Resumo da Indagação e do Conflito Interpretativo:

 

A Sociedade Brasileira de Rinologia e Plástica Facial solicita-nos parecer jurídico acerca da existência de conflitos que envolvem as fronteiras de atuação de médicos otorrinolaringologistas e médicos cirurgiões plásticos.

O núcleo dos conflitos diz respeito à existência, ou não, de limites técnicos ou legais para a atuação de médicos otorrinolaringologistas na área anatômica da face humana, notadamente na região do nariz, com o fito de procederem à prática de atos médicos que envolvam técnicas de correção plástica de natureza estética ou reparadora.

Colocada a questão, passamos a emitir parecer jurídico visando desenvolver raciocínio de lógica e hermenêutica jurídica, embasadas em textos legais, interpretação doutrinária e jurisprudencial que regulam a matéria, com compromisso eminentemente técnico-científico.

I.- O Ato Médico e Seu Embasamento Jurídico.

1.- A medicina é quase tão antiga quanto o homem.

2.- Entretanto, no sistema jurídico brasileiro somente no século passado é que esta profissão recebeu tratamento regulamentar do Estado, com a criação, através de um comando constitucional, de uma autarquia Federal - o Conselho Federal de Medicina - com status e poder regulador, fiscalizador e mesmo legislador sobre todas as atividades inerentes ao exercício da medicina em todo o território nacional.

3.- Apesar de todo este "poder" regulador e regulamentador da atividade médica, o Conselho Federal de Medicina relutou, anos a fio, em editar resolução visando definir o "ato médico".

4.- A idéia central dos que defendiam esta relutância era o receio de que ao definir "ato médico" poder-se-ia estabelecer limites ou conflitos indesejáveis à prática da medicina e, por extensão, causar danos aos interesses dos usuários de serviços médicos (pacientes).

5.- Com a evolução científica e tecnológica, naturalmente surgiram outras profissões auxiliares e complementares da medicina, também focadas na busca da saúde humana.

6.- Surgiram, também, as especialidades médicas, que buscam o aprimoramento e aprofundamento dos conhecimentos na conquista da saúde plena.

7.- A diversidade das profissões voltadas à saúde humana e o alto grau de especialização da medicina, têm acarretado severas discussões acerca dos limites e das fronteiras de atuação do médico com relação aos outros profissionais da saúde e entre as especialidades médicas.

8.- Em face do acentuado número de conflitos de toda ordem, surgiu a premente necessidade de editar texto legal que definisse o "ato médico".

9.- Quem primeiro editou texto legal no sentido de estabelecer definição e identificar limites para o "ato médico" foi o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, através da Resolução n.º 121/98, a qual representou verdadeira atitude de vanguarda em defesa do atuar médico.

10.- Nesta esteira e sob forte pressão, o Conselho Federal de Medicina acabou adotando texto legal no mesmo sentido, através da Resolução n.º 1.627/01.

11.- Em que pese ser esta Resolução n.º 1.627/01 contestada por outros Conselhos de regulamentação profissional, é fora de dúvidas que sua edição tem legitimidade, validade, eficácia e aplicação obrigatória erga omnes e força de norma cogente de ordem pública, a teor de artigo de nossa autoria neste sentido.

12.- Assim, embora mais acentuados, os conflitos de fronteira existentes entre a medicina e as outras profissões de saúde encontram um indicativo de norte para a sua solução .

13.- Quando Resoluções editadas por outros Conselhos de regulamentação de profissões voltadas à saúde humana chocam-se, negam ou contrariam a Resolução n.º 1.627/01 relativamente à definição da amplitude, freqüência e extensão dos limites do ato médico haverá a necessidade de interpretação caso a caso, como se tem verificado na prática.

14.- Dúvida surge acerca da existência ou não de limites para a atuação das especialidades médicas.

15.- Duas interpretações devem advir desta situação :

16.- A primeira focada no exercício e na habilitação do profissional médico;

17.- A segunda voltada aos interesses da sociedade representada pelo conjunto (coletividade) dos usuários dos serviços de saúde.

