Resumo: O objeto do presente artigo é apresentar a Lei de Drogas e demonstrar que o legislador, em que pese ter afastado a incidência da pena privativa de liberdade, não descriminalizou a conduta de porte e uso de drogas para consumo pessoal, tendo em vista tal comportamento continua a sofrer sanção penal, e constitui-se como crime em todos os seus aspectos. Para tanto, analisa o conceito de pena de forma a enquadrar as novas sanções previstas, representadas por penas alternativas, dentro dos limites da pena e da própria finalidade do Direito Penal. A partir dessa perspectiva, fundamenta pela alusão do instituto da despenalização na nova lei, por se constituir o crime em menor potencial ofensivo e sofrer a implicação de sanções penais de menor rigor punitivo. 

Palavras-chave: Porte de drogas para uso próprio. Descriminalização. Despenalização.

Sumário: Noções Introdutórias. 1. Do crime. 2. Descriminalização X Despenalização. 3. Posicionamentos a favor. 4. Posicionamentos contra. Considerações finais.

    

NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Com a edição da Lei de Tóxicos e a não previsão da pena de prisão para o sujeito que for surpreendido com a posse de drogas, surgiram inúmeras discussões na doutrina acerca do tratamento jurídico dispensado ao usuário. Assim, em virtude das sanções previstas no art. 28 da Lei nº. 11.343/06, gerou-se uma polêmica, no que diz respeito a definir se o novo tratamento direcionado à conduta do usuário teria descriminalizado, despenalizado ou se ainda continua sendo considerada crime a conduta de possuir drogas para consumo pessoal. Inicialmente, é necessário o entendimento do que consiste “crime” para a legislação brasileira para, posteriormente, adentrarmos na distinção entre os institutos jurídicos da descriminalização e despenalização, de forma a precisar seus conceitos.

