Resumo:

A propriedade é direito fundamental previsto no art. , inciso XXII da Constituição Federal, não podendo ser abolida por emenda constitucional, muito embora a própria Carta Magna traga em seu bojo hipóteses de restrição ao direito de propriedade, como a própria função social da propriedade.

A propriedade é, igualmente, a essência do sistema capitalista, razão pela qual deve ser respeitada, tanto é que para a teoria da natureza humana, a acumulação de riquezas é inerente da condição humana, pois é necessário para que a vida em sociedade se mantenha, para ter uma vida materialmente digna, suprindo as necessidades do indivíduo e de seus familiares.

Palavras-chaves: Proprietário. Direito de usar, gozar e dispor. Propriedade. Relação jurídica. Função social. Ius utendi. Ius fruendi. Ius abutendi. Realidade. Plenitude. Elasticidade. Exclusividade. Independência. Imprescritibilidade. Perpetuidade.

Sumário: Introdução. 1) Da conceituação de proprietário e propriedade. 2) Dos poderes e características da propriedade. Conclusão.

 

Introdução:

Na sociedade contemporânea, o homem é regido, em suas relações, por uma série de normas e princípios que visam protegê-lo e garantir-lhe um determinado número de direitos e, por outro lado, impor-lhe um igual número de deveres.

Dentre os direitos, encontra-se uma determinada categoria que se constitui nos “direitos primeiros”, que têm por objetivo tutelar, individualmente, a pessoa humana. Situam-se como “direitos primeiros”, os direitos da personalidade, que corresponde a um direito inato complexo, sobre o qual deve sempre pousar o manto protetor do Estado, razão pela qual é previsto em esfera constitucional, disperso em várias de suas normas fundamentais.

O direito de propriedade, embora não seja o mais importante, sempre foi a origem da maioria das revoluções históricas. Isto porque as relações jurídicas originadas da relação do homem com seus bens sempre foi e será fonte de conflitos, no que as normas estabelecidas, por evidência, precisavam se adaptar aos novos tempos.

Num primeiro momento, o direito patriarcal que considerava até mesmo seus filhos e netos como sua propriedade passou a conflitar com os interesses destes de terem autonomia para gerir seus próprios bens, segundo seu próprio desiderato. O mesmo ocorreu com os reis, cujo direito de propriedade sobre todas as coisas dentro de seu reino, por direito divino, passou a ser questionado diante do interesse de uma nova classe que também queria exercer o direito de propriedade.

Mais que sua importância em si, em muitas revoluções, a liberdade sempre foi um móvel para que certas castas, dotadas de potencial poder, conseguissem liberdade para criar regras que lhes permitissem exercer o direito de propriedade.

Tem-se, portanto, que, mais relevante que a propriedade em si, a figura do proprietário historicamente é o objeto mais importante na análise da relação de propriedade.

Isto porque todo o direito envolve a relação jurídica entre sujeitos, e não entre sujeito e coisa. Não existe relação jurídica entre sujeitos e seus bens. Esta apenas é potencial fonte geradora de relações jurídicas entre pessoas. Se apenas persistir presente tão somente a pessoa do proprietário, não se formará qualquer relação jurídica.

 

1)   Da conceituação de proprietário e propriedade

Quando trata do direito de propriedade, a base do Direito Privado traz o sujeito de Direito mais abstrato, qual seja, aquele igualmente livre e capaz. Contudo, a evolução do direito de propriedade vem trazendo traço do Direito Público, criando grupos que recebem tratamento diferenciado, como os consumidores.

A necessidade desta evolução se torna clara: “tenho, logo existo”. “Quem pode ter, é sujeito de direito, mas somente será sujeito na medida que tenha”[1]. Na lição de Erouths Cortiano Junior, é a propriedade que qualifica o sujeito em sociedade. Os não-proprietários são apenas potencialmente sujeitos. Até lá, são como ausentes da ordem jurídica. Verdadeiros “fantasmas a luz do dia”.

Esta nova visão da propriedade, colocando o prisma sobre o sujeito, gera a observação de que os citados elementos do direito de propriedade, ou seja, as “faculdades de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”, em verdade, tão somente se referem à figura abstrata do proprietário, o que somente serve para caracterizar um direito como ficção jurídica, principalmente nos tempos atuais.

