Resumo: O escopo do presente artigo é analisar, a partir da jurisprudência constitucional, o reconhecimento, ainda que implícito, do biocentrismo nos julgados do Supremo Tribunal Federal, em especial no que toca à vedação de práticas cruéis e degradantes envolvendo animais. O movimento internacional pelo fortalecimento do biocentrismo ganhou especial relevância nas últimas décadas, culminando em uma série de documentos e declarações que buscaram estabelecer um tratamento diferenciado em prol da proteção do meio ambiente e de seus elementos. Para tanto, há que se reconhecer que, tradicionalmente, o meio ambiente foi considerado a partir de uma perspectiva antropocêntrica-utilitarista, ou seja, a manutenção e a preservação se davam a fim de atender as necessidades humanas. Contudo, a partir de 1972, com a Declaração de Estocolmo, o meio ambiente passa a receber maior atenção, sobretudo no que toca à necessidade de preservação, com efeito de assegurar um habitat para o desenvolvimento não apenas da espécie humana, mas de todas as demais. Igualmente, ao se reconhecer a fundamentalidade do acesso ao meio ambiente e sua condição como direito humano típico de terceira dimensão, passa-se a fortalecer a premissa de preservação para as futuras gerações, inaugurando um paradigma de solidariedade intergeracional. Assim, o meio ambiente passa a receber proeminente atenção, notadamente na órbita internacional, com a realização de um sucedâneo de documentos em prol de sua preservação e manutenção. A Suprema Corte Brasileira, assim, em observância a mens legis contida no artigo 225, §1º, inciso VII, reitera o entendimento que, no Estado Democrático de Direito, descabe a permanência de práticas culturais que objetivem dispensar um tratamento meramente degradante aos animais.

Palavras-chave: Meio Ambiente. Biocêntrismo. Minimo Existencial. Dignidade da Pessoa Humana. STF.

1  INTRODUÇÃO

Em sede de comentários introdutórios, destaque-se que com o aprimoramento da concepção de meio ambiente e o desenvolvimento da visão holística, surge uma nova ótica dentro da Comunidade Internacional, interagindo com a ideia da necessidade de preservação não apenas do meio biótico e os recursos naturais, mas também os processos que ocorrem naturalmente no ambiente e dos quais resulta o equilíbrio ecológico.

Em decorrência das ameaças advindas das consequências da degradação ambiental provocadas pela ação humana no planeta, principalmente a partir da segunda metade do século XX, conquistou-se, por meio de uma "consequência coletiva", o início de um marco jurídico regulatório internacional, pelo reconhecimento de que não bastam direitos humanos de liberdade (primeira dimensão) e de igualdade (segunda dimensão), pois para se conquistar condições de vida sadia, é imprescindível a manutenção do equilíbrio do meio ambiente, cuja qualidade permita uma vida de dignidade e bem-estar, enquanto um direito humano de fraternidade, que impõe, inclusive, a responsabilidade das atuais gerações para com as futuras gerações. (LUCENA, 2014, s.p)

Houve seguramente, de qualquer modo em sua percepção, uma grande evolução com a passagem do crescimento econômico a qualquer custo para as formas de desenvolvimento menos agressivas ao meio. As estruturas políticas, sociais e econômicas tornaram-se insensíveis à degradação generalizada do mundo natural. Contudo, o sistema jurídico é uno e inter-relacionado, devendo ser interpretado de maneira indivisível, respeitados os princípios e a hierarquia das normas. Além do mais, em se tratando de Meio Ambiente, requer-se uma interpretação sistemática da Constituição. Assim, a Carta Constitucional de 1988 alargou significativamente o campo dos direitos e garantias individuais fundamentais, na construção de um Estado Democrático de Direito que se afirma através dos fundamentos e objetivos perseguidos pela nação.

2  DO DELINEAMENTO DO VOCÁBULO “MEIO AMBIENTE” NO CENÁRIO LEGISLATIVO NACIONAL

Na seara ambiental em que se embasará a presente reflexão, apresenta-se de singular importância a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada em 1972, em Estocolmo, na Suécia, apresentando as primeiras normas, em âmbito internacional, voltadas para o meio ambiente, deslocando o foco meramente econômico que antes vigorava para um eixo que revestiu o ambiente de fundamentalidade à vida e reconhecendo-o como direito inerente a pessoa humana. Nesta dicção, o equilíbrio ecológico foi idealizado na Conferência de 1972, consagrando a proteção ambiental em sete pontos distintos do preâmbulo, além de vinte e seis princípios referentes a comportamentos e responsabilidades destinados a nortear decisões relativas à questão ambiental, com o objetivo de “garantir um quadro de vida adequado e a perenidade dos recursos naturais” (PASSOS, 2006, p. 08).