1. DO CRIME

O crime é uma construção jurídico-penal, e seu estudo deve começar pela definição de seu objeto, qual seja o conceito de fato punível. Essa é uma das mais antigas preocupações dos estudiosos do Direito Penal, ou seja, estabelecer os conceitos fundamentais para os vários fenômenos que constituem o objeto de seu estudo. Inúmeros são os sistemas utilizados para a conceituação de crime. Porém, é válido tomar como base dois sentidos para a sua definição: formal e material. Partindo de uma análise meramente formal, que tem a lei como ponto de referência, crime é o que a lei prevê como tal, ou seja, formalmente, crime é conduta humana que contraria a lei penal. Essa premissa se coaduna perfeitamente com o princípio da legalidade. No entanto, por se constituir a forma mais violenta de intervenção do Estado na vida dos cidadãos, não se podem desprezar critérios materiais para a definição legal das infrações penais, motivo pelo qual somente devem ser erigidos à categoria de delitos comportamentos especialmente lesivos a bens jurídicos, vale dizer, condutas realmente intoleráveis para a convivência social, cuja prevenção (e repressão) não se possa confiar, apenas, a outras instâncias de controle social (...).  Assim, numa concepção substancial o crime é tido como um fato humano, manifestado através da ação ou omissão, pelo qual se viola um preceito jurídico munido de sanção específica de coerção indireta, que é exatamente a pena. Tal comportamento, revelado na ação ou omissão do agente, contrasta com valores ou interesses da coletividade, de modo que essa conduta seja proibida, sob a ameaça da imposição de uma pena. A concepção material tem seu fundamento no princípio da proteção do bem jurídico, identificando-se com a conduta humana geradora de danosidade social.  Portanto, o crime é uma conduta que descrita na lei como criminosa, deve ainda, se revelar especialmente lesiva a um bem jurídico. Sob o prisma analítico, por sua vez, a ação humana, para ser considerada como criminosa, deve corresponder objetivamente à conduta que for descrita na lei, de forma que contrarie a ordem jurídica, sendo submetido o seu autor a um juízo de censura ou reprovação social. O delito é considerado, então, uma ação típica, antijurídica e culpável. Queiroz preleciona: A teoria do delito trabalha com três conceitos fundamentais: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade (a punibilidade não constitui, segundo a doutrina, elemento do crime, mas sua conseqüência). Analiticamente, portanto, o crime é um fato típico, antijurídico e culpável, havendo entre tais categorias uma relação de sucessão e prejudicialidade, visto que a culpabilidade pressupõe a antijuridicidade e esta, a tipicidade. Tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade são, enfim, predicados de um substantivo, que é a conduta humana definida como crime, de sorte que a análise do caráter criminoso de um ato demanda a verificação sucessiva de seu caráter típico, antijurídico e culpável.  Sob o aspecto analítico, o crime se caracteriza pelos requisitos do fato típico e da ilicitude, de forma que a culpabilidade aparece como pressuposto da pena. O conceito de fato punível é composto pelas características gerais da ação, da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade e, em regra, a presença dessas categorias é suficiente para determinar a punibilidade respectiva. Excepcionalmente, a punibilidade pode estar sujeita à existência de outros pressupostos ou circunstâncias, que são as condições objetivas de punibilidade e os fundamentos excludentes de pena. A tipicidade corresponde à atuação do sujeito ativo, mediante ação ou omissão, em ajuste com descrição contida na norma penal incriminadora. Aqui, esse elemento guarda estreita relação com o princípio da legalidade (nullum crimen nulla poena sine praevia lege), uma vez que uma infração penal só pode se constituir como tal a partir de uma identificação com o que a lei penal descreve. Tipicidade é a consonância do fato praticado pelo agente com a conduta abstratamente descrita na lei penal, ou seja, é a conformidade do fato cometido pelo agente e a descrição de cada espécie de infração contida na norma penal incriminadora. Um fato, para ser típico, deve adequar-se ao modelo descrito na lei . A antijuridicidade ou ilicitude, por sua vez, é a conduta humana voluntariamente contrária ao ordenamento jurídico, que cause uma lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico protegido pelo Direito. A ação é antijurídica ou ilícita quando é contrária ao direito. A antijuricidade exprime uma relação de oposição entre o fato e o Direito. Ela se reduz a um juízo, a uma estimativa do comportamento humano, pois o direito penal outra coisa não é que um complexo de normas que tutelam e protegem as exigências ético-sociais. O delito é, pois, a violação de uma dessas normas.  