A contemporaneidade tem apresentado um cenário extremamente paradoxal. Por um lado, como resultado de uma evolução histórica e em decorrência da inaptidão do direito para resolver os problemas sociais de convivência em sua extensão, vivencia-se o paradigma epistemológico histórico-filosófico-jurídico pós-positivismo, o qual possibilita um resgate ético no âmbito do direito em busca da correção material, abandonando-se, em nível teórico, o caráter extremamente formal outrora seguido.

Referido viés oportuniza, a partir de uma filtragem constitucional de todos os ramos do direito, conquistas de classes integradoras de “minorias”. Como exemplos, podem ser citados o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, a impossibilidade de prisão por dívidas do depositário infiel e, a conquista de cotas raciais universitárias e para prestar concursos públicos na esfera federal.

Doutro ponto, como esse norte epistêmico ainda não se apresenta sistematicamente claro para a comunidade jurídica, tampouco, para a sociedade civil, abusos de direitos, deturpações hermenêuticas normativas e, logo, arbitrariedades, estão sendo avistadas periodicamente.

O horizonte revela, assim, se em certa medida a sociedade atual apresenta avanços, por outra, a formação humana encontra-se muito aquém do ideal, tanto que o reconhecimento, a tolerância e o respeito ao pluralismo, à igualdade, à diferença e à alteridade entre outros, encontram-se distantes do que se espera no âmbito de um Estado Democrático de Direito.

Como signo da constatação, basta fazer referência aos problemas cotidianos envolvendo atos homofóbicos, religiosos extremistas, políticos e esportistas fanáticos, nos quais se visualizam comportamentos violentos em prol de preferências pessoais e grupais. Essas evidências fazem aflorar e abrem relevantes discussões sobre o discurso do ódio, o qual conforme Samantha Ribeiro Meyer-Pflug se manifesta a partir:

[...] de ideias que incitam à discriminação racial, social ou religiosa em relação a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias. Tal discurso pode desqualificar esse grupo como detentor de direitos. Note-se que o discurso do ódio não é voltado apenas para a discriminação racial. Para Winfried Brugger o discurso do ódio refere-se “a palavras que tendam a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas. (MEYER-PFLUG, 2009, p. 97).

No âmbito do exercício das funções estatais por parte de seus representantes, variados atos também possuem o condão de gerar preocupações antidemocráticas.

Recorde-se, nesse diapasão, como o impeachment da ex-Presidente da República Dilma Rousseff se deu, escancarando preferências pessoais de muitos dos envolvidos no Poder Legislativo Federal e do Presidente do Supremo Tribunal Federal ao arrepio da Constituição Federal, principalmente, no que toca a decisão de se fatiar a votação quanto à perda do cargo e à inabilitação de 8 (oito) anos ao exercício de quaisquer funções públicas.

Está “fresco” na memória, igualmente, como o atual Presidente da República Michel Temer articulou para conquistar a maioria da Câmara dos Deputados de modo que aquela casa do Congresso Nacional não admitisse a denúncia da Procuradoria Geral da República relativamente à suposta prática de crime comum e, assim, pudesse ser, eventualmente, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. A alusão se refere à destituição de membros permanentes da Comissão de Constituição e Justiça e a destinação de bilhões de reais em “emendas parlamentares” para gastos destes em suas circunscrições eleitorais. O ocorrido retratou, indubitavelmente, condutas não republicanas.

O que falar de certas decisões do Supremo Tribunal Federal - STF?

Pode-se admitir o cumprimento provisório da pena com a confirmação da condenação criminal em segunda instância, face, para não haver delongas, ao direito fundamental individual presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII) se tanto no Superior Tribunal de Justiça - STJ como no próprio STF o status de condenado poderá ser alterado em virtude de inaplicabilidade de lei federal ou de eventual inconstitucionalidade no decorrer do processo?

Como conceber que um professor de ensino religioso ministre a disciplina de modo confessional em colégios públicos, face à consagração do Estado laico (CF, art. 19, I), aos fundamentos dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e pluralismo político (CF, art. 1º, V), e aos objetivos fundamentais do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 1º, I), e, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 1º, III), além dos direitos fundamentais individuais vida digna (CF, art. 1º, caput), liberdade (CF, art. 1º, caput), igualdade (CF, art. 1º, caput), liberdade de consciência e de crença (CF, art. 5º, VI), de manifestação de pensamento (ou de expressão) (CF, art. 5º, IV e V) , à informação (CF, art. IV) e, à autonomia da vontade/privada, implicitamente previsto, principalmente, no inciso II do art. 5º da Carta político-jurídica da República?

O guardião da Constituição admitiu tais possibilidades, recentemente, como sabido por todos na seara jurídico-constitucional!

