Em primeiro lugar, deve-se observar que a questão ora abordada - possibilidade de edição de lei estadual restringindo o consumo de bebidas alcoólicas - encontra-se dentro do chamado poder de polícia administrativa, que, conforme leciona Hely Lopes Meirelles, consiste na "faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado" (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 16ª edição, p. 110).

Este conceito doutrinário há muito foi positivado na legislação brasileira. De fato, o Código Tributário Nacional, em texto amplo e explicativo, dispõe:

"Art. 78. Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos."

O poder de polícia administrativa manifesta-se tanto através de atos normativos e de alcance geral quanto de atos concretos e específicos, aptos a condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade.

Neste sentido a lição do professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

"A polícia administrativa manifesta-se tanto através de atos normativos e de alcance geral quanto de atos concretos e específicos. Regulamentos ou portarias - como as que regulam o uso de fogos de artifício ou proíbem soltar balões em épocas de festas juninas -, bem como as normas administrativas que disciplinem horário e condições de vendas de bebidas alcoólicas em certos locais, são disposições genéricas próprias da atividade de polícia administrativa." (Curso de Direito Administrativo, 13ª ed., Ed. Malheiros, págs. 695/696)

O poder de polícia é inerente a toda Administração Pública e se reparte entre as esferas administrativas da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Todavia, segundo a técnica de repartição de competências adotada pela Constituição de 1988, há competências que são deferidas com exclusividade a determinada unidade federativa, enquanto outras são exercidas concorrentemente.

Como adverte Hely Lopes Meirelles:

"Em princípio tem competência para policiar a entidade que dispõe do poder de regular a matéria. Assim sendo, os assuntos de interesse nacional ficam sujeitos à regulamentação e policiamento da União; as matérias de interesse regional sujeitam-se às normas e à polícia estadual; e os assuntos de interesse local subordinam-se aos regulamentos edilícios e ao policiamento administrativo municipal.

Todavia, como certas atividades interessam simultaneamente às três entidades estatais, pela sua extensão a todo o território nacional (v. g. saúde pública, trânsito, transportes, etc.), o poder de regular e de policiar se difunde entre todas as Administrações interessadas, provendo cada qual nos limites de sua competência territorial. A regra, entretanto, é a exclusividade do policiamento administrativo; a exceção é a concorrência desse policiamento." (Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 16ª edição)

A matéria ora tratada - restrição do uso de bebidas alcoólicas - situa-se dentre aquelas cuja competência, em razão do simultâneo interesse, pode ser exercida concorrentemente entre as unidades da federação.

De fato, como assinala José Afonso da Silva, "há, contudo, uma repartição de competências nessa matéria (organização da segurança pública) entre a União e os Estados, de tal sorte que o princípio que rege é o de que o problema da segurança pública é de competência e responsabilidade de cada unidade da Federação, tendo em vista as peculiaridades regionais e o fortalecimento do princípio federativo, como, aliás, é da tradição do sistema brasileiro" (in Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., 1994, Malheiros Editores).

Em consonância com a supracitada lição doutrinária, dispõe o art. 144 da Constituição Federal:

"Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

........................................"

Desta forma, indiscutível a possibilidade de regulamentação da questão mediante a edição de lei estadual.

Ressalte-se, ainda, que não se pode enquadrar o tema em discussão como de "predominante interesse local", razão pela qual, não há qualquer invasão da esfera de competência legislativa privativa dos Municípios (art. 30, I, da CF/88).

É que, em matéria de competência legislativa, rege o princípio da predominância do interesse, sendo da União o tratamento de questões nas quais predominam o interesse nacional e da generalidade dos cidadãos, dos Estados o tratamento das matérias relativas a interesses essencialmente regionais e por fim aos Municípios competem os assuntos de interesse predominantemente locais.

Confira-se, a respeito, a lição de José Afonso da Silva e Hely Lopes Meirelles, in verbis:

"O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios conhecerem os assuntos de interesse local, tendo a Constituição vigente desprezado o velho conceito do peculiar interesse local que não lograra conceituação satisfatória num século de vigência." (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., São Paulo, Malheiros, 1993, p.418)

"O interesse local caracteriza-se pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse para o Município, em relação ao do Estado a da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau e não de substância". (Hely Lopes Meirelles, Direito de Construir, 6ª ed., Malheiros, 1993, p. 120)

Portanto, se o interesse ultrapassar os limites do Município, afastada estará sua competência privativa, legitimando-se, assim, a edição de normas estaduais e federais sobre a questão, conforme estejam em jogo, respectivamente, necessidades regionais ou nacionais.

No caso presente, o interesse em jogo (melhoria da segurança pública mediante a restrição da venda de bebidas alcoólicas) não pode ser considerado predominante no âmbito municipal. Trata-se, na verdade, de assunto onde predomina o interesse regional, em face da necessidade de disciplinamento uniforme da questão em todo o território estadual.