Dentre os princípios e paradigmas advindos da Conferência de Estocolmo de 1972, é importante conferir especial ênfase ao princípio nº 1, maiormente quando verbaliza, com clareza ofuscante, que o meio ambiente é revestido de fundamentalidade para o desenvolvimento humano, sendo condição indissociável para a realização de uma série de outros direitos, a exemplo de liberdade, igualdade e condições de vida adequada. Para tanto, confira-se, in verbis, a redação do dispositivo supramencionado:

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. (ONU, 1972).

A definição legal de meio ambiente não era realidade no âmbito jurídico brasileiro até a promulgação da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, responsável por abrigar, em seu artigo 3º, inciso I, a definição legal de meio ambiente como "o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981). Com efeito, o mesmo diploma legal estabelece, ainda, na redação de seu artigo 2º, o meio ambiente como “um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo” (BRASIL, 1981). Em complemento às ponderações apresentadas até o momento, cuida destacar que, no entender de Paulo Affonso Leme Machado (2013), a referida lei definiu o meio ambiente da forma ampla, fazendo, compreender que atinge tudo aquilo que lhe permite a vida.

Nesta senda, ainda, Fiorillo (2012), ao tecer comentários acerca da acepção conceitual de meio ambiente, coloca em destaque que tal tema se assenta em um ideário jurídico indeterminado, incumbindo, ao intérprete das leis, promover o seu preenchimento. Dada à fluidez do tema, é possível colocar em evidência que o meio ambiente encontra íntima e umbilical relação com os componentes que cercam o ser humano, os quais são de imprescindível relevância para a sua existência. O Ministro Luiz Fux, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 4.029, salientou, com bastante pertinência, que:

[...] o meio ambiente é um conceito, hoje geminado com o de saúde pública, saúde de cada indivíduo, sadia qualidade de vida, diz a Constituição, é por isso que estou falando de saúde, e hoje todos nós sabemos que ele é imbricado, é conceitualmente geminado com o próprio desenvolvimento. Se antes nós dizíamos que o meio ambiente é compatível com o desenvolvimento, hoje nós dizemos, a partir da Constituição, tecnicamente, que não pode haver desenvolvimento senão com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A geminação do conceito me parece de rigor técnico, porque salta da própria Constituição Federal. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão proferido em Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 4.029/AM). 

Prosseguindo na exposição, e igualmente compartilhando do entendimento acerca da amplitude da definição legal, o professor Celso Fiorillo acrescenta que a intenção do legislador foi de criar um conceito jurídico indeterminado facultando a existência de um espaço positivo de incidência de norma. (FIORILLO, 2012, p.77) Ademais, prima reconhecer que o conceito de meio ambiente foi, claramente, recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Neste sentido, o Constituinte Originário estabeleceu, na redação do artigo 225, a tutela ao bem jurídico ambiental, cujo objetivo é uma “sadia qualidade de vida”, para todos, presente e futuras gerações (solidariedade transgeracional). Sob esse contexto, entende José Afonso da Silva (2011) que, diante da deficiência do legislador em criar a norma prevista no art. 3º, inciso I, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, não se preocupou em estabelecer os marcos limítrofes do bem jurídico.

Entrementes, com o advento de uma nova realidade jurídica pela Constituição Federal de 1988, possibilitou-se outra definição, ou seja, uma tutela jurisdicional considerada mais ampla e mais abrangente. Neste sentido, meio ambiente é definido como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas” (SILVA, 2011, p. 20).  Além disso, reconhece-se que o meio ambiente foi alçado à condição de direito de todos, presentes e futuras gerações, reconhecendo, de maneira cristalina, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como típico direito de terceira dimensão, ou seja, direito recoberto pelo manto da solidariedade, ultrapassando a conotação individualista e passando a conceber o gênero humano (coletividade) como destinatário. Disso decorre o entender de José Afonso da Silva (2011) em que é encarado como patrimônio, cuja preservação, recuperação ou revitalização se tornaram um imperativo do Poder Publico, sendo assim, compromete-se a uma boa qualidade de vida.

Com a nova sistemática entabulada pela redação do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o meio ambiente passou a ter autonomia, tal seja não está vinculada a lesões perpetradas contra o ser humano para se agasalhar das reprimendas a serem utilizadas em relação ao ato perpetrado. Figura-se como bem de uso comum do povo o segundo pilar que dá corpo aos sustentáculos do tema em tela. O axioma a ser esmiuçado, está atrelado o meio-ambiente como vetor da sadia qualidade de vida, ou seja, manifesta-se na salubridade, precipuamente, ao vincular a espécie humana está se tratando do bem-estar e condições mínimas de existência. Igualmente, o sustentáculo em análise se corporifica também na higidez, ao cumprir os preceitos de ecologicamente equilibrado, salvaguardando a vida em todas as suas formas (diversidade de espécies). (RANGEL, 2012, s. p.)