Há que se frisar, desde o mensalão até os escândalos envolvendo pessoas consideradas de “garbo e elegância”, tem-se tido a oportunidade de destituir, no Brasil, aquela ideia de que se tratava de algo imaginário o conteúdo dos escritos de Karl Marx no sentido de que o Estado estaria a serviço dos interesses dos detentores dos meios de produção, os quais o utilizam como instrumento de opressão às classes economicamente menos favorecidas. Ou seja, as apontadas e mistificadas teorias da conspiração.

Atento a isso, quando do recente julgamento da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral, como expuseram Isadora Peron, Anne Warth e Renan Truffi (2017), o Ministro Relator da ação, Herman Benjamin, sustentou que o Brasil sempre inova no campo da corrupção e hoje já está comprovado que leis foram compradas no Congresso por grandes empresários; que em comparação com o que já foi revelado pela Operação Lava Jato, o escândalo do mensalão resulta extremamente modesto e, hoje, seria julgado como pequenas causas; que já não se fala mais do aparelhamento ou captura do Estado pelo poder econômico, mas sim da compra de governantes; que já não se vendia mais apenas o acesso aos gabinetes, mas se entregavam os produtos do trabalho no Executivo e no Legislativo; que os recursos ilícitos desviados não são mais usados apenas para alimentar as campanhas em ano eleitoral, mas investidos em um projeto de poder e; que esses sucessivos escândalos de corrupção no País ocorrem porque os poderosos não têm medo de serem punidos1.

Não se pode negar, como aludiu Luís Roberto Barroso (2017), Ministro do STF, em entrevista para Pedro Bial no dia 22 de agosto do ano corrente, esses escândalos de corrupção envolvendo incomensuráveis representantes estatais e grandes empresários brasileiros, acendeu um ponto de esperança para se poder viver, no Brasil, com mais ética, pois a “poeira” foi escancarada e não jogada para “debaixo de tapete”.

Conforme Barroso (2017) é impossível não sentir vergonha do que vem ocorrendo, já que a corrupção vivenciada é sistêmica, onde se destampa há coisas erradas, devendo-se aproveitar essa oportunidade com determinação no sentido encará-la de frente e criar um país em que a integridade é ponto de partida.

Ao que tudo indica, Barroso tem toda razão, o momento é dos melhores para tanto! Por isso, neste texto, procura-se refletir sobre os motivos pelos quais o Brasil se encontra diante da dicotomia narrada. De um lado, tantas possibilidades, de outro, impossibilidades inescusáveis.

Para isso, se faz imprescindível discutir os problemas que envolvem o tema poder, ideologia, real e imaginário no Estado brasileiro, pois os estágios de convivência social e política (ou a falta dela?) supracitados clamam por debates sobre questões, talvez, crônicas, que estejam por detrás da instalação dessa atmosfera.

 

1. O encobrimento do real

 

José Luiz Quadros de Magalhães, em O encobrimento do real: poder e ideologia na contemporaneidade que, publicado no ano de 2008, se mostra atualíssimo, promoveu uma reflexão sobre poder, ideologia, irreal e real em âmbito global e também no Estado brasileiro. Para apresentar suas ideias fomenta (MAGALHÃES, 2008) uma série raciocínios, os quais podem ser enumerados da maneira arrolada abaixo.

a) Quais são os reais jogos de poder que se escondem por detrás das representações do mundo contemporâneo?

b) A representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais, desde as comunidades primitivas até os nossos dias complexos. Representar é significar.

c) A representação pode ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las.

d) O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e, neste caso, a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas, em geral, propositalmente o que não é.

e) Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes.

f) Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais, a automatização das coisas engole tudo.

g) Cotidianamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem.

h) A automação impede de pensar. Repete-se e simplesmente repete-se. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonha-lo. Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria.

i) Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se se tem certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.

j) A dominação passa pela simplificação das coisas: o bem e o mal; a democracia e o fundamentalismo; o capitalismo e o comunismo.

k) Duas técnicas comuns neste processo de dominação são a nomeação de grupos, criando identidades ou identificações e a explicação de uma situação complexa por meio de um fato particular real. O problema não é que o fato particular seja real, o problema consiste na explicação de algo complexo com um exemplo particular que mostra uma pequena parte do todo que ele quer explicar. É comum assistir a este tipo de geração de preconceito na mídia diariamente.

l) Este poder encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida) funda-se em ideologias, em mentiras.

m) A grande mentira na qual a sociedade encontra-se envolta é do mercado, da liberdade econômica fundada numa naturalização da economia como se esta não fosse uma ciência social mas uma ciência exata. A matematização da economia sustenta a insanidade vigente.

n) A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia.

A partir desses conceitos, o autor lança mão de um raciocínio que focaliza um binômio, por vezes (ou sempre?) antagônico, direitos humanos fundamentais x economia. Segundo o constitucionalista:

Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos mas são direitos naturais quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se afirmamos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos são construídos pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmamos estes direitos como naturais fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro. Este outro irá dizer o que é natural. Quem diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza? (MAGALHÃES, 2008, p. S.N.).

