Resumo: O presente artigo debruça-se em torno do direito humano à alimentação adequada, apontando o contexto histórico de afirmação desse direito pela DUDH e pela Constituição Federal de 1988, através da Emenda Constitucional Nº 64 de 2010, bem como tecer uma definição quanto ao termo direito humano discorrendo sobre suas dimensões, é importante a discussão em torno desse direito devido à sua interdimensionalidade.

Palavras-Chave: Direito Humano à Alimentação Adequada; Dimensões dos Direitos Humanos; Segurança Alimentar e Nutricional; Soberania Alimentar.

Abstract: This article deals with the human right to adequate food, pointing out the historical context of affirmation of this right by the UDHR and the Federal Constitution of 1988, through Constitutional Amendment No. 64 of 2010, as well as to provide a definition as to the term right discussing this right because of its interdimensionality.

Keywords: Human Right to Adequate Food; Dimensions of Human Rights; Food and nutrition security; Food Sovereignty.

 

INTRODUÇÃO

A fome é um dos problemas mais antigos de toda civilização humana, todas as nações, países e sociedades, um dia enfrentaram ou enfrentam esse problema. Durante anos a religião e a geografia apresentaram desculpas simplistas perante esse problema, seja nos fenômenos sobrenaturais ou nas disposições naturais da terra, ambos os segmentos utilizavam dos mais diversos pretextos para esconder ou justificar a desigualdade na distribuição de riquezas, a apropriação indevida dos recursos naturais ou a exploração dos miseráveis. No Brasil a partir dos estudos de Josué de castro, sobretudo a partir de suas denúncias do verdadeiro quadro de fome do povo brasileiro, vem sendo tomadas medidas contra o problema da fome.

O direito de estar livre da fome e de ter acesso a uma alimentação adequada é reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e positivado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Porém, existe uma contradição entre a letra da lei e a realidade do povo, dos mais pobres em questão. O Direito à alimentação é básico para que o indivíduo possa buscar outros direitos fundamentais. Na elaboração desse artigo foram utilizados livros, textos, artigos e sites do governo na busca e levantamento de dados referentes ao assunto tratado.

 

1 DIREITOS HUMANOS EM DELIMITAÇÃO

As manifestações hodiernas pela garantia dos direitos humanos tiveram como primórdio a reestruturação da sociedade europeia no término da segunda guerra mundial. Em meio a esse cenário, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), enunciada pela Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 10 de dezembro de 1948, surge como um marco que visava responder aos horrores praticados durante a segunda guerra mundial (UNIFESP, s.d.).

Entretanto, os direitos humanos não apareceram com a promulgação da DUDH. Existem duas vertentes que divergem acerca de sua origem. A primeira afirma que o conceito de direitos humanos surge a partir de uma relação cultural e religiosa, onde a ética e a moral semelhante a todas as culturas e religiões podem ser consideradas em termos de direitos. A segunda vertente trabalha o conceito de direitos humanos como o fruto de um extenso processo de evolução, que remete a uma garantia de progresso e busca de um futuro feliz, foi essa teoria reforçada pelo debate filosófico que serviu como base de pensamento e inspirou a Revolução Francesa, que teve como um de seus resultados, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a primeira declaração de direitos (UNIFESP, s.d.).

A Declaração Francesa foi de suma importância, pois além de ter sido o primeiro documento que enunciava direitos humanos explicitamente declarados e que serviu como fonte de inspiração para outros documentos importantíssimos, como a DUDH (UNIFESP, s.d.). Pode-se observar a relevância de tal inspiração quando se compara o primeiro artigo de ambos os documentos:

O Artigo primeiro da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, diz: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”.

O Artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 proclama: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (UNIFESP, s.d., p. 5).

Com relação aos Direitos Humanos em âmbito internacional, seu grande marco inicial foi a DUDH. A partir da promulgação dessa declaração pela ONU, o mundo observa um contínuo surgimento de diversos instrumentos e um extensivo conjunto de tratados internacionais que buscam compor uma rede internacional de garantia e proteção dos Direitos Humanos (LEITE, s.d.).