Ao lado disso, cuida reconhecer que essa legislação atendeu, em determinada medida, às recomendações da Carta da Terra e da Agenda 21, aprovadas durante a ECO-92, no Rio de Janeiro. Os países signatários se comprometeram a criar leis para a responsabilização por danos ao meio ambiente e para a compensação às vítimas da poluição. Uma análise revestida de tecnicidade permite compreender que o meio ambiente é considerado em diversos aspectos, os quais, reunidos, substancializam o ideário axiológico do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

3 O RECONHECIMENTO DO BIOCENTRISMO PELO STF

Em harmonia com o expendido até o momento, quadra evidenciar que a tutela e proteção ofertada ao meio ambiente natural, tal como a responsabilidade do Poder Público em proporcionar garantias de efetivação do direito a um ambiente ecologicamente equilibrado substancializa-se por um sucedâneo de dispositivos insculpidos no artigo 225, em especial a partir do §1º, da Constituição Federal de 1988. Nesta esteira, incumbe salientar que o inciso I e VII, de maneira ofuscante dentre outras disposições, coloca em destaque a imprescindibilidade de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas (inciso I) e proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (inciso VII). No entendimento de José Afonso da Silva (2011), a Constituição Federal impõe ao “Poder Publico”, que se leia como as entidades federativas da nação (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), competentes para a proteção ambiental.

Repita-se, por carecido, a perspectiva contemporânea reclama a superação do paradigma utilitarista exploratório do meio ambiente, passando a identifica-lo como uma teia de relações e interações complexas e sensíveis que alcancem o ser humano. O meio ambiente natural somente será preservado quando houver a consciência de que os elementos que o constituem devem ser objeto de políticas harmônicas visando à preservação do ecossistema dentro de um conceito amplo. A Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, estabelece um grande salto na história ao inserir disposições inteiras sobre o meio ambiente. O artigo 225 da Constituição Federal de 1988 consagra o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, desta forma, atribui à sociedade civil e à organização estatal a responsabilidade da tutela na proteção do meio ambiente e de todas as formas de vida nele existente, considerando-os como elementos imprescindíveis ao desenvolvimento humano e à própria dignidade da pessoa humana. In verbis:

 

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e de preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988)

 

No entanto, o artigo 225 da Constituição Federal (1988), estende-se além da positivação do direito-dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado meramente, o artigo constitucional eleva o nítido conteúdo programático, obrigando o Estado a realizar contínuos avanços na concretização da garantia do direito ao meio ambiente equilibrado. Nesse sentido, nos dizeres de José Afonso da Silva (2010) o meio ambiente é definido como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida humana”. O conceito de meio ambiente supera a denominação consuetudinário de bem público, haja vista que não exclusividade do Estado, mas alcança toda a coletividade, no dever de defendê-lo e preservá-lo. Ao tratar da definição de meio ambiente, Hugo Nigro Mazzilli destaca que:

O conceito legal e doutrinário é tão amplo que nos autoriza a considerar de forma praticamente ilimitada a possibilidade de defesa da flora, da fauna, das águas, do solo, do subsolo, do ar, ou seja, de todas as formas de vida e de todos os recursos naturais, como base na conjugação do art. 225 da Constituição com as Leis ns. 6.938/81 e 7.347/85. Estão assim alcançadas todas as formas de vida, não só aquelas da biota (conjunto de todos os seres vivos de uma região) como da biodiversidade (conjunto de todas as espécies de seres vivos existentes na biosfera, ou seja, todas as formas de vida em geral do planeta), e até mesmo está protegido o meio que as abriga ou lhes permite a subsistência. (MAZZILLI, 2005, p. 142-143)

A Constituição brasileira de 1988, além de possuir um capítulo próprio para as questões ambientais (Capítulo VI, do Título VIII), trata, ao longo de diversos outros artigos, das obrigações da sociedade e do Estado brasileiro para com o meio ambiente. A fruição de um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado foi erigida em direito da coletividade pela ordem jurídica vigente, o que se revela num notável avanço para a construção de um sistema de garantias da qualidade de vida dos cidadãos. A Constituição Federal reconhece o meio ambiente como imprescindível para o conjunto da sociedade, na pretensão da dignidade da pessoa humana, ou ainda, na busca de um desenvolvimento sustentável. (SILVA; RANGEL, 2016). Observa-se que há, no contexto constitucional, um sistema de proteção ao meio ambiente que ultrapassa as meras disposições esparsas. Em sede constitucional, são encontráveis diversos pontos dedicados ao meio ambiente ou a este vinculados direta ou indiretamente.

