiente dos participantes”. (ALEXY, 2010, p. 95).

Ora, se as afirmações de Streck estiverem corretas, não há sujeitos racionais no Brasil e em países de “modernidade tardia”. Assim, seríamos apenas controlados pelos nossos instintos e inclinações, ou para falar com Kant, seríamos tão somente seres fenomênicos.

O que invalidaria a idéia de uma teoria do discurso seria a ausência completa de racionalidade do sujeito participante da prática discursiva, o que não pode ser negado de forma séria.

Dessa forma, verifica-se que a Teoria Discursiva do Direito de Jurgen Habermas não encontra óbices para sua aplicação em razão da maior ou menor efetivação de direitos fundamentais de um determinado país.

            Com isso não se quer afirmar a completa correção (ausência de problemas) ou a necessidade da aplicação da Teoria do Discurso no Brasil. O que se pretende destacar é que, entre as diversas críticas à Teoria Discursiva do Direito, a de que ela não seria aplicável por ausência de implementação de direitos fundamentais (Streck) não pode ser aceita como correta.

REFERÊNCIAS:

ALEXY, Robert. Direito, Razão e Discurso: estudos para filosofia do direito.

Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.

___________. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

CARVALHO NETTO, M. Facticidade e Validade: uma introdução à teoria discursiva do Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Tradução de uso acadêmico e interno à Faculdade de Direito da UFMG, 1997. (Tradução/Livro).

KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2003. 335 p.

___________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Porto: Porto, 1995. 123 p.

RIBEIRO, Fernando Armando. Conflitos no estado constitucional democrático: por uma compreensão jurídica da desobediência civil. Belo Horinzonte: Mandamentos, 2004. 405 p.

SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça  em  Kant:  seu  fundamento  na  liberdade  e igualdade. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.

___________. A Idéia de Justiça no mundo contemporâneo: fundamentação do direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Perspectivas e Possibilidades de Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil in: Novos Estudos Jurídicos. Volume 8. Nº 2. Porto Alegre, RS. maio/ago. 2003. p.257-301.

TRIVISONNO, Alexandre. Ética, Direito e paz perpétua. In: Jean-Christophe Merle; Luiz Moreira. (Org.). Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, v. p. 298-308.

___________. O Fundamento de Validade do Direito - Kant e Kelsen, 2a. edição ampliada. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. v. 1. 303 p.

___________. O rigorismo na etica de Kant e a situacao ideal do discurso em Habermas - um ensaio comparativo. In: Alexandre Travessoni Gomes e Jean-christophe Merle. (Org.). A moral e o direito em Kant - ensaios analiticos. 1 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, v. , p. 55-75.

___________. A relação entre Direito e Moral: Kant e Habermas. In: Günter Frankenberg; Luiz Moreira. (Org.). Jürgen Habermas, 80 anos - Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2009, v. , p. 195-218.

 

 

Elaborado em março/2015

 

Como citar o texto:

MOREIRA, Pedro Alexandre..A Aplicação da Teoria do Discurso no Brasil ou a Capacidade Racional dos Participantes do Discurso Como Condição de Possibilidade para a Teoria do Discurso.. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1244. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/3559/a-aplicacao-teoria-discurso-brasil-ou-capacidade-racional-participantes-discurso-como-condicao-possibilidade-teoria-discurso-. Acesso em 30 mar. 2015.

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