Recentemente, veio à baila a notícia de uma nova prática, na qual o homem, durante a relação sexual, retira o preservativo, sem que sua parceira tenha conhecimento. Denominada de stealthing, que, em livre tradução do inglês, significa dissimulação, a conduta, apesar de não ser tão inédita, fomenta diversas discussões jurídicas, principalmente após o relato de uma condenação na Suíça, em 2017, que amoldou este comportamento ao conceito típico-normativo de estupro.

            Em estudo publicado, nos Estados Unidos, pela revista Columbia Journal of Gender and Law[1], há a exposição de que, após a realização de diversas entrevistas, constatou-se que muitas mulheres sujeitas a tal experiência entendem que houve uma grave violação da dignidade e da autonomia da mulher, sob a perspectiva de gênero, transformando o sexo, inicialmente consentido apenas com a condição de utilização do preservativo, em uma relação abusiva e não consentida.

            A autora do texto claramente indicou que sua finalidade seria ajudar as vítimas a saberem identificar a experiência, bem como iniciar o debate sobre a ética nas relações sexuais, visando ao avanço legislativo para a proteção das mulheres. Com efeito, o artigo ganhou vasta repercussão na internet, sobrevindo o compartilhamento de relatos por várias mulheres e fomento do debate jurídico, mas também postagens em que homens incentivavam o stealthing, inclusive orientando como fazer para eliminar o preservativo sem que a parceira tivesse consciência.

            A par da possibilidade de visualizar misoginia e o objetivo de subjugar a mulher em uma perspectiva de gênero que há séculos traça e prega a desigualdade, a supremacia masculina e a utilização do corpo feminino como forma exclusiva de fonte de prazer varonil, o presente trabalho propõe a analisar a possibilidade de realização de aborto, caso de tal prática decorra uma gravidez indesejada.

            Por certo, o direito ao aborto ainda é um tema que grassa muita controvérsia no País, podendo-se reconhecer certa resistência na concepção de que seria uma extensão do direito ao corpo e à liberdade reprodutiva. Várias são as tentativas, não apenas acadêmicas, de construir um cenário em que haja plena viabilidade de exercício, pela mulher, da integralidade de seus direitos sexuais. Todavia, esta, ainda, não é a realidade jurídico-positiva que atualmente se apresenta.

            Inicialmente, deve-se perquirir se o stealthing pode ser considerado uma conduta penalmente típica no Brasil e, em caso positivo, a qual tipo penal se amoldaria. Para tanto, há a necessidade de se afastar a situação em que, apesar do consentimento da parceira para o ato sexual, por ser este condicionado ao uso do preservativo, o parceiro, que não deseja utilizá-lo, ignora a manifestação de vontade feminina e prossegue na prática sexual. Nesse caso, havendo o emprego de violência ou grave ameaça, soa perfeitamente possível a conformação típica ao delito de estupro (previsto no art. 213, do Código Penal).

            O stealthing, contudo, se mostra presente quando há o consentimento para o ato sexual condicionado à utilização do preservativo, mas este é retirado de forma clandestina durante o ato, sem que a parceira tome conta disso (até mesmo porque, se tiver conhecimento e consentir com o prosseguimento da relação, não há de se falar em conduta penalmente relevante).

            Percebe-se, portanto, que o ato de supressão do preservativo é sorrateiro, de forma que não haveria, em princípio, adequação típica ao delito de estupro, ante a ausência das elementares violência ou grave ameaça. Em outras palavras, ainda que seja possível afirmar que não houve o consentimento para a prática do ato sem o preservativo, não sendo empregado nenhum dos meios de execução exigidos pela lei, haveria a inadequação típica, porquanto o princípio da legalidade exige que a lei penal seja prévia, escrita, estrita e certa (lex praevia, lex scripta, lex stricta e lex certa).

Portanto, indaga-se: há conduta penalmente típica, nesse caso? Parece ser possível amoldar o stealthing ao tipo de violação sexual mediante fraude (art. 215, do Código Penal), considerando como fraude o ato de supressão clandestina do preservativo, mormente se o dolo inicial do agente já contemplar a supressão fortuita a posteriori. Em outro turno, na perspectiva de eventual defesa do agente, poder-se-ia alegar a inexistência da fraude, potencializando a existência de consentimento para o ato, a fim de que seja reconhecida a atipicidade da conduta.

Com efeito, a temática é nova e caberá à jurisprudência, com o apoio da doutrina, construir e consolidar a solução. Todavia, a partir dessas breves considerações, infere-se que, em tese, se típico, o fato se amoldará ao tipo de estelionato sexual, e não de estupro. É nesse contexto que surge a proposição principal deste breve estudo, pois o inciso II do art. 128, do Código Penal apenas autoriza expressamente o aborto, se a gravidez resulta de estupro. Logo, a gravidez resultante do stealthing autorizaria o aborto legal?

Se é certo que a interpretação da lei penal não pode ser feita extensivamente, vedado o uso da analogia in malam partem, também é forçoso reconhecer a admissibilidade do emprego dessas técnicas de interpretação e integração no caso de excludentes de ilicitude. Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência, antes da reforma instituída pela Lei 12.015/2009, admitiam o emprego da analogia in bonam partem para autorizar o aborto sentimental quando a gravidez fosse decorrente de atentado violento ao pudor, “por ser tão indigno e repugnante quanto o crime de estupro”[2].

Nesse diapasão, há de se reconhecer que, apesar de o stealthing não poder ser enquadrado à figura típica do delito de estupro, é plenamente possível, havendo o consentimento prévio da gestante, seja realizado o aborto sentimental, o que, reforça a perspectiva da dignidade da mulher enquanto sujeito de direitos, capaz de exercer integralmente sua liberdade sexual e reprodutiva, assim como fora reconhecido pelo Ministro Roberto Barroso, no julgamento recente do HC 124.306/RJ.

BIBLIOGRAFIA:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v.2.

_________, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 6ª ed. São Paulo, Saravia, 2000, v. 1

BRODSKY, Alexandra. ‘Rape-Adjacent’: Imagining Legal Responses tô Nonconsensual Condom Removal. Disponível para consulta em: << https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2954726>>. Acesso em 24.01.2018.

  

[1]              BRODSKY, Alexandra. ‘Rape-Adjacent’: Imagining Legal Responses tô Nonconsensual Condom Removal. Disponível para consulta em: << https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2954726>>. Acesso em 24.01.2018.

[2]              BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v.2, p. 140.

Data da conclusão/última revisão: 15/2/2018

 

Como citar o texto:

GOMES, Anna Carolina Brochini Nascimento..Stealthing: análise quanto à possibilidade da aplicação de analogia para autorização do aborto legal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1509. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/3930/stealthing-analise-quanto-possibilidade-aplicacao-analogia-autorizacao-aborto-legal. Acesso em 21 fev. 2018.

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