Partindo do postulado da solidariedade social é que emana o direito da terceira geração, cujos titulares não recaem no indivíduo em si, mas na própria coletividade ou em agrupamentos sociais. São estes, os direitos difusos e coletivos, como é o caso, dos direitos ao meio ambiente equilibrado, à paz, ao desenvolvimento, à proteção dos consumidores, à tutela do patrimônio histórico e cultural. Vocacionam-se à busca de uma melhor qualidade de vida à comunidade. O reconhecimento de direitos fundamentais de terceira geração costumeiramente vem sendo assimilado pela jurisprudência dos Tribunais, em especial as instâncias extraordinárias. Isso ficou bem esclarecido em passagem da ementa atinente ao Mandado de Segurança nº 22.164, de relatoria do Ministro Celso de Mello, em órgão do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, publicado no Diário da Justiça de 17 nov. 1995, quando foi reconhecido, com clareza ofuscante que:

O direito à integridade do meio ambiente - típico direito de terceira geração - constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo indentificado (sic) em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos da segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexaurabilidade. (BRASIL, 1995)

Os direitos da terceira dimensão, com maior relevância para este estudo, caracterizam o rompimento com o individualismo e surgimento de interesses difusos, não limitando os destinatários do direito aos indivíduos em si, ou a um grupo determinado de pessoas, mas a um número indeterminado de pessoas detentoras de direitos fundamentais em comum, acentuando o verdadeiro sentido de fraternidade. Neste sentido, Ingo Sarlet (2010, p. 48) assevera que os direitos fundamentais albergados sob a rubrica “direitos de terceira dimensão”, também nominados de “direitos de fraternidade” ou “direitos de solidariedade”, apresentam como aspecto diferenciador o fato de se desvincularem, inicialmente, da figura do homem – indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humana (família, povo, não) e, consequentemente, caracterizando-se como direitos de titularidade coletiva ou difusa.

Embora o ideal fosse o homem reconhecer que está inserido como um dos elementos fundamentais dessa teia complexa que compõe o ambiente, em regra não é o que ocorre, ele se posiciona como “senhor” da natureza e principal predador dos recursos naturais, atendendo anseios antropocêntricos. Por essa perspectiva, Paulo de Bessa Antunes (2010), em sua obra, vai asseverar, ainda, que o consumo dos recursos naturais encontra clara vinculação a um padrão de desenvolvimento adotado por cada nação, considerada de maneira isolada, bem como, essencialmente, pelo papel desempenhado na ordem econômica internacional. Afonso da Silva (2004, p. 66) afirma que no sentido qualificativo do termo direito fundamental do homem, a palavra ‘fundamental’ traduz aquela circunstância essencial ao indivíduo, ou seja, imprescindível para sua existência; e quando se atribui esse direito ao homem’ é no sentido de que todos igualmente devem ser materialmente efetivados nessa garantia.

4 MÍNIMO EXISTENCIAL SOCIOAMBIENTAL E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A Constituição da Republica do Brasil de 1988 eleva a dignidade da pessoa humana como princípio basilar, expressa no artigo 1º, III, da Lei Maior. Desta forma, passa à essência dos direitos fundamentais, princípio de valor supremo da legislação brasileira. Para tanto, é essencial a observância da previsão da dignidade da pessoa humana no artigo inicial da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 sancionando a importância que o principio, teoricamente antropocêntrico eleva ao ordenamento jurídico brasileiro. O doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet, analiticamente, define a dignidade da pessoa humana como:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2001, p. 60).

A Constituição Federal de 1988 alargou significativamente o campo dos direitos e garantias individuais fundamentais, na construção de um Estado Democrático de Direito que se afirma através dos fundamentos e objetivos perseguidos pela nação. No mesmo sentido, Ana Paula de Barcellos (2002) defende que o conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana se relaciona com os chamados direitos fundamentais, isto é, terá respeitada sua dignidade o indivíduo cujos direitos fundamentais forem observados e realizados, ainda que a dignidade não se esgote neles.  Quanto ao âmbito de aplicação desta dignidade, acredita-se que deve ser aplicada e garantida ao indivíduo em si mesmo, isto é, pelo simples fato de ser indivíduo e de possuir dignidade inerente à sua condição, independente do estado físico que o ser humano esteja para expressar sua vontade, pois tem o direito de ser tratado com dignidade.

O meio ambiente equilibrado e sadio encontra-se erigido à seara da salvaguarda dos direitos fundamentais, considerada a atual definição destes, que subsume a compreensão do princípio da dignidade humana, sob outro enfoque, dada a vinculação à liberdade de autonomia, proteção da vida e outros bens fundamentais contra as ingerências estatais. (SIQUEIRA, 2010, p. 227). Houve seguramente, a partir da Carta Constitucional de 1988, um alargamento significativo no campo dos direitos e garantias individuais fundamentais, na construção de um Estado Democrático de Direito que se afirma através dos fundamentos e objetivos perseguidos pela nação. Os direitos fundamentais destacam-se, neste contexto, como elementos básicos para a realização do principio democrático.