Por outro lado, inexiste violação aos princípios constitucionais do livre exercício da atividade econômica e da livre iniciativa, previstos nos arts. 1º, 4º e 170, parágrafo único, da Constituição Federal.

Essas liberdades constitucionais não afastam a possibilidade regramento restritivo estatal com o objetivo de assegurar o bem-estar da coletividade, uma vez que não escapa ao crivo fiscalizador e normativo do Estado (art. 174 da CF/88).

Se é certo que o Estado brasileiro adotou um modelo econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção, na iniciativa privada e na livre concorrência, não menos correto é concluir que isto não implica dizer que não cabe ao Estado intervir nos casos em que seja necessária sua atuação na defesa dos interesses públicos.

Neste sentido, as seguintes decisões do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

"DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO - SINDICATO - LEGITIMIDADE - MEDIDA PROVISÓRIA N. 2.180-35, DE 24/08/2001 - ESTABELECIMENTO COMERCIAL - VENDA DE BEBIDAS ALCOÓLICAS - HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO - LIMITAÇÃO - LEGALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO - MANDAMUS DENEGADO. I - PRELIMINARES: O "MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO É DESTINADO TÃO-SÓ À PROTEÇÃO DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO E INCONTESTÁVEL DE TODA UMA CATEGORIA - OU DA MAIORIA DOS MEMBROS DESSA CATEGORIA" (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR). NESSA ESTEIRA, NÃO SE DESNATURA ESSA ESPÉCIE DE AÇÃO MANDAMENTAL APENAS PORQUE, EVENTUALMENTE, EM SEU ÂMBITO DE TUTELA NÃO SE ALCANÇARÁ TODA A COMUNIDADE RESPECTIVA. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. II - PRESENTES OS REQUISITOS INCLUÍDOS PELA MEDIDA PROVISÓRIA N. 2.180-35, DE 24/08/2001, AO ART. 2º DA LEI N. 9.494/97, QUAIS SEJAM, A ATA DA ASSEMBLÉIA QUE AUTORIZOU A INICIATIVA POSTULATÓRIA DO IMPETRANTE, COMO TAMBÉM A IDENTIFICAÇÃO DOS SINDICALIZADOS, INCLUSIVE, COM A INDICAÇÃO DO ENDEREÇO, HÁ DE SE CONCLUIR POR SATISFEITO O PRESSUPOSTO LEGAL PARA A REGULAR IMPETRAÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. III - MÉRITO: SE É CERTO QUE A ATIVIDADE ECONÔMICA É ASSEGURADA A TODOS, INDEPENDENTEMENTE DE AUTORIZAÇÃO DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS, SALVO OS CASOS PREVISTOS EM LEI, NÃO MENOS CORRETO É QUE TAL ATUAÇÃO NÃO ESCAPA AO CRIVO FISCALIZADOR E NORMATIVO DO ESTADO. SOB ESSA ÓTICA, AS AUTORIDADES COATORAS, ESCORADAS EM BASE LEGAL, E NO EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA, LEGITIMAMENTE EXPEDIRAM A PORTARIA CONJUNTA DE N. 06/SESP/SUCAR, DE 14 DE MARÇO DE 2002, PARA ESTABELECER, CONFORME CERTOS CRITÉRIOS, OS HORÁRIOS DE PERMISSÃO DE VENDA DE BEBIDAS ALCOÓLICAS PELOS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS E SIMILARES DE BRASÍLIA. IV - SALIENTE-SE QUE O PODER PÚBLICO À VISTA DO INTERESSE PÚBLICO E DIANTE DE IRREGULARIDADES, OU ATÉ MESMO ILÍCITO, POR VEZES, PENAL, NO EXERCÍCIO, POR EXEMPLO, DO COMÉRCIO, DA INDÚSTRIA, EM ÁREAS SANITÁRIAS, PODE, NA DESINCUMBÊNCIA DO SEU PODER DE POLÍCIA, INTERDITAR, SUSPENDER E, INCLUSIVE, FECHAR O ESTABELECIMENTO COM O ENCERRAMENTO DAS ATIVIDADES, COMO NÃO PODERIA, O MENOS, DISCIPLINAR O HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DE TAIS ATIVIDADES? V - MANDADO DE SEGURANÇA DENEGADO." (TJDF, Conselho Especial, Mandado de Segurança nº 2002.00.2.0039261, rel. Des. Jeronymo de Souza, pub. no DJ de 09.07.2003)