Pode-se observar que durante o século XX o surgimento de um amplo movimento internacional pelos Direitos Humanos e posteriormente sua positivação jurídica a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros diversos tratados e instrumentos internacionais que tem como origem a aversão às atrocidades cometidas pela Alemanha Nazista e um crescente questionamento referente à urgência de um sistema que garantisse os direitos do homem em todo mundo (LEITE, s.d.).

De acordo com a ONU Brasil (2017): “os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independente da raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição”. Os direitos humanos são um conjunto de direitos que abrangem questões como à vida e à liberdade, o direito a livre manifestação da opinião e expressão e o direito a alimentação adequada.

O chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos determina os encargos sob os quais os governos devem agir de determinada forma ou abnegar certos atos, com escopo de promover e proteger os direitos da pessoa humana. Os direitos humanos são previstos legalmente pelas normas de direitos humanos, dando proteção e amparo a grupos indivíduos e lutando contra aqueles que lesam as liberdades fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Estão positivados em instrumentos internacionais do direito “consuetudinário, conjunto de princípios e outras modalidades do direito”. Os direitos humanos se caracterizam por serem inerentes a cada pessoa (ONU BRASIL 2017).

Na definição de Fernandes (2004) direitos humanos são o conjunto de disciplinas e entidades que, em cada parte da história, buscam efetivar as exigências da dignidade, liberdade e das desigualdades humanas, as quais os indivíduos deverão estar cientes de sua existência e que devem ser lembradas pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional. São o conjunto de direitos e garantias intrínsecas ao ser humano que tem como escopo garantir o respeito à dignidade, através da proteção contra as injustiças cometidas pelo Estado e definindo as condições mínimas de existência.

Os Direitos Humanos tem como principais características a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a irrenunciabilidade, a inviolabilidade, a universalidade, a efetividade, a interdependência e a complementariedade (FERNANDES, 2004).  São invioláveis, pois não podem em hipótese alguma ser desrespeitados por decisões inconstitucionais (ou mesmo que estão de acordo com o ordenamento jurídico de um país), não podem também ser violados por ações das autoridades públicas, cabendo nesse caso sanção civil, administrativa ou criminal. São irrenunciáveis, pois os direitos humanos (fundamentais) não podem ser renunciados pela pessoa a qual ele abrange e nem por outros. Não há a possibilidade de a pessoa renunciar seus direitos, como o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à intimidade e outros. São imprescritíveis, pois não se esvaecem e nem enfraquecem com o passar dos anos.

O tempo não tem forças para suprimir os direitos humanos. São inalienáveis, pois é vedado que um indivíduo translada um direito a outro indivíduo, seja gratuitamente ou não. São universais, pois pertencem a todos, e devem ser respeitados por todos, sem se atentar as diferenças de questões como nacionalidade, sexo, credo, raça ou convicção política, filosófica ou religiosa. São efetivos, pois garantem a materialização dos direitos e garantias previstos. Fazem-se necessários meios atuantes no sentido de garantir o respeito aos direitos humanos.

São interdependentes, pois há uma “interatividade entre os preceitos constitucionais e outros ramos do direito”, por exemplo, a liberdade de locomoção encontra um limite quando o indivíduo pratica um delito. São complementares, pois não é possível interpreta-los de forma unilateral, pois podem ser complementados com os princípios de direito público e privado na esfera nacional e internacional (FERNANDES, 2004).

 

2 AS DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS

Diante da totalidade e da ampliação dos ditos “novos” direitos naturais do ser humano, com escopo de determinar seu “conteúdo, titularidade, efetivação e sistematização”, os doutrinadores vem classificando esses direitos em uma linha evolutiva e acumulativa de “gerações” subsequentes de direitos (WOLKMER, 2002). Essa classificação se sustenta na cronologia em que esses direitos passaram a alcançar os anseios da humanidade. Assim, cuida reconhecer que uma geração não substitui ou anula a outra, pelo contrário, ela complementa e abrange novos direitos (CAVALCANTE FILHO, s.d.).