Prosseguindo na exposição, prima evidenciar, a afirmativa de Sarlet (2001) de que as prestações positivas do Estado concretizam os direitos sociais, econômicos e culturais, uma vez que constituem exigência e concretização da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, os direitos sociais de cunho prestacionais estão a serviço da igualdade e da liberdade material, objetivando em última análise, a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e a garantia de uma existência com dignidade, resultando na proteção do mínimo existencial, compreendido não como um conjunto de prestações suficientes apenas para assegurar a existência (a garantia da vida) humana, mais do que isso, uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável. Ainda partindo do mesmo entendimento, Amartya Sem (2000) acredita que só há desenvolvimento em uma sociedade a partir do momento em que se eliminam as privações de liberdade que limitam as escolhas e oportunidades dos indivíduos. Para tanto, a “capacidade” é um tipo de liberdade para se ter estilos diferentes, e tais liberdades só serão exercidas quando o Estado proporcionar ao homem o mínimo de bem estar para que seja possível realizar as suas próprias escolhas .Neste sentido o autor afirma:

(...) a liberdade individual é essencialmente produto social, e existe uma relação de mão dupla entre as disposições sociais que visam expandir as liberdades individuais e o uso de liberdades individuais não só para melhorar a vida de cada um, mas também para tornar as disposições sociais mais apropriadas e eficazes. (SEN, 2000. p. 10)

Neste ponto, deve-se interpretar a liberdade como sendo um direito humano fundamental, positivado em diversas ordens jurídicas, sendo um direito individual com finalidade precípua de atender a Dignidade Humana. Isto porque, o ser humano, gozando de sua liberdade, poderá exercer outros direitos que também lhe são inerentes, direitos esses necessários para construir uma vida digna. Nos dizeres do pensamento de Sem (2000), quem não tem capacidade de escolher não tem liberdade e nem como se desenvolver. O art. 225 da CF/88 estabelece a existência de uma norma vinculada ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, onde todos os indivíduos são titulares desse direito, sendo o direito da cada um como pessoa humana. Nas palavras de Fiorillo (2012), o bem ambiental é, portanto, um bem que tem como característica constitucional mais relevante por ser essencial a sadia qualidade de vida, sendo ontologicamente de uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais, sendo, portanto, bens fundamentais à garantia da dignidade da pessoa humana. Portanto, dentre as medidas positivas prestadas por parte do Estado encontra-se o direito de se ter um meio ambiente sadio e equilibrado, fundamental para que o ser humano desfrute de uma vida digna, com saúde e possibilidade de viver com liberdade, já que o indivíduo será livre quando exercer o poder de escolha em sua vida, base do mínimo existencial.

5 ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO?  A (RE)ESTRUTURAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL-AMBIENTAL DO STF

Conceitos novos que desmontam o raciocínio linear e materialista acumulado historicamente começam a emergir no meio da ciência em geral, na busca de encontrar soluções e explicar amplos perigos do aquecimento global. Prima evidenciar, através de um viés mais complexo, comprovado pela própria abordagem biológica tradicional, o fato que a evolução das sociedades em relação à conscientização acerca das questões ambientais trouxe, forçosamente, a necessidade de buscar soluções a questionamentos, outrora visto como determinados. Neste aspecto, é importante reconhecer que a ampliação da visão antropocêntrica, estabelece a ótica a qual o ser humano deixa de ser o centro do universo e passa a integrar a natureza, tornado-se indissociável do meio ambiente, para o qual passa a ter responsabilidade moral e jurídica na busca pelo equilíbrio da vida.

Diante da massiva busca pela determinação do conceito jurídico de meio ambiente, cabe, deste modo, ao intérprete do direito o preenchimento e acompanhamento evolutivo diante do conteúdo da novíssima ciência do Direito Ambiental. Destarte que o conceito de meio ambiente, é arraigado por inúmeros princípios, diretrizes e objetivos que compõem um Estado Socioambiental de Direito.  Em suma, não se pode perder de vista que o direito ambiental tem como objeto maior a tutela da vida saudável, de modo que incorporar os princípios basilares se demonstra indissociável no cumprimento do objetivo de garantir um ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. A dialética entre a natureza e a realidade social é uma unidade constantemente oxigenada, que, longe de ser estanque, permanece em constante modificação. (ARAUJO, s. d., p. 6)

A luz do expendido, a Constituição Federal de 1988, reconhece a proteção da dignidade da pessoa humana a sua existência e a sua eminência, configurando-se num valor supremo da ordem jurídica, ao passo que a declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito. A dignidade da pessoa humana é “um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”. (SILVA, 1998, p. 91).  Ora, nesta senda de exposição, Nunes (2002) relata que a República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito estabelecido topograficamente em sua Constituição, por meio de seu artigo 1o, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do sistema constitucional, servindo de resguardo para os direitos individuais e coletivos, além de revelar-se um principio maior para a interpretação dos demais direitos e garantias conferidas aos cidadãos. A garantia de uma efetiva dignidade da pessoa humana e, por decorrência, de uma vida digna e saudável vincula-se à existência e manutenção de um meio ambiente saudável e equilibrado. Cabe salientar, ainda, os ensinamentos de Sarlet e Fensterseifer quando tratam desta relação específica, defendendo que:

Não se pode conceber a vida – com dignidade e saúde – sem um ambiente natural saudável e equilibrado. A vida e a saúde humanas (ou como refere o caput do art. 225 da CF88, conjugando tais valores, a sadia qualidade de vida) só estão asseguradas no âmbito de determinados padrões ecológicos. O ambiente está presente nas questões mais vitais e elementares da condição humana, além de ser essencial à sobrevivência do ser humano como espécie natural. (FENSTERSIFER; SARLET, 2013, p. 50)

Nessa perspectiva, o direito a um meio ambiente sadio configura-se como extensão ou corolário do direito à vida. Logo, têm os Estados a obrigação de evitar riscos ambientais que causem prejuízo à vida, e de colocar em funcionamento sistemas de monitoramento e alerta imediato para detectar riscos ambientais sérios e sistemas de ação urgente para lidar com tais ameaças, utilizando de seu Poder de Polícia para impor uma fiscalização eficaz.

Neste diapasão, deve-se entender que o direito ao meio ambiente sadio é um direito fundamental, decorrente do “direito à vida”, a teor do art. 5º, § 2º, combinado com o art. 225, caput, ambos da Constituição Federal de 1988. Desta forma o direito ao meio ambiente consiste no núcleo do chamado “mínimo existencial”, estreitamente vinculado ao princípio da “dignidade da pessoa humana”, um dos fundamentos do Estado Brasileiro, disposto no art. 1º, III da Carta Magna. Compreende-se, portanto, através da Jurisprudência da Suprema Corte Federal, a vinculação do mínimo existencial com a dignidade da pessoal humana, de acordo com o entendimento do Ministro Celso de Mello em seu voto na ADI n. 3540-MC/DF, posto que afirma ser necessária a garantia do meio ambiente para que permita a sociedade desenvolver todas as suas potencialidades em clima de dignidade e de bem estar. (BRASIL, 2005). De maneira cristalina, a Constituição Federal de 1988 trouxe à baila uma nova categoria de bem, qual seja, o bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida, dentro de um contexto de tutela de direitos adaptados às necessidades, principalmente metaindividuais ou transindividuais. Desta forma, o bem ambiental não se confunde com os denominados bens públicos, nem tampouco com os bens classificados como privados. Surge como conceito disposto na Lei Federal n. 8078/90, que orienta a Constituição de 1988, fundamentando a natureza jurídica de um novo direito: o Direito Difuso.

Após a discussão a respeito da garantia do meio ambiente equilibrado como parte de um mínimo vital e fundamental para se desfrutar de uma vida digna, torna-se inquestionável o papel do Estado Brasileiro de atuar no sentido de fazer valer essa garantia através de edições de Leis e de Políticas Públicas que visem proteger não só o meio ambiente a se esta integrado, mas também os elementos que devem ser preservados em seu interior, oriundos da Sociobiodiversidade, tão necessária para a construção de uma vida digna. Como preconiza Robert Alexy (2008) não deve existir hierarquia entre direitos fundamentais no plano abstrato. A priori, nenhum direito fundamental se coloca em plano superior ou inferior. Apenas diante de um conflito in concreto é que o método da ponderação permeado pela máxima da proporcionalidade deverá afastar um princípio em prol da execução momentânea do outro.

Como observa Tiago Fensterseifer (2008, p. 47), a própria vida guarda consigo o elemento dignidade, ainda mais quando a dependência existencial entre as espécies é cada vez mais corroborada pela ciência, consagrando a denominada teia da vida. Identificando uma dimensão ecológica do princípio da dignidade da pessoa humana, esse autor assevera que “a qualidade ambiental, à luz da teoria constitucional dos direitos fundamentais, configura-se como elemento inte­grante do conteúdo normativo do princípio da dignidade da pessoa humana, especialmente em razão da sua im­prescindibilidade à manutenção e à existência da vida”, alçando o meio ambiente ecologicamente equilibrado à condição fundamental para o desenvolvimento humano. Vê-se que, na dimensão ecológica da dignidade humana, esta é deslocada de uma concepção onde o ser humano é encarado isoladamente e opera-se a sua inserção em uma dimensão existencial mais ampla do ser humano, abarcando todas as demais manifestações que fundamentam a sua existência. Decorre daí a ideia de uma dimensão ecológica para o princípio da dignidade da pessoa humana (FENSTERSEIFER, 2008, p. 34).