Para Erouths Cortiano Junior, o direito de usar e gozar da coisa depende da utilidade momentânea do bem para o sujeito, o que também variará se este for uma pessoa física ou jurídica, e principalmente de sua natureza.

Assim, um mesmo bem pode ser, ao mesmo tempo, bem de consumo para o consumidor e de disposição para o fornecedor.

Daí porque o modelo de proprietário deve ser atemporal. O mais próximo que se tem deste modelo nos dias atuais é a mercadoria.

Isto porque a mercadoria hoje supre o essencial da propriedade que é sua possibilidade de entrar em circulação, quando esta tem um denominador comum é o seu valor de disposição.

Não há como negar que a atual sociedade se estrutura sobre o conceito de mercado, na qual o indivíduo conta como proprietário de algo a ser vendido e potencialmente a adquirir algo. Logo, a propriedade se vale pelo seu valor de mercado, no momento da troca, pouco importando seu valor de uso.

Diante deste quadro, para se impedir o retorno da mercantilização do ser humano, é essencial sempre observar a figura do proprietário pelo prisma da função social da propriedade.

A nova taboa axiológica da Constituição Federal privilegia os valores existenciais do ser humano. Não é à toa que logo em seu art. 1º, a Carta Magna estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, trazendo ainda como objetivos fundamentais, constituir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação.

Todo exercício de qualquer direito de propriedade depende da congruência com as normas protetivas a dignidade da pessoa humana trazida pela Constituição Federal.

Desta forma, deixa de ser proprietário, aquela que exerce a propriedade sem observar sua função social, ou seja, sem utilizar a propriedade de forma adequada ao interesse social e sem ofender os limites estabelecidos pela dignidade da pessoa humana.

A própria Constituição Federal traz exemplo de exercício da propriedade de acordo com a função social, que assim não permite sua perda para fins de reforma agrária, no inciso II do art. 185 da Carta Magna, que expressamente isenta de desapropriação, ao menos para reforma agrária, de propriedade produtiva.

Assim, não basta ter a propriedade regular. Sendo rural, esta terá que ser produtiva para cumprir sua função social, ao menos nos termos do art. 186 da Carta Magna. Qualquer exercício de propriedade para outro fim não merece a tutela protetiva da Lei, podendo ser desapropriada para fins de reforma agrária, indenizada com título da dívida pública, resgatáveis em vinte anos.

Vê-se, portanto, que o antigo conceito de propriedade, que impõe a um número indeterminado de pessoas, a obrigação de não intervir no direito do proprietário de livremente usar, gozar e dispor do seu bem, não possui mais espaço ante o novo cenário constitucional, vez que não mais se admite esta inteira subordinação do direito subjetivo do proprietário aos direitos de terceiros, vez que estes terceiros têm garantidos a preservação de sua dignidade humana e toda a gama de direitos fundamentais preservados pela Carta Magna.

Pela antiga visão sobre a propriedade, as limitações e punições eram impostas apenas aos terceiros que impedissem o livre exercício de quaisquer dos direitos da propriedade. Pela nova concepção de propriedade, o proprietário pode ter a pena capital da perda da propriedade, caso deixa de utilizá-la de acordo com sua função social.

Assim, o proprietário é aquele que tem a disponibilidade, o direito de usar e gozar de uma coisa sem a interferência de terceiros, dentro do limite do direito público e das garantias fundamentais, especialmente os atinentes à natureza da coisa.

Por consequência, temos que propriedade é a “relação jurídica complexa que tem por conteúdo as faculdades de uso, gozo e disposição da coisa por parte do proprietário, subordinadas à função social e com correlatos deveres, ônus e obrigações em relação a terceiros”[2].

 

2) Dos poderes e características da propriedade

Uma vez apresentado o conceito de propriedade, cabe agora prosseguir examinando sinteticamente os poderes e as características deste instituto.

Há quem afirme a impossibilidade de enumerá-las, porque não é possível dizer o que proprietário pode fazer, mas apenas o que pode não fazer.

O artigo 524 do Código Civil aponta analiticamente os poderes do proprietário, quais sejam, os poderes internos e econômicos de usar, fruir e dispor e o poder jurídico de excluir o bem das ingerências alheias.