Os direitos de primeira dimensão correspondem aos direitos civis e políticos. Trabalha a questão dos direitos individuais pautados na liberdade, na igualdade, na propriedade, na segurança e na resistência aos diversos meios de opressão. São um conjunto de direitos caracterizados pela sua inerência a individualidade, bem como a inalienabilidade a imprescritibilidade, que devido ao seu status de defesa contra a interferência do Estado, são chamados de “direitos negativos”. Os direitos de primeira dimensão são denominados como “fundamentais para a tradição das instituições político jurídicas da modernidade ocidental” (WOLKMER, 2002). Ainda segundo Wolkmer (2002):

Quanto às fontes legais institucionalizadas, os direitos civis clássicos de “primeira dimensão” surgiram e foram proclamados nas célebres declarações de direitos de Virgínia (1776) e da França (1789). Da mesma forma, tais direitos e garantias são positivados, incorporados e consagrados pela Constituição Americana de 1787 e pelas Constituições Francesas de 1791 e 1793. Por fim, recorda-se que o mais importante código privado dessa época – fiel tradução do espírito liberal-individual – foi o Código Napoleônico de 1804 (WOLKMER, 2002, p. 14).

Os direitos de segunda dimensão são os chamados direitos sociais, econômicos e culturais, e que tem como base o princípio da igualdade com abrangência positiva, não condenam o Estado, mas buscam “a garantia e a concessão a todos os indivíduos por parte do poder público” (WOLKMER, 2002). Esse conjunto de direitos se relaciona com as “liberdades positivas, reais ou concretas” buscando garantir a máxima da igualdade material entre os indivíduos. As consequências geradas a vida social pela Revolução Industrial foram um marco para o surgimento dos direitos de segunda geração, o século XIX foi marcado pelas reivindicações do proletariado nas luta por seus direitos sociais básicos, como saúde, alimentação e educação. O século XX foi marcado pelas duas grandes guerras e pela Constituição de Weimar (1919) e pelo Tratado de Versalhes (1919) (DIÓGENES JÚNIOR, 2012). Ainda segundo Wolkmer (2002):

Na contextualização histórica dos direitos de “segunda dimensão” está mais do nunca presente o surto do processo de industrialização e os graves impasses socio-econômicos que varreram a sociedade ocidental entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. O capitalismo concorrencial evolui para a dinâmica financeira e monopolista, e a crise do modelo liberal de Estado possibilita o nascimento do Estado do Bem-Estar Social, que passa a arbitrar as relações entre o capital e o trabalho. O período ainda registra o desenvolvimento das correntes socialistas, anarquistas e reformistas. Não menos importante para os avanços sociais são: a posição da Igreja Católica com sua doutrina social (a Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, 1891); os efeitos políticos das Revoluções Mexicana (1911) e Russa (1917); os impactos econômicos do keynesianismo e o intervencionismo estatal do New Deal. Cria-se a Organização Internacional do Trabalho (1919); o movimento sindical ganha força internacional; a socialização alcança a política e o Direito (nascem o Direito do Trabalho e o Direito Sindical)11. As principais fontes legais institucionalizadas estão positivadas na Constituição Mexicana de 1917, na Constituição Alemã de Weimar de 1919, na Constituição Espanhola de 1931 e no Texto Constitucional de 1934 do Brasil (WOLKMER, 2002, p. 15).