Desta feita, o reconhecimento da dignidade a ser reconhecida também a animais, não humanos, eleva o a sociedade a outro patamar, e desta forma o Direito também. A referência adotada ao aludir os seres sensitivos, no entender de Peter Singer (2002) embasa-se no fato de ser é um dos atributos de que são dotados os animais para que se reputem dignos do mesmo tra­tamento dispensado aos seres humanos. No saber do autor, sendo os animais seres dotados de sensibilidade e consciência, devem ser tratados com o mesmo respeito com que são tratados os seres humanos. O princípio da igual consi­deração de interesses deve ser aplicado sem distinguir o animal humano do não humano, devendo a capacidade de sofrer e de sentir ser levada em conta. A posse de senciência passa a figurar como um critério ético capaz de atribuir status moral aos animais, que passam a integrar a comunidade moral juntamente com os seres humanos, legitimando o reconhecimento de sua dignidade. Nesta linha de exposição, inclusive, é pertinente trazer o entendimento firmado por Sarlet e Fensterseifer, quando acena que:

Pode-se falar também de limitações aos direitos funda­mentais (dos seres humanos) com base no reconhecimen­to de interesses (jurídico-constitucionais) não humanos – se não direitos! – legitimados constitucionalmente, como é facilmente identificado na tutela dispensada à fauna e à flora através da vedação constitucional de “práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (art. 225, § 1º, VII) (SARLET; FENSTERSEIFER, 2011, p. 42).

 

O biocentrismo coloca o próprio ecossistema como centro e reconhece o valor da vida dos animais não-humanos e da flora, todos em interdependência com a raça humana. A ética, outrora centrada no ser humano, verte-se para uma consideração profunda sobre o equilíbrio da teia da vida e da sustentabilidade ecológica. Nesse contexto, o artigo 225, §1º, VII da CF/88 defere aos animais a titularidade de direitos e de dignidade, de maneira que quaisquer atos humanos que atentem contra a sua vida, integridade física ou psicológica, não importando o motivo, devem ser alvo de reproche e sanção penal. (RANGEL, 2010, p. 95). O Supremo Tribunal Federal, através do Min. Celso de Mello, conceituou o direito ao meio ambiente “como um típico direito de terceira geração que assiste de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações”. (MS 22.164-0-SP, j. 30.10.1995, DJU 17.11.1995. V.José Adércio L. Sampaio)

A legislação brasileira apregoa uma multiplicidade de entendimentos quanto à Natureza jurídica dos animais em desconformidade com os entendimentos dos doutrinários mais contemporâneos, ainda que, influencia no tratamento diário conferido aos mesmos. No entanto, percebe-se em inúmeros julgados e casos levados aos tribunais uma possibilidade de mudança, com destaque no presente artigo quanto ao Supremo Tribunal Federal, em julgamentos que geraram a discussão quanto ao conflito de algumas formas de manifestação cultural e entretenimento com utilização de animais e crueldade. (CHALFUN, 2016, p. 57) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nos casos de colisão entre as normas envolvendo, de um lado, a proteção de manifestações culturais (art. 215, caput e § 1º) e, de outro, a proteção dos animais contra o tratamento cruel (art. 225, § 1º, VII), tem sido firme no sentido de interditar manifestações culturais que importem crueldade contra animais. O Supremo Tribunal Federal demonstra a sustentação de repudiar a autorização ou regulamentação de qualquer prática, ainda que esta, sob justificativa de preservar a cultura, submeta animais a praticas violentas ou cruéis, por contrariar o teor do art 225, § 1°, VII, da Constituição da Republica.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou em quatro casos envolvendo a colisão entre a proteção de manifestações culturais e a vedação de crueldade contra animais. No Recurso Extraordinário 153.531, esteve em discussão se a manifestação pretensamente considerada cultural, chamada “farra do boi”, encontraria respaldo na Constituição. Por maioria de votos, a Segunda Turma entendeu que pela improcedência, pois a referida prática, ao submeter animais a atos de crueldade, violava o art. 225, § 1º, VII, embora não lhe tenha sido negado o caráter de manifestação cultural. O caso recebeu a seguinte ementa:  

Costume - Manifestação Cultural - Estímulo - Razoabilidade - Preservação da fauna e da flora - Animais - Crueldade. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado "farra do boi". (RE 153.531 Rel. Min. Francisco Rezek. Rel. para o acórdão Min. Marco Aurélio, j. em 03.06.1997, DJ 13.03.1998).