Em regra, todo fato típico é antijurídico, salvo quando provado que o agente realizou alguma das condutas acobertadas por uma das causas de exclusão da antijuridicidade, caso em que o fato configuraria típico, mas não antijurídico. A ilicitude diz-se penal quando a modalidade de conduta é descrita pelo Código Penal e legislações extravagantes, Poderá, no entanto, se constituir enquanto ilicitude extrapenal, no momento em que o comportamento é previsto como ilícito por outros ramos do Direito, que não o Direito Penal. Entretanto, para a configuração do crime, faz-se mister que a conduta, além de típica e antijurídica, seja também culpável. A culpabilidade compõe a estrutura analítica do fato punível como um juízo negativo de valoração do injusto típico. Funciona como um instrumento de ligação entre o crime e a pena. Tratando-se, porém, de uma ação típica e antijurídica (= injusto penal), cumprirá indagar, finalmente, sobre a culpabilidade do autor, isto é, se, nas condições dadas, poderia ele agir conforme a norma, pois, se tal não lhe fosse possível, porque, por exemplo, agia sob coação moral irresistível, será declarado não culpável. Ao contrário, se lhe é perfeitamente possível atuar segundo o direito, ficará caracterizada a culpabilidade, dando lugar, assim, à punibilidade. A culpabilidade, supondo o injusto penal, é, portanto, o último pressuposto da punibilidade.  Dessa maneira, a culpabilidade é a “reprovabilidade pela formação da vontade”  pela ação de um sujeito que, na situação concreta, podia sujeitar-se aos comandos e às proibições do Direito, mas agiu de forma diversa. Esse agente é assim censurado e reprovado pelo fato típico e antijurídico que cometeu, contrário ao Direito, quando ele podia e deveria agir de maneira diferente. A culpabilidade constitui, essencialmente, segundo a doutrina dominante, um juízo de reprovação sobre o autor do fato ilícito, em face da possibilidade de se lhe exigir, concreta e razoavelmente, uma atuação conforme o direito, de sorte que, se o indivíduo, por falta de maturidade, por defeito psíquico, por desconhecer o conteúdo da proibição normativa ou por se encontrar numa situação na qual não lhe era exigível um comportamento diverso, não pode ser motivado pela norma, ou se a motivação se altera gravemente, faltará a culpabilidade, e ao autor do fato típico e antijurídico não se poderá atribuí-la; logo, não poderá ser sancionado com uma pena. Culpabilidade, portanto, é exigibilidade; inculpabilidade, inexigibilidade.  Incorrendo o autor em um comportamento típico, ilícito e culpável, a punibilidade, por sua vez, vem como conseqüência jurídica do crime, sendo a possibilidade de aplicação da pena. A punibilidade não é ameaça abstrata de aplicação da pena, mas necessidade/possibilidade de sua aplicação, decidida em regra pelo legislador ou, em alguns casos, remetida ao aplicador da lei. Assim, por exemplo, nas hipóteses de previsão do perdão judicial, o fato pode ser típico, antijurídico e culpável, e, em tese, punível. Porém, no caso concreto, em atenção às circunstâncias, a pena pode ser dispensável, afastando-se sua aplicação. Nesse aspecto, a ocasional exclusão da punibilidade, quer pela ausência de uma condição objetiva, quer pela presença de uma escusa absolutória, não exclui o conceito de crime já perfeito e acabado. Desta forma, é punível o fato praticado quando ele é previsto em lei, cometido sem justificação e ainda, censurável. Sendo fato materialmente típico e ilícito, lhe é agregado uma qualidade negativa a priori, cuja elaboração normativa (abstrata) será reproduzida pelo intérprete penal na aplicação concreta, em relação ao fato material praticado pelo sujeito. A conduta prevista como crime pelo legislador será criminosa de fato quando a culpabilidade, como qualidade negativa da ação, for afirmada no plano concreto.