José Luiz Quadros de Magalhães, ao que parece, tem razão, já que a economia tem se apresentado como algo sagrado no mundo contemporâneo. Perceba-se, tudo é economia! Se a economia está bem, tudo está bem; se a economia vai mal, tudo está mal! Seria a economia o “Deus” deste tempo?

O autor (MAGALHÃES, 2008), nesse quadrante, lança mão das construções teóricas de Giorgio Agambem para refletir sobre o tema sacralização e a profanação, aduzindo que as coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas, sendo, portanto, sacrilégio, violar a indisponibilidade da coisa consagrada.

Ao contrário, profanar, segundo este, significa restituir a “coisa” ao livre uso das pessoas. Assim, a “coisa” restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, e logo, livre para ser usada por todos. A “coisa” restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega significados aprisionados, sacralizados (MAGALHÃES, 2008).

Se apresenta interessante, assim, pensar em que medida o capitalismo, a propriedade privada e, em última instância, a economia, se tornaram sagradas na contemporaneidade, já que:

 

O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito que simboliza um mito que o profano se transforma em sagrado. Os sacrifícios são rituais minuciosos onde ocorre a passagem para outra esfera, a esfera separada. Um ritual sacraliza e um ritual pode devolver ou restituir a coisa (ideia, palavra, objeto, pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Este contágio pode restituir o sagrado ao profano. [...] A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas esferas onde o recurso ao mito juntamente com rito cumpre uma função de separação, de retirada de coisas, ideias, palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade de diálogo. A religião como separação, como sacralização, há muito invadiu a política, a economia e as relações de poder na sociedade moderna. O capitalismo de mercado é uma grande religião que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são encerradas com o recurso ao mito para impor uma ideia sacralizada a toda a população. No espaço religioso do capitalismo não há espaço para a racionalidade discursiva pois qualquer tentativa de questionar o sagrado é sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de política econômica. Por isto os proprietários reagem com raiva à tentativa de diálogo, pois para eles este diálogo é um sacrilégio, questiona coisas e conceitos sacralizados há muito tempo, (MAGALHÃES, 2008, p. S.N.).

Como exemplo do que aludiu, o autor (MAGALHÃES, 2008) aponta constatações relacionadas a rituais atrelados ao Estado como a posse de um Juiz de Direito, de um Presidente da República, a formatura, a ordenação de padres e outros rituais “mágicos”, os quais transformam as pessoas em poucos minutos, separando-a do momento anterior ao ritual para uma nova pessoa após o ritual.

Essas solenidades ganham tanta força na atualidade que a maioria esmagadora que frequenta um curso superior hoje não pretende adquirir conhecimentos. O período atravessado nos bancos escolares não é utilizado para saber-se, crescer intelectualmente, e/ou, bem preparar-se para ser um bom profissional, mas para cumprir créditos (até a linguagem é econômica) para no final passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em uma nova pessoa (MAGALHÃES, 2008).

Em outras palavras, almeja-se o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição do conhecimento. O espaço universitário está sendo transformado pela religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adquirido no decorrer de um processo que deveria ser transformador perde importância em relação ao rito (a formatura) e o mito (o diploma) (MAGALHÃES, 2008).

É de se destacar, como afirmado noutro local, enfatiza Giorgio Agamben2:

o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gera a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo (AGAMBEN, 2012, p. S.N.).

O mundo dos fatos demonstra, realmente, que o capitalismo prega a busca pela mansão, pelo carrão caro e potente, pelo telefone celular que faz de tudo, pela maior e mais fina televisão na versão 3D, pelos melhores ultrabooks, notebooks, ipod’s, iphone’s, ipad’s, tablet’s, pelas roupas de grife com preços astronômicos e inacreditáveis etc.

Por outro lado, a comuna do consumo em sua dimensão de culto ao corpo e busca pela aparência “perfeita” apregoa que o homem ideal deve ser alto, forte e bem vestido. O estereótipo feminino reivindica que a mulher tenha cabelos lisos, seja bem vestida, magérrima ou “sarada” e cheia de curvas voluptuosas, na melhor versão panicat. Dessa forma, “o discurso “narcísico-consumista” da sociedade atual produz “ídolos fortemente sexualizados em imagens do dever ser homem e dever ser mulher”” (VAZ, 2004, p. 127).

O ideal atribui, sobretudo, ao perfil e à posse dos bens, acima delineados, o caminho para reconhecimento e sucesso; o pré-requisito por melhores empregos, muito dinheiro, glamour, grandes amigos, tratamento cordial e convites para os mais importantes, famosos e badalados eventos; a conquista de viagens inacreditáveis e momentos inesquecíveis, além de uma vida amorosa e sexual digna dos filmes de Hollywood. Enfim, que com esses atributos tudo se torna mais fácil, alcançando-se a felicidade plena por meio do possuir, o qual proporcionará tudo o que há de melhor.

