Análise contemporânea sobre a prerrogativa de foro dos parlamentares federais

1. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal e as problemáticas envolvendo a prerrogativa de foro no Brasil

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, recentemente, quando da apreciação de questão de ordem no âmbito da Ação Penal (AP) 937, por maioria de votos, pela restrição do foro por prerrogativa de função referente aos parlamentares federais.

Segundo o tribunal, a partir de então, referida prerrogativa somente será aplicada àqueles delitos supostamente cometidos relacionados à função parlamentar. Ou seja, no exercício do cargo ou em razão da função exercida. 

Prevaleceu, no julgado, o voto do ministro relator, Luís Roberto Barroso, o qual frisou, ainda, que, 

[...] após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. Seguiram integralmente o voto do relator as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia, presidente da Corte, e os ministros Edson Fachin, Luiz Fux e Celso de Mello. O ministro Marco Aurélio também acompanhou em parte o voto do relator, mas divergiu no ponto em que chamou de “perpetuação do foro”. Para ele, caso a autoridade deixe o cargo, a prerrogativa cessa e o processo-crime permanece, em definitivo, na primeira instância da Justiça. Ficaram parcialmente vencidos os ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, que reconheciam a competência do STF para julgamento de parlamentares federais nas infrações penais comuns, após a diplomação, independentemente de ligadas ou não ao exercício do mandato. E ainda os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que deram maior extensão à matéria e fixaram também a competência de foro prevista na Constituição Federal, para os demais cargos, exclusivamente para crimes praticados após a diplomação ou a nomeação (conforme o caso), independentemente de sua relação ou não com a função pública em questão. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018, p. s./p.).

Por mais que se tenha esse posicionamento do Pretório Excelso, importa salientar, a prerrogativa de foro em razão da função sempre despertou discussões e dividiu opiniões em âmbito jurídico. 

Por um lado, defende-se, principalmente, que a prerrogativa não seria concedida em razão da pessoa que exerce o cargo ou função, e sim, por conta da função pública exercida, que, por sua natureza, necessita de uma proteção jurídica maior para ser plenamente efetivada. Logo:

Tendo em conta a acentuada relevância que certos cargos e funções públicas encerram para a estrutura republicana erigida no texto constitucional, o legislador constituinte originário tratou de edificar um regramento de foros especiais para o processamento e julgamento daquelas autoridades que os ocupam. A finalidade é evitar, tanto quanto possível, decisões prolatadas sob forte pressão externa ou influenciadas pelos constrangimentos da proximidade. (MASSON, 2016, p. 672).

Doutro prisma, há quem defenda tratar-se a prerrogativa de um privilégio, devendo, por essa razão, ser abolida, ou, ao menos, ser objeto de modifição no que diz respeito às regras de sua incidência. Este é, por exemplo, o entendimento da comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, exposto por seu relator, Senador Randolfe Rodrigues, em parecer acerca das propostas de emenda constitucional nº 10 de 2013 e nº 18 de 2014, ambas versando sobre a temática. Eis passagem concernente:

[...] O Estado democrático de direito e o princípio republicano privilegiam a igualdade de todos perante a lei, não havendo lugar para privilégios injustificáveis como o foro especial para julgamento de crime comum praticado por autoridade. (SENADO FEDERAL, 2017, p. 1). 

 

A propósito, após a deflagração de várias operações de combate ao crime organizado e lavagem de dinheiro, o que culminou na propositura de inúmeras ações penais, esse tema passou a ser protagonista na pauta das discussões jurídicas, devido ao grande número de autoridades políticas investigadas detentoras de prerrogativa de foro perante o STF. À respeito e estabelecendo uma crítica, o Senador Randolfe Rodrigues, acima citado, ponderou:

O foro por prerrogativa, apelidado sem nenhuma propriedade de “foro privilegiado”, é uma das demandas mais prementes que foram vocalizadas pela sociedade brasileira desde as jornadas de junho de 2013 até o epicentro nervoso da crise política que o país atravessa ainda nos dias de hoje, após o descortinamento dos perniciosos arranjos criminosos de apropriação da coisa pública, que foram revelados nos últimos anos. (SENADO FEDERAL, 2017, p. 3).