18.- Para se chegar a uma conclusão segura sobre a existência destes limites entre especialidades médicas temos obrigatoriamente que adotar um raciocínio lógico dedutivo. Vamos a ele, portanto :

19.- Ora, o Conselho Federal de Medicina - como dito, uma Autarquia Federal com competência legal para regulamentar, regular e fiscalizar as atividades médicas no sistema jurídico brasileiro foi explícito em sua exposição de motivos que justificou e fundamentou a edição da Resolução n. º 1.627/01, quando assim se pronunciou:

"Ato profissional é como se denomina, de maneira rigorosamente científica, uma ação, procedimento ou atividade que a legislação regulamentadora de uma profissão atribua aos agentes de uma dada categoria profissional; ainda que esta não lhes seja exclusiva, ou seja, privativa daqueles profissionais. Todo ato profissional deve ser praticado por pessoa adequadamente preparada, devidamente habilitada e que esteja exercendo legalmente sua profissão, de acordo com a legislação vigente. Os atos profissionais privativos ou exclusivos de uma profissão configuram o que se denomina o monopólio profissional, que decorre principalmente da necessidade que a sociedade tem daquele serviço e da importância que lhe atribui. Por um lado, os agentes profissionais são considerados peritos naquela ação ou atividade e podem exercê-la livremente no mercado de empregos ou de locação de serviços. Como contrapartida, respondem pelos danos que causarem e prejuízos que acarretarem por imperícia, imprudência ou negligência. Além de estarem comprometidos com uma instituição denominada munus público, que configura certos deveres com a sociedade e com o Estado - tudo isso, como compensação por se lhes assegurar o monopólio do mercado daquele serviço."

20.- Evidente está, que o egrégio Conselho Federal de Medicina reconhece a habilitação técnico-profissional do médico quando este está legalmente habilitado para a promoção da saúde e prevenção da ocorrência de enfermidades ou profilaxia (prevenção primária); a prevenção da evolução das enfermidades ou execução de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos (prevenção secundária); a prevenção da invalidez ou reabilitação dos enfermos (prevenção terciária), sem a imposição de quaisquer limites ou fronteiras, independentemente do profissional ser portador ou não de título de especialista.

21.- Ao ver do Conselho Federal de Medicina, o médico uma vez habilitado legalmente, pode exercitar a medicina de forma ilimitada.

22.- Então, seria de se indagar se esta ausência de limites encontra amparo em outros textos legais que não a Resolução n.º 1627/01 do CFM de modo a que o atuar médico possa ser tido como algo sem limites em relação ao ser humano ?

23.- A resposta é negativa !

24.- O médico pode pratica ato médico de forma ilimitada sem que com isso cometa falha ou incorreção ética perante o Conselho Federal de Medicina.

25.- Entretanto, esta prática não isenta o médico de ser responsabilizado, mesmo perante o Conselho Federal de Medicina - e de forma mais intensa perante toda a sociedade, no caso de praticar ato comissivo ou omissivo culposo ou doloso que coloque em risco a saúde do paciente e/ou da coletividade.

26.- Quaisquer profissionais, de qualquer profissão, que causar dano a um cliente por negligência, imperícia ou imprudência cometem um erro profissional e responderá por sua conduta.

27.- Assim, por exemplo, se um médico com formação clínica exclusiva optar por efetuar um transplante cardíaco eletivo em um paciente, em tese não estará cometendo nenhuma ato contrário à Resolução n.º 1.627/01. Tudo estará bem se tudo correr bem com o paciente.

28.- Entretanto, se restar evidenciado algum dano pré, inter ou pós-operatório a este paciente que guarde nexo de causalidade com a imperícia deste médico, sua conduta será reprovada, tanto na esfera do comportamento ético como também na esfera civil e penal.

29.- É que o próprio Conselho Federal de Medicina, referendado por inúmeros textos legais (Código Civil Brasileiro, Código de Defesa do Consumidor, etc.) reconhece, na Resolução referida e em várias outras, que o médico está comprometido com o exercício de um múnus público que não o desobriga de responder ética, civil e penalmente pelos danos que causar a outrem por negligência, imperícia ou imprudência.

29.- Além do mais a relação médico paciente é uma relação contratual, advindo de um contrato tácito ou expresso, cujo objeto é sempre o benefício do paciente/cliente/usuário do serviço/consumidor.

30.- Ao agir fora de sua especialidade, portanto, o médico assume um risco, embora não possa ser - legalmente - impedido de agir neste sentido.

31.- Este risco será tanto maior quanto mais evidente for a sua falta de preparo para a especialização exigida para o ato médico praticado.