Em outras palavras, conforme José Luiz Quadros de Magalhães:

O capitalismo é mostrado por vários autores como um espaço de secularização dos processos de sacralização. Max Weber mostra o capitalismo como secularização da fé protestante; Benjamin demonstra que o capitalismo se constitui em um fenômeno religioso que se desenvolve de forma parasitária a partir do cristianismo. [...] Para Giorgio Agambem o capitalismo tem três fortes características religiosas específicas: [...] a) É uma religião do culto mais do que qualquer outra. No capitalismo tudo tem sentido relacionado ao culto e não em relação a um dogma ou idéia. O culto ao consumo; o culto a beleza; a velocidade; ao corpo; ao sexo; etc. [...] b) É um culto permanente sem trégua e sem perdão. Os dias de festas e de férias não interrompem o culto, mas, ao contrário o reforça. [...] c) O culto do capitalismo não é consagrado à redenção ou a expiação da falta uma vez que é o culto da falta. O capitalismo precisa da falta pra sobreviver. O capitalismo cria a falta para então supri-la com um novo objeto de consumo. Assim que este objeto é consumido outra falta aparece para ser suprida. O capitalismo talvez seja o único caso de um culto que ao expiar a falta mais torna a falta universal (AGAMBEN, 2012, p. S.N.).

 

2. Uma perspectiva psicanalítica sobre o real, o imaginário, a ideologia e o poder

 

Segundo Lacan (s.d.), no seminário XXII, que resultou nos cursos por ele proferidos entre 1974/75, o Real precisa ser compreendido a partir da dinâmica de seu entrelaçamento com outros dois registros importantes da psique humana: o Imaginário e o Simbólico.

Isso significa que os seres humanos necessitam, psiquicamente, simbolizar suas experiências para serem capazes de saber distingui-las da imaginação e da ilusão, a despeito do imaginário também agir como um suporte para o indivíduo dar sentido à sua existência. Nesse sentido, não importa se um fato realmente aconteceu ou não, nem se aconteceu daquela maneira, mas importa como o indivíduo se recorda e expressa essa recordação (LACAN, s.d.).

A simbolização das experiências reais se dá sempre por meio de linguagem e, por isso, pode-se inferir que o real é também a linguagem do sujeito que enuncia pelas suas palavras e ações, o registro simbólico dessas.

Trata-se, portanto, de uma linguagem produtora de signos, os quais são produtores de sentidos, que por sua vez motivam ações e produzem seus efeitos. Assim, juntos, o Real, o Imaginário e o Simbólico formam uma figura psicanalítica chamada de nó-borromeano, se constituindo num tipo de amarração necessária para a “normalidade psíquica” do sujeito, permitindo a ele dar sentido a si mesmo e ao real experimentado.

Não obstante, existem quatro discursos que auxiliam ao sujeito na sua amarração: o do mestre (ideologia política ou religiosa), o do histérico (sintoma), o do analista e o científico. Esses discursos estão condensados no Significante Mestre que gera uma cadeia de significantes subjetivos, denominada de cadeia significativa. Desse modo, os “sujeitos normais” agem e reagem a partir do Significante Mestre e da cadeia significativa.

Nos casos de psicopatologias severas, como a esquizofrenia por exemplo, este nó se desfaz e o indivíduo se torna puro inconsciente. Ao perder as referências de Real, Simbólico e Imaginário, ele se encontra totalmente desprotegido de si mesmo, sendo incapaz de distinguir as experiências reais das imaginárias e fantasiosas. Assim, passa a agir e reagir considerando estar vivendo na realidade tal como ele a percebe, ou seja, sem conseguir mais separar o que é real do que é imaginário, logo, está diante de uma fantasia.

Quando na experiência clínica, o terapeuta procede ao deslocamento do subjetivo para o social, pode encontrar o Significante Mestre do discurso de amarração do sujeito condensado num discurso ideológico religioso ou político, ou em ambos, em conformidade com a situação sócio histórica.

Nesse sentido, é possível pensar a relação entre a ideologia/poder e real/imaginário a partir de um psiquismo coletivo que, recorrendo a simbolizações e sentidos historicamente muito específicos de sociedade, é capaz de acionar nos indivíduos as representações, sentimentos, comportamentos e efeitos que deseja.

Considerando o deslocamento do subjetivo para o social, pode-se explorar aqui a hipótese de que na sociedade brasileira atual, o discurso do mestre, no que diz respeito à ideologia política, embora, aparentemente, promova a amarração do sujeito, a partir do Significante Mestre “ética”. Se está, na verdade e, propositalmente, desfazendo seu nó-borromeano. Isso porque o real da política brasileira se constrói a partir de um sentido ético, mas apenas aparente, pois, na sua essência, tem prevalecido a antiética maquiavélica dos fins justificarem os meios.