"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PRETENSÃO DO APELANTE DE VER CASSADA A SENTENÇA POR FATO SUPERVENIENTE OCORRIDO A CONFIRMAR A TESE ESPOSADA POR ELE NA PRESENTE DEMANDA, CONSISTENTE NA DECISÃO PROFERIDA EM QUE SE CONCEDEU LIMINAR EM AÇÃO PROPOSTA PELO SINDICATO DOS HOTÉIS, BARES E RESTAURANTES DO DISTRITO FEDERAL. INACOLHIMENTO. MÉRITO: A) NÃO PODERIA A ADMINISTRAÇÃO SE VALER DAS PORTARIAS CONJUNTAS N. 2 E 3 OU POSTERIORES POSTARIAS, POR NÃO SEREM LEIS EM SENTIDO FORMAL, QUE NÃO TÊM O CONDÃO DE OBSTAR A VENDA DE BEBIDAS APÓS DETERMINADO HORÁRIO, SOB PENA DE MALFERIR O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. B) A PROIBIÇÃO RESULTOU EM OFENSA AO PRINCÍPIO DO LIVRE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E DA LIVRE INICIATIVA. C) AS PORTARIAS SÃO DESPROPORCIONAIS, POIS NÃO FAZEM QUAISQUER ACEPÇÕES NO TOCANTE AO TIPO DE TRAILLERS E QUIOSQUES, LOCALIZAÇÃO....

1. Não é razão bastante para se cassar a r. sentença, o fato de em processo similar ter sido deferida liminar, já que o julgador é livre para expressar o seu posicionamento, desde que fundamente a decisão.

2. As portarias, uma vez que exprimem a vontade e o comando da lei, são também instrumentos legítimos através dos quais os agentes públicos podem atuar no cumprimento de seus deveres e obrigações.

A autorização para a utilização da área pública não exime o autorizado do cumprimento das normas de postura, saúde pública, segurança pública, trânsito e outras estipuladas para cada tipo de atividade a ser exercida.

3. A Administração encontra-se em situação de supremacia sobre os administrados sempre que impuser uma limitação em benefício do interesse público. Não havendo abuso, arbitrariedade ou ilegalidade, suas ordens devem ser acolhidas pelos administrados.

4. A segurança pública deve prevalecer sobre o interesse econômico.

5. Recurso improvido." (TJDF, Segunda Turma Cível, Apelação Cível nº 2002.01.1.011054-2, rel. Des. Mário-Zam Belmiro, julg. em 26.06.2003)

"AGRAVO REGIMENTAL. LIMINAR INDEFERIDA EM MANDADO DE SEGURANÇA. PODER DE POLÍCIA.

Não se mostra plausível suspender, em liminar, as portarias que determinam o fechamento em horários determinados de estabelecimentos comerciais que vendem bebidas alcoólicas se não demonstrado amplamente o fumus boni iuris e o periculum in mora, até porque tal ato encontra-se dentre aqueles que se encaixam no poder de polícia da Administração Pública." (TJDF, Conselho Especial, Agravo Regimental no Mandado de Segurança nº 2002.00.2.001592-2, rel. Des. Edson Alfredo Smaniotto, julg. em 04.06.2002)

No que toca especificamente à proibição de comercialização de bebidas alcoólicas às margens das rodovias localizadas no território estadual, deve-se esclarecer que não existe nenhuma inconstitucionalidade nesta medida.

De fato, o STF já declarou a constitucionalidade de norma com tal objetivo, afirmando que não se trata de matéria de direito comercial, mas sim de direito administrativo, para cuja disciplina têm competência os Estados-Membros. Eis as ementas das seguintes decisões:

"CONSTITUCIONAL. TRÂNSITO. RODOVIAS ESTADUAIS: ACESSO DIRETO. Lei 4.885, de 1985, do Estado de São Paulo. I. - A Lei 4.885, de 1985, do Estado de São Paulo, art. 1º, não dispõe sobre matéria de direito comercial. Dispõe, sim, sobre matéria de direito administrativo, já que disciplina a autorização para dispor de acesso direto à rodovia estadual. A lei estadual apenas estabelece que os estabelecimentos comerciais situados nos terrenos contíguos às faixas de domínio do DER somente poderão obter autorização de acesso direto às estradas estaduais se se comprometerem a não vender ou servir bebida alcoólica. II. - Inocorrência de ofensa ao princípio da irretroatividade das leis ou do respeito ao direito adquirido. III. - Constitucionalidade do art. 1º da Lei paulista 4.855, de 1985, regulamentado pelo art. 1º do Decreto estadual 28.761, de 26.08.88. IV. - R.E. não conhecido." (STF, Tribunal Pleno, RE nº 148.260/SP, rel. Min. Carlos Velloso, pub. no DJ de 14.11.1996)

"ESTADO DE SÃO PAULO. ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS COM ACESSO DIRETO ÀS RODOVIAS ESTADUAIS. LEI Nº 4.885, DE 1985. Hipótese em que, na forma do diploma legal em referência, estão eles proibidos de vender e de servir bebidas alcoólicas. Recurso extraordinário conhecido, mas improvido." (STF, 1ª T., RE nº 183.882/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, pub. no DJ de 25.06.1999)

(Data de Confecção: março de 2004)

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Como citar o texto:

PINTO JÚNIOR, Paulo Roberto Fernandes..A constitucionalidade de leis estaduais restritivas do consumo de bebidas alcoólicas. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 112. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/463/a-constitucionalidade-leis-estaduais-restritivas-consumo-bebidas-alcoolicas. Acesso em 29 jan. 2005.

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