O ius utendi refere-se a colocação da coisa a serviço do proprietário, sem implicar na modificação de sua substância; sendo que a utilização pode ser tanto em proveito próprio como de terceiro.

Já o ius fruendi diz respeito a percepção dos frutos, tanto naturais como civis.

O ius abutendi corresponde tanto a disposição material quanto jurídica da coisa.

O poder de reaver implica na prerrogativa do proprietário de retomar a coisa que se encontra injustamente em mãos alheias.

Segundo uma visão tradicional, as características da propriedade são: a) realidade: os poderes dos proprietários são imediatos sobre a coisa, sem ingerência de terceiros, b) plenitude: que a difere dos demais direitos reais, conferindo-lhes a generalidade dos poderes de uso, gozo e disposição dos bens, c) elasticidade: tão logo cesse o exercício do direito de terceiro sobre algum dos seus elementos, este retorna ao todo da propriedade, d) exclusividade: implica na unicidade do direito e na possibilidade de excluir de terceiros o uso e gozo da coisa, e) independência: não se pressupõe qualquer outro direito sobre a coisa, f) imprescritibilidade: a propriedade não se extingue pela falta de exercício, g) perpetuidade: não existe limite temporal.

De acordo com a doutrina, importante frisar que uma das características mais relevantes dos direitos reais e usado como um diferenciador dos direitos pessoais e de crédito é o princípio do numerus clausus. Este consiste no fato de que direitos reais somente são aqueles previstos como tais em lei. Isto é, os direitos reais não são criados pela isolada autonomia de vontade das partes, mas apenas pela lei.

 

Conclusão:

A propriedade é um direito primário ou fundamental, ao passo que os demais direitos reais nele encontram a sua essência. Encontrando-se em mãos do proprietário todas as faculdades inerentes ao domínio, o seu direito se diz absoluto ou pleno no sentido de poder usar, gozar e dispor da coisa da maneira que lhe aprouver, podendo dela exigir todas as utilidades que esteja apta a oferecer, sujeito apenas a determinadas limitações impostas no interesse público.

 O artigo 524 do Código Civil aponta analiticamente os poderes do proprietário, quais sejam, os poderes internos e econômicos de usar, fruir e dispor e o poder jurídico de excluir o bem das ingerências alheias. O poder de reaver implica na prerrogativa do proprietário de retomar a coisa que se encontra injustamente em mãos alheias.

De acordo com a visão tradicionalista, as características da propriedade são: realidade (os poderes dos proprietários são imediatos sobre a coisa, sem ingerência de terceiros); plenitude (que a difere dos demais direitos reais, conferindo-lhes a generalidade dos poderes de uso, gozo e disposição dos bens); elasticidade (tão logo cesse o exercício do direito de terceiro sobre algum dos seus elementos, este retorna ao todo da propriedade); exclusividade (implica na unicidade do direito e na possibilidade de excluir de terceiros o uso e gozo da coisa); independência (não se pressupõe qualquer outro direito sobre a coisa);  imprescritibilidade (a propriedade não se extingue pela falta de exercício) e perpetuidade (não existe limite temporal).

No entanto, desde a Constituição Federal de 1988, está sedimentado que todos estes direitos estão subordinados à função social da propriedade. Ou seja, é constitucionalmente ilegítimo exercer quaisquer destes direitos e poderes se a utilização do direito de propriedade não atingir o fim social a que o imóvel se destina. Esta é a referência primordial que não pode ser perdida ao analisar o direito de propriedade.

 

Referências bibliográficas:

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

GOMES, Orlando. Direitos reais. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.

NERY Junior, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado e legislação extravagante. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. v.4. 21.ed Rio de Janeiro: Forense, 2004.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v.5. 28.ed. São Paulo: Saraiva: 2004.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 18.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

  

[1] CORTIANO Junior, Erouths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas – Uma análise do ensino do direito de propriedade. 2002. Rio de Janeiro: Renovar. P. 121.

[2] LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. 2003. Rio de Janeiro: Renovar. P. 52.

Data da conclusão/última revisão: 14/2/2018

 

Como citar o texto:

ITO, Michel; ITO, Lilian Cavalieri..Da propriedade: conceituação, poderes e características. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1509. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil/3927/da-propriedade-conceituacao-poderes-caracteristicas. Acesso em 21 fev. 2018.

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