Como principal efeito deste alinhamento, os indivíduos estão sendo levados à ingressarem, a maioria sem se dar conta, numa esquizofrênica social, onde perdem a capacidade de distinguir o que é real do que é imaginário e passam a viver o imaginário como sendo o real. Por outro lado, cada vez mais as ideologias políticas recorrem aos elementos imaginários para transformar as malfadadas experiências política reais, a ponto de subsumirem no jogo perverso da alusão que ilude e nos signos que circulam na realidade social. Como consequência, os sujeitos vêm perdendo, cada vez mais, o lastro da importância da política no que diz respeito à organização e possibilidades da vida social e coletiva.

Os mais sensíveis e atentos são capazes de perceber como as experiências políticas vêm perdendo importância, nos últimos tempos, na sociedade brasileira, sendo esvaziadas de seu sentido primeiro e original, que é o de construção do bem comum e da realização dos direitos fundamentais.

Em contrapartida, assiste-se à ascensão de comportamentos ideológicos-partidaristas, exclusivistas, bem como de experiências de mercado relacionadas com a cultura do narcisismo e da sociedade de consumo que subvertem a lógica do ganho social e coletivo pelo imperativo do gozo imediato, egoísta e solitário.

Para melhor compreender o deslocamento do psiquismo subjetivo para o social, o alinhamento entre ideologia/poder e real/imaginário, bem como os seus efeitos na cena política brasileira, é válido recorrer ao movimento teórico-metodológico de Michel Foucault (2014), realizado em sua Arqueologia do saber, na qual identificou uma matriz genética inovadora para o poder. Com seus estudos, Foucault promoveu deslocamentos centrais nas ciências sociais, especialmente na ciência política, ao romper com a ideia e concepção de poder localizada exclusivamente no Estado para uma concepção do poder numa perspectiva microfísica, micropolítica e presente em outras instituições, que se identificam com o discurso do mestre, de Lacan.

A questão fundamental em Foucault a interessa é o “poder disciplinar”. Para ele, o poder é concebido ao mesmo tempo em que certos mecanismos, técnicas e ideais são acionados e geram efeitos. Por essa razão, não existe uma relação dominante x dominado, mas uma relação de poder onde alguém sujeita e outro alguém aceita ser sujeitado. Outra característica do poder é ser multifacetado, onisciente e onipresente, estando diluído numa perspectiva relacional. Assim, ele está onde é invocado, e uma vez aceito, gera os efeitos esperados. Por isso, ele não existe, mas o que existem são as práticas e as relações de poder disseminadas por toda a estrutura social.

Ora, se se quiser pensar a relação entre poder/ideologia e real/imaginário na política brasileira, é necessário entender como se dá a apropriação do real/imaginário pelo poder/ideologia. Toda ideologia tem como propósito final o poder sobre os indivíduos, por meio do controle de suas crenças, hábitos, gostos, necessidades, desejos, vontades e valores. Nesse quadrante, toda ideologia pode ser vista como uma forma de disciplinar, de atomizar o indivíduo e de interpela-lo para capturar suas subjetividades (RODRIGUES, 2014).

Para que isso seja possível, a ideologia aciona vários recursos com os quais pode tomar para si o real, torna-lo sua propriedade e não mais a propriedade do sujeito (e da sua subjetividade) que o experimenta, vivencia. Em outras palavras, a ideologia procura se encarregar de construir um Significante Mestre para o real, de representa-lo por meio de sua linguagem e dos signos que escolhe, para os quais ela mesma construirá os sentidos e significados.

Desse modo, a ideologia tende a se tornar a lente pela qual o sujeito realizará sua leitura do real e definirá seu posicionamento sobre as questões, problemas e situações que circulam na micro e macro realidade à qual pertence. Nesse caso, a ideologia deixa de ser somente uma possibilidade de referências do sujeito, dentre várias outras possibilidades, para ser o seu ancoradouro, o porto seguro que orienta e, ao mesmo tempo, justifica sua maneira de ser e de estar no mundo.

Pode-se exemplificar tal condição da ideologia a partir do próprio mito fundador da sociedade brasileira (CHAUÍ, 2000), cujos principais elementos foram a visão paradisíaca da colônia Brasil com a sagração da natureza, o milenarismo, de Joaquim Fiori, com a sagração da história e a elaboração jurídica e teocêntrica da figura do governante como rei pela graça de Deus. Se o conceito de Significante Mestre ao mito fundador for aplicado aqui, pode-se notar claramente que ele emerge a partir do discurso do mestre enunciado pela Religião e condensado na repetição sintomática da origem Sagrada do Brasil nos seus aspectos naturais, históricos e políticos.