Os direitos de terceira dimensão são os denominados direitos “meta-individuais, direitos coletivos e difusos, direitos de solidariedade”. O preceito que caracteriza esse conjunto de direitos é o de que o titular desse direito não é mais um homem individual, pois a proteção garantida por essa dimensão diz respeito às categorias ou grupos de pessoas, não diferenciando o público e o privado. Segundo os doutrinadores nacionais, os direitos de terceira dimensão se dividem em “interpretação abrangente acerca dos direitos de solidariedade ou fraternidade” e a “interpretação específica acerca dos direitos transindividuais”. Ao primeiro se atribui os direitos que tratam da paz, do desenvolvimento, do meio ambiente e qualidade de vida. Já no segundo se observa um conjunto de direitos de titularidade coletiva e difusa (WOLKMER, 2002). Ainda segundo Wolkmer (2002):

Aspecto nuclear dos direitos meta-individuais, a distinção entre direitos difusos e coletivos nem sempre fica muito clara, podendo-se dizer que o critério subjetivo os diferencia (maior ou menor indeterminação dos titulares do Direito). Os direitos difusos centram-se em realidades fáticas, “genéricas e contingentes, acidentais e mutáveis” que engendram satisfação comum a todos (pessoas anônimas envolvidas mas que gastam produtos similares, moram na mesma localidade etc.), enquanto os direitos coletivos envolvem interesses comuns no interior de organizações sociais, de sindicatos, de associações profissionais etc. Na particularização desses “novos” direitos transindividuais, importa lembrar que os chamados direitos relacionados à proteção do meio ambiente e do consumidor começaram a ganhar impulso no período pós-segunda Guerra Mundial. A explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a mutilação e o extermínio de vidas humanas, a destruição ambiental e os danos causados à natureza pelo desenvolvimento tecnológico desencadearam a criação de instrumentos normativos no âmbito internacional. Igualmente uma política governamental em defesa dos consumidores foi sendo estabelecida nas décadas de 70 e 80 nos Estados Unidos e na Europa. Como recorda o professor José Rubens M. Leite, os primeiros estudos no Brasil sobre a necessidade de instrumentos jurisdicionais para regulamentar interesses meta-individuais aparecem no final dos anos 70 (os trabalhos de José Carlos Barbosa Moreira e Ada Pellegrini Grinover) (WOLKMER, 2002, p. 17).

Os direitos de quarta dimensão são os que tratam dos assuntos relacionados “à biotecnologia, à bioética, e à regulação da engenharia genética”. Abarca os direitos que se relacionam diretamente com a vida humana, “como a reprodução humana assistida, aborto, eutanásia, cirurgias intrauterinas, transplante de órgãos, engenharia genética, contracepção e outros” (WOLKMER, 2002). Não há ainda, por parte dos doutrinadores, um consenso sobre qual matéria esse tipo de direito deve abordar, uns defendem que são os direitos referentes à engenharia genética ou dizem que se trata de direitos à participação democrática (CAVALCANTE FILHO, s.d.). Ainda segundo Wolkmer (2012):

Tais direitos de natureza polêmica, complexa e interdisciplinar vêm merecendo a atenção de médicos, juristas, biólogos, filósofos, teólogos, psicólogos, sociólogos e de uma gama de humanistas e profissionais da saúde. Reconhece Norberto Bobbio serem direitos de “quarta geração”, espelhando os “efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo”. Portanto, esses direitos emergiram no final do século XX e projetam grandes e desafiadoras discussões nos primórdios do novo milênio. Tal fato explica o descompasso e os limites da Ciência Jurídica convencional para regulamentar e proteger com efetividade esses procedimentos. Daí a prioridade de se redefinirem as regras, os limites e as formas de controle que conduzam a uma prática normativa objetivada para o bem-estar e não a ameaça ao ser humano. Resta observar que esses direitos reconhecidos como “novos” advindos da biotecnologia e da engenharia genética necessitam prontamente de uma legislação regulamentadora e de uma teoria jurídica (quer no que tange à aceitação de novas fontes, quer no que se refere às novas interpretações e às novas práticas processuais) capaz de captar as novidades e assegurar a proteção à vida humana (WOLKMER, 2002, p. 19 e 21).

Os direitos de quinta dimensão são aqueles que tutelam os direitos originários do avanço das “tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral”. Com o avanço da tecnologia e da sociedade do século XX é gritante o avanço do desenvolvimento cibernético, dos computadores, do comércio eletrônico e outros. Surge a necessidade de uma legislação para tratar de assuntos referentes à proteção de provedores e usuários dos meios da internet (WOLKMER, 2002).