2. DESCRIMINALIZAÇÃO X DESPENALIZAÇÃO

A descriminalização ou abolitio criminis consiste na desconsideração de certa conduta como delito a partir da retirada de seu caráter criminoso. Assim, descriminalizar significa “[...] subtrair da estrutura constituidora do crime – fato típico, antijurídico e culpável – um dos seus elementos, com a conseqüente redução do fato a um evento não cominado com a sanção penal como consequência de sua prática”.  “Perfaz-se a abolitio criminis quando lei posterior não mais tipifica como delito fato anteriormente previsto como ilícito penal.”  É a exclusão, formal ou de fato, do âmbito do Direito Penal, de certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas. O fenômeno da descriminalização constitui-se na exclusão da sanção penal, ou seja, a retirada de determinada conduta do rol dos delitos, no momento em que outros ramos do Direito, ou mesmo outras disciplinas extrajurídicas, forneçam respostas mais adequadas e suficientes, dispensando a necessidade de recorrer à última ratio que é representada pela sanção penal. Descriminalizar significa retirar de algumas condutas o caráter de criminosas. O fato descrito na lei penal deixa de ser crime. Há três espécies de descriminalização: (a) a que retira o caráter criminoso do fato, mas não o retira do âmbito do Direito penal (essa é a descriminalização puramente formal); (b) a que elimina o caráter criminoso no fato e o proscreve do Direito penal, transferindo-o para outros ramos do Direito (essa é a descriminalização penal, que transforma um crime em infração administrativa, v.g.) e (c) a que afasta o caráter criminoso do fato e lhe legaliza totalmente (nisso consiste a chamada descriminalização substancial ou total).  A descriminalização se completa no momento em que “[...] a lei posterior deixa de considerar o fato como criminoso, isto é, se lei posterior extingue o tipo penal [...]”.  Assim, quando houver o reconhecimento da desnecessidade de proteção a um bem jurídico tutelado, de irrelevância ao Direito Penal, o fato anteriormente típico passa a ser descriminalizado. A partir do momento em que o crime é abolido do sistema jurídico, cessam todos os efeitos penais da norma penal, em razão do art. 2º do Código Penal que preceitua: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”. A despenalização, por sua vez, é um tratamento dispensado aos fatos de pequena ou média criminalidade. Consiste no ato de abrandar a pena atribuída a um delito sem, no entanto, descriminalizá-lo, ou seja, sem retirar do fato o caráter de ilícito penal. Dessa maneira, a resposta penal é atenuada, mas o caráter ilícito da conduta permanece. A despenalização, em sentido mais ampliado, consiste na substituição da pena privativa de liberdade por outras sanções, de caráter não detentivo, assim como ocorre, em nosso sistema, com as penas restritivas de direitos (CP, arts. 43 a 48) que são autônomas e substituem a reclusão, a detenção e a prisão simples. Trata-se, portanto, de um processo de redução, maior ou menor, das sanções criminais aplicadas a condutas que ainda persistem como ilícitos criminais. Mas esse conceito restritivo não permite aclarar suficientemente o problema. Daí ser necessário adotar-se um conceito extensivo para compreender todos os casos em que a pena criminal é substituída por sanção de outro ramo jurídico, mantendo-se o caráter ilícito da conduta.  Mediante o processo de despenalização, o fato ilícito cometido pelo agente continua a ser considerado uma infração penal ou infração de qualquer outra natureza. Entretanto, legislador penal opta pela adoção de penas alternativas para sancionar o delito, incluindo todas as possíveis alternativas que possam atenuar e evitar a aplicação da pena privativa de liberdade. Nesse sentido, a descriminalização consiste na retirada formal ou de fato da seara do Direito Penal de condutas, não graves, que deixam de ser delitivas.  A despenalização, por outro lado, age por meio da criação de mecanismos que visam impedir ou evitar a incidência da pena de prisão, ou mesmo que tenham por finalidade evitar ou limitar a execução da pena de prisão, ou ainda substituí-la ou diminuí-la.