No que tange à história, como efeito da ideologia da gênese sagrada, assiste-se ao surgimento de duas possibilidades de sentidos para os fatos que foram, ou, ainda, são experimentados na realidade pelos indivíduos: a história providencial e a história profética. Em ambas as vias o “fazer histórico” já está prometido e determinando por Deus, porém, para cada uma delas o agente responsável por fazer a história acontecer é diferente. Para a via providencial, este agente é um único indivíduo que poderá ser um herói, um mártir, um político estadista. Para a via profética, o agente é a comunidade que poderá ser um grupo social, uma instituição, um partido político.

Seja um único agente ou uma comunidade, a questão é que a ideologia do sagrado retira dos sujeitos a possibilidade de fazerem suas próprias interpretações e construírem seus próprios sentidos e representações para as experiências do real.

O mesmo se aplica com relação à sagração do governante, em cuja escolha ideológica dos signos ocorre a condensação das experiências do real da política, alienando os sujeitos da possibilidade de representarem o real por si mesmos. Como exemplos disso, pode-se citar a escolha da imagem de um Tiradentes, que mais se assemelha a um “cristo cívico” (CARVALHO, 1998) para representar a República, a visão messiânica que o brasileiro tem da política (e do político) como salvador, bem como a força do populismo na prática política brasileira que opera, simultaneamente, como signo de representação e práxis de realização política.

Não obstante, na atual cena política brasileira, assiste-se ao digladiar de duas ideologias claramente definidas a partir das vias geradoras de sentidos para o real anteriormente mencionadas. São ideologias que buscam capturar as subjetividades dos sujeitos e construírem um sentido para o real que lhes interessa, por meio da linguagem e dos signos que produzem. É neste contexto que signos como “pato amarelo”, “coxinha”, “comuna” e “esquerdopata”, ganham importância porque condensam as experiências reais e imaginárias e se tornam praticamente a única forma de representação do real da política no país.

Arrebatados pelas ideologias e sem terem condições de dar sentido e representar o real por si mesmos, os sujeitos passam a ser, estar e agir, na cena política brasileira, a partir dos signos ideológicos que, ao capturarem suas subjetividades, determinam os valores, crenças, sentimentos e ações que devem ter. Com efeito, os sujeitos já não conseguem diferenciar mais o que é real do que é imaginário. Passam, portanto, a viver numa esquizofrenia social cujos efeitos são altamente perversos e prejudiciais. Assim como para o esquizofrênico tudo é permitido, para a sociedade esquizofrênica, por causa da ideologia, tudo também é permitido.

Por isso, presencia-se, cada vez mais, a perda de referências comportamentais para o que é ético, moral, certo, errado, justo, injusto, legal, ilegal, legítimo e ilegítimo.

A ineficácia social da normativa jurídica tem feito para da realidade brasileira como nunca, por conta do seu desrespeito por parte de civis e de representantes estatais, que a manobram, ao seu gosto, para satisfazer seus interesses pessoais. Há um fortalecimento escancarado da naturalização, horizontalização e fortalecimento do “jeitinho brasileirinho” nas situações mais corriqueiras.

Há um aumento, também, das práticas e hábitos da cultura narcísica e do consumismo. O crescimento da judicialização da vida (MARRAFON, 2014) resulta do baixo grau de ética nas relações interpessoais. As pessoas estão vivendo, cada vez mais, do presentismo, perdendo, logo, toda e qualquer referência das experiências passadas e das projeções e perspectivas de futuro.

No entanto, é no autoritarismo afetivo (CERQUEIRA FILHO, 2005), caracterizado como sendo um conjunto de fantasias de poder e autoridade, em que se encontra o principal efeito das ideologias. Todo indivíduo comprometido ideologicamente corre o risco de se ver como uma autoridade que se sente autorizada a negligenciar, perseguir e exterminar àqueles que não estão comprometidos com a sua representação do real ou são definidos estrategicamente como inimigos.

Nesse sentido, o autoritarismo afetivo pode ser visto como o excesso que revela o principal sintoma da esquizofrenia social, causada pelas ideologias. Embora, talvez historicamente, o melhor e mais contundente exemplo deste efeito ideológico seja o comportamento dos indivíduos durante o nazi-fascismo, não se pode deixar de tomar como signos representativos do autoritarismo afetivo as trocas de mensagens pelas redes sociais e o comportamento agressivo dos sujeitos nas manifestações de ruas, que vêm marcando a cena política e social atualmente. Tratam-se de atitudes cujos conteúdos são fortemente ofensivos, desqualificadores e, até mesmo, expressivos do desprezo e do ódio por aqueles que não estão no mesmo horizonte ideológico.

Como a psicanálise informa, todo excesso é sintoma que pode levar ao domínio/dominação molecular do desejo. A ideologia alcança o nível molecular do desejo dos indivíduos, levando-os a desejarem o que ela quer que seja desejado. No entanto, a ideologia em si não é necessariamente o mal, pois, conforme vimos, ela ocupa um lugar importante na amarração do sujeito, como discurso do Mestre, contribuindo para auxiliá-lo a se situar no mundo.