 

3 DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA: BREVE PAINEL

O direito à alimentação adequada é previsto pelo artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Seu conceito foi estendido por outros instrumentos do Direito internacional, como por exemplo, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Comentário Geral Nº 12 da Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, após um longo período de reivindicação, foi sancionada em 2010 a Emenda Constitucional Nº 64, que insere o direito à alimentação no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 (CONSEA, 2017). De acordo com a Constituição:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 1988).

O direito humano à alimentação traduz-se pelo “acesso físico e econômico de todas as pessoas aos alimentos e recursos, como emprego ou terra, para garantir esse acesso de modo contínuo”. Esse direito abrange questões como o acesso à água em sua “compreensão e realização”. Quando se afirma que a alimentação deve ser adequada, presume-se que ela deve atender o “contexto e às condições culturais, sociais, econômicas, climáticas e ecológicas de cada pessoa, etnia, cultura ou grupo social” (CONSEA, 2017).

O direito à alimentação se divide em duas vertentes: “o direito de estar livre da fome e o direito à alimentação adequada”. A promoção dessas duas vertentes através das políticas sociais é de suma importância para a concretização dos demais direitos humanos (MACHADO, 2017). O direito humano à alimentação adequada pode ser definido como um direito “inerente a todas as pessoas de ter acesso regular, permanente e irrestrito a alimentos seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes” (ABRANDH, 2010).

São obrigações do Estado: respeitar, promover, proteger e prover uma alimentação em quantidade e qualidade adequadas para a população, assim garantindo o direito à alimentação adequada (CONSEA, 2017). Quanto à proteção, o Estado tem o dever de interromper para que terceiros não prejudiquem a realização do DHAA dos indivíduos ou grupos. Quanto à promoção, o estado deve intervir a fim de estabelecer condições para efetivação do DHAA. Quanto ao respeito, o estado deve garantir que suas instituições não violem, através de suas ações políticas, o DHAA. O Estado deve prover aos indivíduos ou grupos que não conseguem o mínimo essencial, uma alimentação adequada até que consigam condições para sair dessa situação (MACHADO, 2017).

Existe uma violação do DHAA quando as pessoas, comunidades ou grupos sofrem com a situação de fome, por conta da dificuldade de acesso a alimentação em quantidade e qualidade adequadas, bem como a existência de pessoas mal nutridas em qualquer faixa etária. Também configura violação dos Direitos Humanos o consumo de alimentos de “má qualidade nutricional e sanitária” devido à utilização excessiva de agrotóxicos (LISBOA, 2013).

A promulgação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei Nº 11. 346/2006) foi de suma importância na luta contra o problema da fome, pois através dela foi criado o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) que “desenvolvendo diretrizes, metas, captando recursos e fomentando instrumentos de avaliação e monitoramento, compostos de ações e programas integrados” tem como escopo garantir a alimentação saudável e de qualidade para todas as pessoas (LISBOA, 2013).

Segundo Mendoza (2009, apud, LISBOA, 2013) o direito humano à alimentação adequada provém dos direito à vida, e pode ser caracterizado como um direito fundamental, pois é indispensável ao indivíduo e necessário para se buscar todos os outros direitos. Quando um país, como o Brasil, assume compromisso com um Tratado Internacional de Direitos Humanos, como o PIDESC, “este deverá elaborar leis, políticas públicas e realizar ações que promovam a equidade e reduzam as desigualdades nacionais e internacionais”. Também é de responsabilidade do país vetar ações que dificultem o acesso à alimentação adequada, bem como interferir em medidas que violem os direitos humanos (LISBOA, 2013).

 

4 A INTERDIMENSIONALIDADE DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA

O acesso a uma alimentação em quantidade e qualidade adequada e imprescindível para promoção e garantia de um estado de plena saúde, tornando possível o absoluto “potencial de crescimento e desenvolvimento humano”, onde possa se observar a cidadania e a qualidade de vida, bem como a garantia de condições sociais mais correlatas ao modelo ideal (RANGEL, 2014). Segundo o escólio de Podestá (2011, apud, RANGEL, 2014) é possível afirmar que a garantia do direito humano à alimentação adequada (DHAA) é de incumbência do Estado e da sociedade.