32.- Direito é uma conjugação de três fatores : norma + fato + valor . E dentro destes três critérios cada fato será rigorosamente apurado, tanto em situações processuais que tramitem no Poder Judiciário, como perante o próprio Conselho Federal de Medicina.

33.- Assim, não há mecanismos para se limitar ou restringir o atuar médico no âmbito do Código de Ética Médica.

34.- Mas há severos mecanismos para se corrigir e penalizar excessos negligentes, imprudentes ou imperitos.

35.- Nem se diga que a Resolução CFM n. º 1.666/2003 que dispõe sobre a nova redação do Anexo II da Resolução CFM nº 1.634/2002, que celebra o convênio de reconhecimento de especialidades médicas firmado entre o Conselho Federal de Medicina - CFM, a Associação Médica Brasileira - AMB e a Comissão Nacional de Residência Médica - CNRM, modificou esta situação.

36.- Tal Resolução não impõe limites aos profissionais não especialistas para atuação nas áreas médicas especializadas, pois que, tão somente define e reconhece a forma de serem criados e obtidos os títulos de especialistas médicos.

37.- A única restrição que contempla referida Resolução CFM n. º 1.666/2003 diz respeito à proibição aos médicos da divulgação e anúncio de especialidades ou áreas de atuação que não tenham reconhecimento da Comissão Médica de Especialidades.

Nada mais!

38.- Entretanto, o médico que age fora da sua especialidade, como visto, corre riscos de expor o paciente ou não.

E por este risco é que será julgado, portanto.

39.- É aqui exatamente que o ato médico praticado por não especialista encontra o limite do interesse da coletividade, recebendo o paciente a proteção do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil brasileiro.

40.- Assim, se o médico age como especialista, sem ser, desobserva a técnica recomendada e reconhecida para determinado procedimento e para busca do bem-estar do paciente e da profilaxia, ou da busca do diagnóstico de enfermidades, erra a terapêutica com a qual não está habituado ou não domina, ou deixa passar a oportunidade temporal para a reabilitação de enfermos, comete falha grave que será punível na mesma proporção do dano que causar e da falha que cometer.

41.- Para este fim, em termos éticos, a simples exposição do paciente ao risco, ainda que não ocorram danos, já justificaria, em tese, a incorreção de conduta.

42.- Entretanto, a análise destes procedimentos de especialista, como referido, não podem alcançar um rigor extremo, a ponto de impossibilitar o atuar médico como um todo. Até pelo fato do corpo humano ser um sistema complexo com interatividade absoluta entre os seus vários sistemas fisiológicos, morfológicos, anatômicos e metabólicos.

43.- Enfim, o atuar médico será sempre analisado, e até julgado pelos fundamentos técnicos e científicos aceitos e tidos como adequados pela comunidade médica e científica dentro do princípio da razoabilidade

44.- Neste sentido, concluí a Exposição de Motivos a Resolução CFM 1.627/01 que:

O exercício dos atos médicos é função privativa de quem é formado em Medicina em estabelecimento educacional oficial ou oficialmente reconhecido, estando, portanto, legalmente capacitado. Ademais, exige-se que esteja formalmente habilitado pelo Conselho Regional de Medicina de seu Estado, e registrado no organismo competente de vigilância sanitária do sistema de saúde a que estiver vinculado.

...

O especialista não é nem pode ser um pedaço de médico. É um médico inteiro, que atua com mais desembaraço e maior capacidade em determinada área da Medicina. A despeito disso nem sempre ser verdadeiro na prática, a especialidade deve enriquecer o médico e não empobrecê-lo em sua capacidade profissional, limitando-o.

45.- Assim, o médico não especialista pode praticar o ato médico em toda sua amplitude e extensão respondendo por excessos culposos ou dolosos que cometer direta ou indiretamente. A especialização, portanto, é um plus e não uma reserva técnica ou de mercado que possa ser invocada pelo médico que a detém em detrimento de outro médico.

46.- Da mesma forma, o médico especialista pode praticar atos médicos fora da sua especialidade, pois quem pode o mais pode o menos.

47.- Por isso, a nosso ver, não há previsão legal no sistema jurídico atual para se estabelecer previamente limites para o atuar médico quando este profissional preencher os requisitos regulamentares para o exercício da profissão, não sendo o título de especialista um limitador para o exercício da profissão.

II.- A Atuação dos Otorrinolaringologistas na Área Anatômica da Face Humana e a Cirurgia Plástica.