Desse modo, o problema está no excesso ideológico. É ele quem cega aos sujeitos porque captura suas subjetividades, aliena-os da capacidade crítica e da possibilidade de experimentarem e simbolizarem o real por si mesmos. Mergulha-os num estado permanente de esquizofrenia social, onde não há mais imaginário, mas só o real (ideologizado) e os signos que orientam o comportamento dos indivíduos. Manipula, assim, as contradições sociais aparentes como parte das estratégias de dominação disciplinar dos sujeitos.

 

Considerações finais

 

Talvez este seja o momento adequado de se recuperar a ideia aristotélica da razão mediana, pois pode ser que ela resguarde a sociedade das armadilhas ideológicas das extremidades. Quiçá, ajude a entender com Hanna Arendt (2016) que a condição humana de agir para sobreviver, embora esteja condicionada pela cultura e pelo tempo histórico, não precisa ser necessariamente dominada pelos excessos ideológicos.

Dessa maneira, poder-se-á aprender que é na ação, ou seja, na capacidade humana de intervir publicamente no mundo, mediante palavras ou atos, que se pode, equilibrada e saudavelmente, ter a chance de iniciar algo novo ou de se mudar uma maneira de fazer as coisas. É nesse horizonte que se deve situar o agir político.

Como desenvolvido no decorrer deste texto, algumas circunstancias tem impedido que as pessoas sejam livres e iguais (SARMENTO, 2010), o que ocasiona, fatalmente, uma falência político-jurídica de convivência social.

Ao que tudo indica, isso muito se deve à ausência do devido preparo educacional e cultural de uma maioria, o que leva à automação, à manipulação ideológica e, em última instância, a uma grandiosa falta de ética. Isso, aliado ao atual estágio da ética neoliberal e ao “jeitinho brasileiro”, pode revelar valiosa sugestão para se entender melhor os problemas aqui enfrentados.

Mario Sergio Cortella (s.d.), em diálogo com Clóvis de Barros Filho sobre a ideia da ética como instrução, fomenta tratar-se a mesma de uma natureza exemplar, aspecto que, principalmente, algumas famílias, empresas e maior parte da mídia esquecem. Ou seja, como a formação, dentro de uma sociedade e cultura, se dá a partir daquilo que se tem como espelhamento de conduta, crianças e jovens, em grande medida, se formam eticamente a partir daquilo que observam como conduta prática correta do pai e da mãe, avô, avó, tio, tia etc., e, mais tarde, a partir da convivência com os amigos, no trabalho, bem como dos referencias passados pela mídia escrita e falada. Necessário interrogar, nesse horizonte, qual discurso as crianças e jovens em geral têm assistido em suas casas e nesses demais locais? Ao que parece, em regra, o narcísico-consumista.

Nesse viés, ao que tudo indica, estariam os idealistas dos significantes do consumo construindo significados aptos a, adotando os dizeres de Bourdieu (2010), alocar na consciência coletiva símbolos a serviço da dominação, contribuindo para a integração real da classe dominante e uma integração fictícia da sociedade em seu conjunto, desmobilizando as classes dominadas.

Perceba-se, assim, o processo de compreensão do mundo encontra-se maculado para uma imensa maioria, a qual tem se deparado com um único referencial de vida, aquele voltado ao gozo imediato, o qual encontra-se atrelado ao ter, ao possuir, ao consumir, seja a coisa (objeto) ou a pessoa (enquanto objeto). As pessoas, reitere-se, em regra, pelo que se assiste, dormem e acordam com esse objetivo.

Para que se supere esse paradigma com a devida mediania, deve-se, primeiramente, haver uma reconstrução do processo de compreensão existencial e de mundo contemporâneos, no qual o giro hermenêutico se apresenta como ferramenta essencial, apresentando-se as teorias de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer muito contundentes para a proposta.

O primeiro, Heidegger (1988), com o seu Dasein, ou ser-aí, ou ser-no-mundo, trabalhou a ideia de que as condições e possibilidades existenciais da pessoa se manifestam a partir das escolhas que se dariam a partir dos fenômenos historicamente situados. Ou seja, conforme Pereira (2007), as ocorrências mundanas são compreendidas, pode-se afirmar, com base nos fatos (fenômenos) enquanto tais e não do subjetivismo humano.

Indo além, o segundo, Gadamer (1998), sustentou que a compreensão da verdade depende sempre de uma situação hermenêutica, do giro hermenêutico, que reivindica uma troca entre o compreender histórico e o modo ser da pessoa. Ou seja, todos possuem suas pré-compreensões do mundo, as quais foram construídas por conceitos filosóficos, sociológicos, políticos, econômicos etc., até então acumulados. Entretanto, o ser se depara com os fenômenos historicamente situados, deverá procurar compreendê-los a partir desses e não sob as arestas das preconcepções sobre o mundo posto, pois cada fenômeno tem algo a revelar sobre si, o que só poderá ser escancarado e, logo, descoberto, com essa troca de perspectiva.