Para que se concretize o direito humano à alimentação adequada é indispensável que o indivíduo esteja livre da fome. Fome pode ser definida como “a sensação fisiológica manifestada pelo corpo quando este percebe a necessidade de alimentos para manter suas atividades de continuidade à vida”, podendo decorrer da pobreza, conflitos armados, catástrofes ambientais, condições agrícolas desfavoráveis o até mesmo de um quadro de instabilidade política (LISBOA, 2013).

Pode-se relacionar o direito à alimentação com pelo menos três das dimensões dos direito humanos. Os direitos de primeira dimensão são os que se referem aos direitos civis e políticos, como o direito à vida, para a promoção e manutenção da vida (um dos direitos mais importantes) é indispensável uma alimentação em qualidade (para evitar a subnutrição) e quantidade adequadas (para evitar a má nutrição). Não faz sentido promover um direito como à liberdade para um indivíduo faminto, para lutar ou usufruir desse direito é essencial que o indivíduo esteja saudável para tal (LURCONVITE, 2007).

Já a saúde que compõe o rol dos chamados direitos de segunda dimensão, só pode ser garantida através do acesso a uma alimentação adequada. Os direitos de segunda dimensão, chamados direitos econômicos, sociais e culturais, têm como escopo combater as desigualdades sociais, intercedendo pelos mais pobres. Fazem parte dos direitos de segunda dimensão a assistência social, a cultura, a saúde, a educação, o trabalho, o lazer e a própria alimentação. Esses direitos advêm da luta da classe trabalhadora por melhores condições de vida, nota-se que a alimentação, um dos grandes problemas da época fazia parte das reivindicações populares (LURCONVITE, 2007).

A educação tem grande relação com a alimentação, pois o indivíduo em situação de fome tem graves problemas quanto à aprendizagem. Já os direitos de terceira dimensão são aqueles chamados de solidários ou fraternos, pois tratam de direitos como o ambiente equilibrado, a qualidade de vida, a paz e outros direitos. A qualidade de vida só pode ser alcançada quando garantido o acesso de todos os indivíduos a uma alimentação em quantidades e qualidade adequados, assim combatendo a incidência de doenças como a desnutrição e anemia (LURCONVITE, 2007).

Como já mencionado, o direito humano à alimentação adequada se divide em duas dimensões: o de estar livre da fome e a de ter uma alimentação adequada. O DHAA envolve fatores como à diversidade, a adequação nutricional, a qualidade nutricional, o acesso à informação, o acesso a recursos financeiros ou recursos naturais como terra e água, o respeito à cultura e costumes alimentares regionais e outros. O incentivo e a garantia do cumprimento do DHAA envolvem questões como a “justiça social, a reforma agrária, a política agrícola, a valorização da agricultura familiar, e o incentivo às práticas agroecológicas” (BRASIL, 2010).

 Quando se discute a questão social do acesso a alimentação adequada, surgem conceitos importantes como à segurança alimentar e nutricional e a soberania alimentar. A segurança alimentar (SAN) é um quadro que se caracteriza como o acesso de todos os indivíduos à alimentação de qualidade e em quantidade suficientes para atender suas necessidades corporais. A soberania alimentar “é o direito de cada nação em definir políticas que garantam a SAN de seus povos”, preservando as práticas de produção de sua cultura (BRASIL, 2010).