48.- Tanto o Otorrinolaringologista como o Cirurgião Plástico são médicos com habilitação específica para a prática do ato médico conforme acima exposto.

49.- Mais que isso, na nossa opinião, ambas as especialidades estão habilitadas, por reconhecimento alcançado pelo título de especialista conferido aos seus portadores por suas respectivas Sociedades e por delegação do Conselho Federal de Medicina, a atuarem na região anatômica da face humana, de forma estética e/ou reparadora, indubitavelmente e sem quaisquer restrições.

50.- A Comissão de Residência em ORL da Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia sugeriu e foi aceito pelo MEC, há mais ou menos cinco anos, um currículo onde se tornou obrigatório o ensino de plástica facial na formação do residente de otorrinolaringologia.

51.- Esta situação confere ao médico portador de título de especialista em otorrinolaringologista um preparo adicional técnico para exercitar sua especialidade na região anatômica da face humana inclusive e de forma especial para a prática de cirurgias plásticas estéticas e/ou reparadoras.

52.- A nosso ver, pode mais o otorrinolaringologista. Tem o direito, também, nos moldes da Resolução CFM 1.666/2003 de anunciar e divulgar a sua condição de especialista para execução destes procedimentos, observados os ditames éticos exigidos pelo Código de Ética Médica para publicidade e propaganda.

53.- Ademais, esta é uma tendência científica mundial, servindo como referência o fato das escolas médicas canadenses e americanas pelas quais o médico otorrinolaringologista está autorizado a executar procedimentos de plástica facial, notadamente nas regiões anatômicas do nariz, da boca, da orelha e ortobucomaxilofacial.

54.- Tal conclusão ademais, não afronta o interesse da coletividade e do consumidor, posto que ambos os profissionais especialistas estão perfeitamente habilitados para atuarem naquela região anatômica, possuindo capacidade técnica evidenciada pelo título de especialista alcançado.

55.- Tal assertiva, entretanto, não isenta nenhum dos dois especialistas de responderem por atos omissivos ou comissivos, diretos, ou indiretos, culposos ou dolosos que causem danos aos seus pacientes e usuários dos seus serviços médicos.

III. Conclusão.

56.- Na nossa opinião jurídica:

a) O médico otorrinolaringologista não tem nenhum impedimento ético ou jurídico para praticar atos médicos e de forma específica cirurgia plástica reparadora ou estética na região anatômica da face humana;

b) O médico otorrinolaringologista não tem nenhum impedimento ético ou jurídico para anunciar e divulgar a sua capacidade técnica para praticar atos médicos e de forma específica cirurgia plástica reparadora ou estética na região anatômica da face humana, observados rigorosamente os limites impostos pelo Código de Ética Médica;

c) O médico otorrinolaringologista poderá responder ética, civil e penalmente pelos atos médicos que praticar eivados de incorreção ética, negligência, imprudência ou imperícia nos termos do Código de Ética Médica, Códigos Civil e Penal brasileiros, e, Código de Defesa do Consumidor.

Este, o nosso parecer.

IV.- Bibliografia

MAXIMILIANO, Carlos . Hermenêutica e Aplicação do Direito . Editora Forense . 19ª Edição.

Código de Defesa do Consumidor (Comentado pelos Autores do Anteprojeto) . Editora Forense Universitária . 7ª Ed. 2001 . Pág.937.

Ibdem , pág. 783 .

FRANÇA, Genival Veloso , Comentários ao Código de Ética Médica. 3ª. Ed. Editora Guanabara Koogam, p.01.

Nemetz, Luiz Carlos . "As Fronteiras Entre o Ato Médico Exclusivo e as Atividades de Outras Profissões Voltadas à Saúde Humana. Um Estudo Hermenêutico, Doutrinário e Jurisprudencial da Resolução CFM nº 1.627/2001" . In. www.nemetzadvocacia.com.br .

(Elaborado em novembro/2004)

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Como citar o texto:

NEMETZ, Luiz Carlos.Existem Limites e/ou Fronteiras Técnicos ou Legais Para a Prática de Ato Médico no Âmbito das Especialidades Médicas: Uma Análise Doutrinária e Jurisprudencial.. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 1, nº 103. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/409/existem-limites-eou-fronteiras-tecnicos-ou-legais-pratica-ato-medico-ambito-especialidades-medicas-analise-doutrinaria-jurisprudencial-. Acesso em 22 nov. 2004.

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