Não obstante o acerto no julgamento, pois à luz da regra da proporcionalidade e das circunstâncias da farra do boi, a proteção dos animais contra tais atos de crueldade deve eclipsar in concreto e transitoriamente o direito à manifestação cultural, carece o julgamento de método e consistência argumentativa. É que adota posições extremadas e fomenta uma hierarquização de valores e direitos fundamentais no plano abstrato. De todo modo, a priorização da defesa da fauna em contraposição a interesses de ordem cultural, em casos como o que se cuida, mostra que o Brasil se harmoniza com o esforço transnacional de priorização da defesa do meio ambiente natural, afinado aos novos paradigmas da sustentabilidade ecológica. Tal entendimento sinaliza a promoção de uma ruptura com o conceito Kantiano de dignidade, com a ótica antropocêntrica e individualista, elencados nesta perspectiva de matriz filosófica biocêntrica, Sarlet e Fensterseifer assinalam que

Em relação aos animais não humanos deve-se reformular o conceito de dignidade, objetivando o reconhecimento de um fim em si mesmo, ou seja, de um valor intrínseco conferido aos seres sensitivos não humanos, que passam a ter reconhecido o seu status moral e dividir com o ser humano a mesma comunidade moral. Tais considerações implicam o reconhecimento de deveres jurídicos a cargo dos seres humanos, tendo como beneficiários os animais não humanos e a vida em geral (SARLET; FENSTERSEIFER, 2011, p. 42).

 

A concepção Kantiana, que sustenta ser a dignidade atributo exclusivo da pessoa humana, não encontra res­paldo no atual paradigma de Estado socioambiental de direito inaugurado com a Constituição Federal de 1988 e, pelo menos em tese, sujeita-se à crítica em razão de encerrar um excessivo antropocentrismo, notadamente quando sustenta que a pessoa humana, em função de sua racionalidade, ocupa lugar superior e privilegiado em relação aos demais seres vivos. No entanto, abstraindo-se tal concepção, sempre será possível defender a ideia de que a dignidade vai além da vida humana, ainda mais numa época em que o reconhecimento da proteção do ambiente como valor ético-jurídico fundamental indicia que não mais está em causa apenas a vida humana, mas a preservação de todos os recursos naturais, incluindo todas as formas de vida existentes no planeta. (ARMANDO, 2014, p.182)

Em suma, com fincas nessa moderna concepção biocêntrica da ética e do direito ambiental, em que os animais são dotados de dignidade e valores próprios, superando a perspectiva antropocêntrica que os reduzia a um mero instrumento de satisfação da dignidade humana e os sujeitava, inclusive, a alienações, por concebê-los como uma mera coisa objeto do direito de propriedade humana, o inciso VII, § 1º do art. 225, da Constituição Federal respalda a referida concepção biocêntrica, confe­rindo uma tutela constitucional ao bem-estar dos animais.

6 CONCLUSÃO

A proteção ao meio ambiente ganhou amplitude mundial, sobretudo a partir da Conferência de Estocolmo de 1972, e passou a ser reconhecida a partir do momento em que a degradação ambiental atingiu índices alarmantes e tomou-se consciência de que a preservação de um ambiente sadio está intimamente ligada à preservação da própria espécie humana. Avaliar o meio ambiente de forma que seja encarado como direito fundamental do ser humano é um etapa importante para que lhe seja franqueada uma proteção especial pelo ordenamento jurídico. Além disso, é importante que se tenha a consciência de que o direito à vida como matriz de todos os demais direitos fundamentais é que deverá orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente.

Logo, evidencia-se, a vida como um direito universalmente reconhecido como um direito humano básico ou fundamental, o seu gozo é condição essencial para a fruição de todos os demais direitos humanos, aqui incluso o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A integridade do meio ambiente, erigida em direito difuso pela ordem jurídica vigente, constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva. Isso reflete, dentro da caminhada de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num contexto abrangente da própria coletividade. As correntes ecológicas seguem o posicionamento contra o desenvolvimentismo, isto é, uma concepção que defende o crescimento econômico a qualquer custo, desconsiderando os impactos ao ambiente natural e o esgotamento de recursos naturais, desta forma as escolas de pensamento se contrapõem no que se diz respeito à relação entre o meio ambiente e a nossa espécie.

Após a discussão a respeito da garantia do meio ambiente equilibrado como parte de um mínimo vital e fundamental para se desfrutar de uma vida digna, torna-se inquestionável o papel do Estado Brasileiro de atuar no sentido de fazer valer essa garantia através de edições de Leis e de Políticas Públicas que visem proteger não só o meio ambiente em que se vive, de forma genérica, como também os elementos que devem ser preservados em seu interior, oriundos da Sociobiodiversidade, tão necessária para a construção de uma vida digna.

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[1] Artigo vinculado ao Projeto de Iniciação Científica intitulado "Os influxos de Pacha Mama Andina para a formação de um Estado Socioambiental de Direito Brasileiro: uma análise das influências do neoconstituiconalismo latino-americano no Supremo Tribunal Brasileiro, no período de 2005-2015”.

Data da conclusão/última revisão: 2017-02-22

 

Como citar o texto:

RANGEL, Tauã Lima Verdan; SILVA, Daniel Moreira da..Estado Socioambiental de Direito? A (re)estruturação do Estado Brasileiro à luz da Jurisprudência Constitucional Ambiental do STF. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1474. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-ambiental/3730/estado-socioambiental-direito-re-estruturacao-estado-brasileiro-luz-jurisprudencia-constitucional-ambiental-stf. Acesso em 4 out. 2017.

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