A alimentação e nutrição tem profunda relação “com a agricultura, a economia, a saúde, a educação, a cultura, à sociologia, a política e a psicologia”. A SAN, por exemplo, configurando um tema de suma importância na atual discussão, pode ser compreendida “como a coordenação e a integração de mecanismos governamentais, e particulares que garantam a produção, a disponibilidade e o consumo diário e contínuo de alimentos”. Infelizmente a discussão em torno desse tema não tem importância que deveria ser atribuída a ele por parte dos governantes, administradores, comunidades e até mesmo pela comunidade científica. Existe uma preocupação muito maior com o preço da gasolina, do que com a alimentação dos mais pobres (OLIVEIRA, 2006). Ainda segundo Oliveira (2006):

Os especialistas da área de alimentos, alimentação e nutrição são capazes de calcular as necessidades de alimentos de que necessita a nossa população (identificando-as inclusive por faixa etária, sexo, ocupação etc.) e podem apontar quais alimentos e em qual quantidade precisam ser produzidos para supri-las. Infelizmente não existe em âmbito nacional uma consciência, um organismo que coordene e integre a produção, a distribuição e o controle do consumo de alimentos. Ninguém é diretamente responsável pela alimentação nacional, e soluções para essa grave situação têm sido encaminhadas, na maioria dos casos, por programas assistencialistas e paternalistas: dar comida.

É possível até que o país se impressione quando são publicados dados sobre nossas alta mortalidade infantil, alta repetência escolar, baixa capacidade física de trabalhadores ou presença crescente de sobrepeso, obesidade, moléstias cardíacas, hipertensão, diabetes e até de certos tipos de câncer nas diferentes camadas da população – independentemente da situação econômica –, mas ninguém relaciona direta ou indiretamente essas ocorrências à alimentação (OLIVEIRA, 2006, s.p.).

A falta de interesse pela questão da alimentação e nutrição, bem como sua importância “para o desenvolvimento físico e mental e para a qualidade de vida tem justificado a pouca importância sobre o que se deve fazer para que todos possam ser bem alimentados”. Atualmente, esse problema vem sendo debatido com mais seriedade, e sob os mais diversos meios (biológicos, educacionais, sociais, econômicos) (OLIVEIRA, 2006).

 

CONCLUSÂO

Para a concretização de direitos como à liberdade, à igualdade e até mesmo o direito à vida é necessário que se garanta o direito à alimentação, pois se esse é impossível manter as funções básicas do organismo. Daí a importância desse direito, resguardado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos em sua segunda dimensão.

O direito à alimentação adequada se relaciona com diversos outros meios e direitos, tais como, o direito a saúde e a educação. Considera-se que muitas doenças estão relacionadas à má alimentação e quanto à educação, o programa de alimentação escolar é imprescindível na formação do indivíduo. O direito à alimentação deve ser garantido pelo Estado no combate à exploração dos mais pobres e com os programas de redistribuição de renda. Quanto à sociedade, cabe o dever de combater o desperdício e promover a educação alimentar.

 

REFERÊNCIAS

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IURCONVITE, Adriano dos Santos. Os direitos fundamentais: suas dimensões e sua incidência na Constituição. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, a. 10, n. 48, dez 2007. Disponível em: Acesso em 08 out. 2017.

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SÃO PAULO (ESTADO). Universidade do Estado de São Paulo: Direito Humanos: a teoria - Unidade 1: a origem e a história dos direitos humanos: a discussão contemporânea. Disponível em: . Acesso em 02 out. 2017.

WOLKMER, Antonio Carlos. Direitos Humanos: Novas Dimensões e Novas Fundamentações. In: Direito em Debate, a. 10, n. 16-17, jan.-jul. 2002, p. 09-32. Disponível em: Acesso em 06 out. 2017.

  

[1] Trabalho vinculado ao Grupo de Pesquisa “Faces e Interfaces do Direito: Sociedade, Cultura e Interdisciplinaridade no Direito” do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Unidade Bom Jesus do Itabapoana.

Data da conclusão/última revisão: 10/10/2017

 

Como citar o texto:

GUEDES, Douglas Souza; RANGEL, Tauã Lima Verdan..O reconhecimento da interdimensionalidade do direito à alimentação adequada: primeiras reflexões. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1498. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/3843/o-reconhecimento-interdimensionalidade-direito-alimentacao-adequada-primeiras-reflexoes. Acesso em 8 jan. 2018.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.