Nesse horizonte, as discussões tomaram contornos ainda mais significativos após as primeiras sentenças condenatórias resultantes das investigações efetuadas na operação Lava Jato, proferidas pelo Juiz de primeiro grau da 13ª Vara Criminal Federal localizada no estado do Paraná, pois enquanto vários dos réus que não possuíam tal prerrogativa já haviam sido julgados e condenados, os processos envolvendo detentores da “benesse” ainda se encontravam em fase pré-processual no STF, colocando-se, assim, em “cheque”, fatores como a morosidade da justiça e a eficiência da aplicabilidade da legislação penal vigente para os detentores seus detentores. Inclusive, o próprio Juiz Sérgio Moro, responsável pela prolação de tais sentenças, assim se manifestou:

Precisa realmente este foro privilegiado? Ele gera benefícios? Ele vem funcionando a contento? Pontualmente, funciona. Caso da ação penal 470. Mas vamos lembrar que foram quase seis anos até que o caso fosse julgado no STF. Em que pese todos os méritos do STF no caso, é um tempo bastante significativo. (MORO, 2017, p. s/p).

Ante ao exposto, se faz necessário discutir o instituto em busca de uma solução para a lentidão da persecução penal envolvendo os detentores do foro especial por prerrogativa de função, o que pode causar (e tem causado) uma sensação de impunidade para grande parte da população brasileira. Como a Constituição Federal de 1988 delegou a várias funções do nosso Estado a prerrogativa de foro, trataremos, aqui, daquela referente aos parlamentares federais, principalmente, por conta da decisão do Guardião da Constituição supracitada. 

Nossas ideias serão propostas em quatro pontos. No primeiro, apresentaremos uma visão geral sobre o assunto, apresentando o dispositivo constitucional que concede a prerrogativa de foro, julgados referentes ao tema e a justificativa de sua concessão para os detentores de mandato parlamentar federal eletivo.

No segundo ponto, exporemos alguns argumentos doutrinários e jurisprudenciais a favor da manutenção da prerrogativa. No ponto seguinte, apresentaremos alguns dos principais argumentos pró-abolição da prerrogativa. 

Por derradeiro, realizaremos uma exposição das considerações finais obtidas por meio deste estudo e de suas reflexões.

 

2. A prerrogativa de foro dos parlamentares federais

O foro especial por prerrogativa de função dos membros do Congresso Nacional é assegurado aos detentores de mandato eletivo para os cargos de deputado e senador federais, desde a sua diplomação, de acordo com o § 1º do art. 53 da Constituição Federal de 1988, in verbis: “Os deputados e senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal” (BRASIL, 2015, p. 36).

Este dispositivo constitucional é complementado pela alínea b do inciso I do art. 102 do mesmo Diploma Normativo, o qual prevê: 

Compete ao Supremo Tribunal Federal á guarda da Constituição, o processamento e julgamento dos crimes comuns praticados pelo presidente e vice-presidente da república, pelos membros do congresso nacional, pelos ministros do Supremo Tribunal Federal e pelo Procurador Geral da República. (BRASIL, 2015, p. 48).

Portanto, segundo exposição textual constitucional expressa, desde o marco diplomação, o parlamentar federal passa a ser possuidor da prerrogativa de foro, em razão da função pública para qual foi eleito. 

De tal modo, segundo poscionamento anterior ao firmado pelo Pretório Excelso na AP 937, caso o parlamentar federal fosse acusado pela prática de infração penal comum, seu processo e julgamento deveriam ser efetuados pelo STF. Noutra vertente, todos os processos penais existentes antes da diplomação, seriam enviados à Corte Constitucional, preservando-se, porém, os atos efetuados e as decisões proferidas até então. Veja-se: 

A diplomação do réu como deputado federal opera o deslocamento, para o STF, da competência penal para o persecutio criminis, não tendo o condão de afetar a integridade jurídica dos atos processuais, inclusive os de caráter decisório, já praticados, com base no ordenamento positivo vigente á época de sua efetivação, por órgão judiciário até então competente. [HC 70.620, rel. min. Celso de Mello, j. 16-12-1993, P, DJ de 24-11-2006.] (BRASIL, 2006, p. s/p).