3. POSICIONAMENTOS A FAVOR

O raciocínio daqueles que defendem que houve a descriminalização na Lei de Tóxicos, ou seja, o desaparecimento do caráter criminoso da conduta de consumir drogas (e figuras equiparadas do § 1º do art. 28), tem como ponto de partida a análise do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto Lei nº. 3.914/410). Art. 1º Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativamente ou cumulativamente. A partir desse dispositivo penal, Luis Flávio Gomes, que lidera tal posicionamento no Brasil, conclui: Ora, se legalmente (no Brasil) “crime” é a infração penal punida com reclusão ou detenção (quer isolada ou cumulativa ou alternativamente com multa), não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal (com a nova lei) deixou de ser “crime” do ponto de vista formal porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento á programa educativos – art. 28) não conduzem a nenhum tipo de prisão. Aliás, justamente por isso, tampouco essa conduta passou a ser contravenção penal (que se caracteriza pela imposição de prisão simples ou multa). Em outras palavras: a nova lei de tóxicos, no art. 28, descriminalizou a conduta da posse de drogas para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de “infração penal” porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem a pena de prisão não se pode admitir a existência de infração “penal” no nosso país.  Deste modo, alguns doutrinadores motivam esse posicionamento na premissa de que o sistema jurídico penal brasileiro considera legalmente como crime apenas o ilícito penal que tenha como sanção aplicada uma pena de reclusão ou de detenção. Por conseqüência, como o legislador não admite a aplicação de nenhuma pena privativa de liberdade ao usuário, fundamentam pela descriminalização formal dessa conduta. A posse de droga para consumo pessoal deixou de ser formalmente "crime", mas não perdeu seu conteúdo de infração (de ilícito). A conduta descrita no antigo art. 16 e, agora, no atual art. 28 continua sendo ilícita, mas, como veremos, cuida-se de uma ilicitude inteiramente peculiar. Houve descriminalização "formal", ou seja, a infração já não pode ser considerada "crime" (do ponto de vista formal), mas não aconteceu concomitantemente a legalização da droga. De outro lado, paralelamente também se pode afirmar que o art. 28 retrata uma hipótese de despenalização.  Considerando o teor do artigo 28 da Lei n. 11.343/06, verifica-se que não impõe qualquer tipo de prisão ao usuário, cominando apenas como sanções a advertência, a prestação de serviços à comunidade e o comparecimento a programas educativos, permitindo, no entanto, que essas sejam substituídas por admoestação verbal ou multa, em caso de descumprimento. Assim, consideram que o “tipo penal” não comina nem pena de prisão simples ou multa, ou ambas, cumulativamente, o que a classificaria como contravenção penal, nem pena de reclusão ou de detenção, isolada, alternativa ou cumulativamente com a pena de multa, o que impediria ser tal conduta considerada crime. A posse de drogas para consumo pessoal, assim, deixou de ser considerada “crime” para alguns estudiosos do Direito Penal. No entanto, consideram que a conduta descrita continuaria sendo ilícita, porém, sem cunho de natureza penal. Luis Flávio Gomes conclui que a posse de drogas para consumo do próprio agente passou a configurar uma infração sui generis, uma vez que não se trata nem de crime nem de contravenção penal, vez que só foram cominadas sanções de cunho alternativo, afastando a pena privativa de liberdade. Porém, defende que tal comportamento não perdeu o caráter de ilícito, ou seja, continua a ser contrário ao Direito.  Desta forma, uma análise apressada do disposto no art. 28, caput e respectivos incisos, poderia levar a conclusão de que houve, pura e simplesmente, abolitio criminis da posse de droga ilícita para uso pessoal, haja vista que não há, no preceito secundário da norma, no caso representado pelos incisos, cominação de pena privativa de liberdade (reclusão ou detenção). De fato, a resposta penal dada pelo legislador compreende somente as sanções de advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos, como penas principais, e, em caso de descumprimento, subsidiariamente prevê as penas de admoestação verbal e multa.  Ante a inexistência de penas privativas de liberdade (prisão simples, detenção ou reclusão), alguns doutrinadores fundamentam pela ocorrência da descriminalização da conduta de porte de drogas para uso pessoal.