Em outras palavras, deve-se apoiar a ideia de que somente se avançará no sentido de se obter uma leitura ideal do mundo contemporâneo e a consequente convivência social democrática com uma reforma no espírito do brasileiro nos termos hermenêuticos propostos, pois se isso não ocorrer, prosseguir-se-á como se está, donde se encontram pessoas extremamente individualistas e voltadas à satisfação pessoal, negando a existência do outro e dos seus direitos3.

Relativamente ao papel do direito nesse contexto, é válido recordar uma passagem de Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2010) quando fomenta apresentar-se o mesmo como um complicado mundo de contradições e coerências, pois em seu nome encontram-se respaldadas as crenças da obtenção de uma sociedade ordenada, bem como se agitam a revolução e a desordem.

Lembra o autor (FERRAZ JÚNIOR, 2007), o direito deste tempo tem abarcado, ao mesmo tempo, as filosofias da obediência e da revolta, servindo de substrato para se expressar e se produzir a aceitação do status quo, e por outro lado, como sustentação da indignação e da rebelião.

Assim, de um lado protege o indivíduo contra o arbítrio e do outro tem se apresentado como um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e dominação que, por sua complexidade, é acessível a alguns poucos especialistas (FERRAZ JÚNIOR, 2007).

Luiz Flávio Gomes (s.d.), a partir do texto Quanto mais igualdade, menos crimes violentos, destaca que os países escandinavos, donde encontram-se os povos mais felizes do globo terrestre, em que a criminalidade tem reduzido em escala grandiosa, há a adoção de políticas criminais vinculadas a um capitalismo evoluído, distributivo e tendencialmente civilizado, cuja condição essencial da liberdade econômica é que a pessoa disponha de trabalho estável e com salário digno, depois de ter se preparado para o mercado competitivo por meio de um ensino de qualidade.

Frisa Gomes (s.d.) que a tática adotada nesses locais se resume na criação de estratégias baseadas na conjugação da política criminal com a política econômica, de maneira que se obtenha uma relação saudável e sustentável entre o capital e o trabalho, que não pode nunca ser regida pela escravização, ou neoescravização, tal como ocorre nos países de capitalismo selvagem e/ou extremamente desigual, no qual o Brasil se insere, por isso a criminalidade crescente?

Para Luiz Flávio Gomes (s.d), o capital altamente civilizado, ética adotada naqueles países, nunca é uma potência opressiva e desavergonhadamente concentradora, além de alienante do trabalho, ao contrário, é a base da libertação econômica e, em consequência, política, do trabalhador.

Nesse quadrante, é preciso decidir-se que caminho tomar no Brasil, ou seja, uma sociedade aberta e ecumênica, animada por um espírito de igualdade e de concórdia, ou um arquipélago de ilhotas de opulência e de privilégios perdidas no seio de um oceano frio de miséria, medo e desprezo pelo outro (WACQUANT, 2004).

Fazendo uso, uma vez mais, dos dizeres de Luiz Flávio Gomes (s.d.), dentre os supra referidos países mais felizes do mundo, na Islândia, 1,1 % da população é muito rica, 1,5 % está insatisfeita e 97 % compõe a classe média com alta renda per capita e excelente escolaridade. Se nos foi passado que as utopias é que ampliavam os horizontes, o legado se inverteu, esse horizonte está posto e é ele que deve mover as utopias.

Por derradeiro, se mostra imprescindível parafrasear a Presidente do Supremo Tribunal Federal: “Eu quero mudar o Brasil, não quero me mudar do Brasil” (LÚCIA, 2017, p. S.N.).

 

Referências

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1 Esse assunto foi tratado em: DUARTE, Hugo Garcez; LEITE, Alessandro da Silva.Uma visão histórica da Teoria da Separação dos Poderes no Brasil. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XX, n. 164, set 2017. Disponível em: .

2 Fomentamos essas ideias em: LEITE, Alessandro da Silva; DUARTE, Hugo Garcez Duarte. Ethos capitalista e criminalidade: sujeito desviante ou (in) efetividade dos direitos humanos? In: Revista Direito & Paz – Unisal – Lorena/SP – Ano XV – Nº 29 – 2º Semestre/2013 – pp. 561-590

3 Algumas dessas ideias foram desenvolvidas em: MOURA, Viviane Pereira de; DUARTE, Hugo Garcez. A política e a Constituição. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XX, n. 163, ago 2017. Disponível em: .

Data da conclusão/última revisão: 15/2/2018

 

Como citar o texto:

DUARTE, Hugo Garcez; LEITE, Alessandro da Silva..Os direitos no Brasil contemporâneo: por um foco na pessoa. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1509. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/etica-e-filosofia/3931/os-direitos-brasil-contemporaneo-foco-pessoa. Acesso em 22 fev. 2018.

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