4. POSICIONAMENTOS CONTRA

No entanto, em que pese a posição dos mais renomados juristas brasileiros, a acepção correta é a de que a nova lei não retirou o caráter criminoso da conduta de possuir drogas para uso pessoal e, assim, longe está de ter ocorrido o fenômeno da abolitio criminis. Apenas mudou-se a espécie de pena aplicada a tal conduta, que deixou de ser a pena privativa de liberdade.  Apesar de a nova lei ter adotado políticas criminais de redução de risco e da justiça terapêutica e restaurativa, não foi a intenção do legislador penal descriminalizar a conduta de possuir drogas. Prova maior disso foi o enquadramento dessa conduta no Capítulo III, que recebe a denominação “DOS CRIMES E DAS PENAS”, revelando que a nova lei tem como escopo capitular a posse de drogas para consumo próprio como uma das figuras criminosa que compõe a nova normatização. Além da questão que diz respeito à localização normativa, que parte de uma análise sistemática, tem-se que no final do art. 28 da novel lei há a previsão de que a conduta descrita no tipo penal como criminosa deve ser punida com pena. E mais, as sanções só poderão ser aplicadas por um juiz criminal e não por autoridade administrativa, e mediante o devido processo legal, que, no caso, é o procedimento criminal do Juizado Especial Criminal, conforme expressa determinação legal do art. 48, § 1º, da Lei nº. 11.343/06. A manutenção de tal conduta como criminosa, inclusive, pode ser vislumbrada a partir da intenção do legislador penal no momento em que cominou tais penas, que, ao contrário de ensejar tratamento médico-sanitário a tal comportamento, utilizou a reprimenda penal como forma de sancioná-lo. Porém, para construir essa fundamentação, é necessário entender o Direito Penal como um sistema que deve estar em consonância com todo o ordenamento jurídico brasileiro, a começar pela Constituição da República. Primeiramente, não se pode afirmar que as penas se restringem somente às hipóteses estampadas pela Lei de Introdução ao Código Penal. O Código Penal Brasileiro, bem como a Lei Maior, possibilitaram que a classificação de infração penal ficasse muito mais abrangente. A Lei de Introdução ao Código Penal foi publicada em 1941, durante o Estado Novo que durou de 1937 a 1945, refletindo assim o cenário político de autoritarismo vivido na história do Brasil. Assim sendo, a LICP está ultrapassada nesse aspecto e não pode ditar os parâmetros para a nova tipificação legal do século XXI. Através da LICP o Brasil adotou o conceito bipartido ou dicotômico de infração penal, de acordo com o qual as condutas puníveis dividem-se em duas espécies: crimes ou delitos e contravenções. Conforme salienta Bittencourt, o modelo brasileiro fundamenta-se em questões de política criminal, atribuindo somente a pena imposta a distinção entre as espécies de delito. O fundamento de distinção é puramente político-criminal e o critério é simplesmente quantitativo ou extrínseco, com base na sanção assumindo caráter formal. Com efeito, nosso ordenamento jurídico aplica a pena de prisão, para os crimes, sob as modalidades de reclusão e detenção, e, para as contravenções, quando for o caso, a de prisão simples (Decreto-lei n. 3.914/41). Assim, o critério distintivo entre crime e contravenção é dado pela natureza da pena privativa de liberdade cominada.  Na verdade, a LICP apenas estabeleceu um dos critérios para a diferenciação entre crime e contravenção, através da cominação de diferentes penas aplicáveis a cada tipo de infração penal, em razão da gravidade. Dessa forma, dividem-se as espécies de ilícitos penais em duas classes, atribuindo-se aos ilícitos de maior evidência a tarja de “crime” e para os menos gravosos, a de “contravenção”. É notório que o crime e a contravenção, em essência, não se distinguem. O elemento característico de ambas as categorias é a pena cominada em abstrato no preceito da norma penal incriminadora ou contravencional. Como é sabido, não se pode querer subverter os institutos e as suas conceituações a partir da reprimenda penal prevista, mas sim, neste caso, aos elementos constituintes do crime. O confronto puro e simples da nova Lei com a LICP leva à conclusão de que, efetivamente, o previsto no art. 28 não é crime, uma vez que não tem como pena prevista nem a reclusão nem a detenção. No entanto, não se pode dizer, de forma alguma, que quando penas cominadas não possuam lastro na LICP, automaticamente elas percam a natureza de ilícito penal. Tal conclusão é equívoca, já que parte de uma premissa insuficiente, devendo ser analisado o Direito Penal à luz de todo o sistema jurídico brasileiro. O Código Penal em seu artigo 32 estabelece penas distintas daquele rol trazido pela Lei de Introdução ao Código Penal: Art. 32 As penas são: I – privativas de liberdade; II – restritivas de direitos; III – multa E mais, o art. 43 no mesmo diploma, que regula as penas restritivas de direito, dispõe: Art. 43 As penas restritivas de direitos são: I – prestação pecuniária; II – perda de bens e valores; III – VETADO; IV – prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; V – interdição temporária de direitos; VI – limitação de fim de semana. Deste modo, a Lei de Tóxicos encontra-se em harmonia com o Código Penal Brasileiro, já que, dentre as medidas educativas previstas pelo art. 28, o inciso II prevê uma pena restritiva de direitos, que é a prestação de serviços à comunidade, que ostenta nítido caráter repressivo do ordenamento jurídico-penal. Nesse mesmo diapasão, o artigo 5º, inc. XLVI, da Constituição Federal, que trata do princípio da individualização da pena, dispõe que:

XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes penas: a) privação ou restrição de liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; Nesse confronto da Lei nº. 11.343/06 com a Constituição Federal, mais uma vez, percebe-se que a prestação de serviços à comunidade vem inserida no ordenamento jurídico nacional claramente com o cunho de sanção penal, passíveis de serem aplicadas àqueles que violem os mandamentos proibitivos penais. Com efeito, a única pena prevista, imediatamente, para as condutas descritas no art. 28, caput e §1º, é a de prestação de serviços à comunidade, sabidamente pena substitutiva em nosso ordenamento jurídico. Não há que se dizer que a natureza da sanção prevista pela Lei nº. 11.343/06, pelo menos no que tange ao inc. II, não tem natureza penal. O tipo penal está completo, em plenas condições para ser implementado: existe o preceito primário (descritivo da conduta incriminadora, de portar drogas ilícitas para uso próprio), assim como também se faz presente o preceito secundário, estipulador da sanção penal cabível – ainda que não seja privativa de liberdade – pelo prazo máximo de cinco meses.  Dessa forma, a nova Lei de Drogas, em seu art. 28, elenca as penas adotadas ao infrator da lei, e a prestação de serviços à comunidade se adequa perfeitamente às penas previstas na Constituição Federal, sendo mantido assim o caráter de crime da conduta de posse de drogas para consumo pessoal e para as figuras equiparadas do § 1º. Outra ressalva diz respeito à abertura feita pelo legislador ordinário, no momento em que ele utilizou a expressão “adotará, entre outras, as seguintes penas”. A partir dessa assertiva pode-se concluir que o rol das penas elencadas pela Constituição foi meramente exemplificativo, ficando à cargo do legislador infraconstitucional a possibilidade de adotar outras penas que ali não foram previstas, respeitados os limites impostos pelo art. 5º, inciso XLVII da Carta Magna.  Logo, o art. 5º, inc. XLVI da CF introduziu um permissivo legal, no sentido de que a classificação de infração penal ficasse mais abrangente, não se restringindo somente as hipóteses de penas dispostas na LICP. Entretanto, apesar da falta de cultura nacional quanto à fixação de outras modalidades de pena, foi exatamente seguindo essa orientação permissiva da CF, que o legislador penal, no momento de elaboração da nova Lei de Drogas, criou mais duas penas com cunho eminentemente educacional, o qual intitulou de “medidas educativas”, quais sejam a advertência e a medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Não obstante, o art. 28, § 6º dispõe: § 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submete-lo, sucessivamente a: I – admoestação verbal; II - multa. Assim, a nova lei ainda admite como pena, em caso de descumprimento, a admoestação verbal e a multa, nos termos e critérios estabelecidos no art. 28, §6º, II e art. 29. Nessa esteira de raciocínio, resgatando-se a definição de crime como conduta sancionável com pena, tem-se que o fato de o legislador culminar multa, mesmo que diante do caso de descumprimento da pena principal, já se pode derrocar de vez a tese anteriormente exposta, fundamentada na LICP.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, o comportamento previsto anteriormente pelo art. 16 da Lei nº. 6.368/79, não foi, em hipótese alguma, abolida do mundo jurídico-penal, devendo-se adotar como fundamento para tal posicionamento a teoria da tipicidade. A conduta encontra-se tipificada de maneira ainda mais abrangente do que na legislação anterior, de forma a alcançar mais dois novos núcleos, quais sejam “ter em depósito” e “trazer consigo”. Demonstrada, pois, a continuação do tratamento criminal dado pelo legislador à pessoa que adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, droga, para consumo próprio, pode-se afirmar que o crime continua a existir, uma vez que a estrutura deste continua perfeita, apresentando os elementos tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, presentes no tipo penal adotado no art.28 da novel lei. A conduta descrita no art. 28 da Lei de Tóxicos é típica, na medida em que o legislador descreve como ilícito o tipo penal incriminador, qual seja, adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, droga para consumo pessoal. A ilicitude, por sua vez, se manifesta quando o agente porta drogas para seu consumo próprio, de forma que seu ato perfaz-se contrário ao tipo penal incriminador, prejudicando assim, os bens jurídicos tutelados pela Nova Lei de Drogas. Essa antijuridicidade exprime a relação de oposição entre a conduta do usuário e o Direito. A culpabilidade constata-se quando o usuário, no caso concreto, podia optar por uma conduta não reprovável penalmente, no entanto, não o fez. Agiu assim, voluntariamente, de maneira contrária às vedações legais, sendo censurado e reprovado mediante a aplicação de sanção penal. Diante do exposto, não há como se admitir a tese da descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, vez que permaneceu o caráter incriminatório previsto no art. 16 da legislação anterior. Na verdade, o que ocorreu com a edição do art. 28 da Lei nº. 11.343/06 foi uma medida despenalizadora, tendo em vista que o crime continua a existir, entretanto, o legislador optou por atenuar a penalização deste, vez que se trata de conduta ilícita, porém, de menor potencial ofensivo. Nesse contexto, o caráter ilícito da conduta permanece, entretanto as penas previstas no inc. I e III (advertência sobre os efeitos das drogas e medidas de comparecimento a programa ou curso educativo) afastam, por completo, a aplicação de uma pena prevista constitucionalmente, enquanto que, o inc. II (prestação de serviços à comunidade) se enquadra na penalização proposta pela Carta Magna. Assim, o legislador, quando da opção pelas penas dos incisos I e III, utilizou-se do permissivo constitucional e criou penas alternativas mais brandas, de caráter não detentivo, para aqueles ilícitos menos gravosos, cumprindo desta forma, o objetivo do processo de despenalização, qual seja o de afastar a incidência das penas privativas de liberdade.

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Elaborado em abril/2015

 

Como citar o texto:

PiTHON, Priscilla Passos Lopes..Lei de tóxicos: descriminação de drogas para uso próprio?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 26, nº 1375. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/3610/lei-toxicos-descriminacao-drogas-uso-proprio. Acesso em 5 set. 2016.

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