A expressão crime comum (infração penal comum), na hipótese, abarcaria todas as espécies de delitos supostamente praticados pelos deputados e senadores federais, inclusive, os dolosos contra a vida. Nesse sentido, de acordo com recente posicionamento doutrinário do Ministro do STF Alexandre de Moraes:

O supremo Tribunal Federal já assentou, pacificamente, abranger todas as modalidades de infrações penais, estendendo-se aos delitos eleitorais, alcançando até mesmo os crimes contra a vida e as próprias contravenções penais. É a mesma posição pacificamente adotada pelo Tribunal Superior Eleitoral, em relação ao cometimento de crimes eleitorais pelos parlamentares. (MORAES, 2017, p. 338).

Deve-se consignar, tal prerrogativa não retirava e não retira do Juiz singular a competência para o processamento e julgamento das infrações cíveis supostamente praticadas pelos congressistas, inclusive, as de improbidade administrativa, as ações populares e as ações civis públicas, coforme Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino frisaram: 

Entretanto, a prerrogativa de foro não alcança as ações de natureza cível ajuizadas contra congressistas. Isso porque, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a competência do foro especial restringe-se às ações idle natureza penal, não abrangendo o julgamento de quaisquer ações civis. Significa dizer que não cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, as causas de natureza civil - ações de improbidade administrativa, ações populares, ações civis públicas, ações cautelares, ações ordinárias, ações declaratórias e medidas cautelares -, […]. (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 473). 

 

3. Argumentos pela manutenção da prerrogativa dos parlamentares federais

O argumento mais consistente utilizado na defesa do foro especial por prerrogativa de função para os congressistas é que o instituto não protegeria a pessoa do parlamentar e sim a função pública exercida. Corroborando o pensamento: 

Com efeito, por considerar que a prerrogativa de foro tem o escopo de garantir o livre exercício da função do agente político, entende o Supremo Tribunal Federal que a atividade de supervisão judicial do foro especial deve ser desempenhada durante toda a tramitação das investigações, ou seja, desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento de denúncia pelo Ministério Público. Assim, a autoridade policial não pode sequer indiciar o agente político sem autorização prévia do foro especial (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 473).

Por essa razão, apresenta-se reflexão no sentido de que não se deve considera-lo um privilégio, sendo impróprio o argumento de que tal instituto fere o princípio da igualdade em detrimento dos demais cidadãos, sendo uma garantia do parlamentar em razão da busca pelo pleno exercício do cargo. 

No que tante à suposta violação ao direito à igualdade, sob outro ponto de vista, importa conferir:

O dispositivo constitucional em apreço trata da prerrogativa de foro criminal para julgamento de parlamentar enquanto estiver no exercício da atividade pública (obedecendo-se à regra da atualidade do mandato), mas nem sempre foi assim. Em breves observações sobre o assunto, a Súmula no 394 do STF previu durante muitos anos a prorrogação de competência da Corte para julgamento criminal de ex-parlamentares, ferindo o princípio da igualdade. (BAHIA, 2017, p. 287).

Em outras palavras, de acordo com a citada corrente de pensamento defendora da manutenção da prerrogativa, seria correto afirmar a inequívoca intenção do constituinte originário no sentido de proteger o pleno exercício do mandato eletivo adquirido pelo parlamentar federal ao ser eleito pelo voto direto do povo, do qual, segundo nossa Carta Magna (parágrafo único do art. 1º) emana o Poder. 

O objetivo do instituto, logo, estaria atrelado à permissão de que o parlamentar exerça seu mandato de forma independente, em busca da realização do bem público comum, de modo que não sofra (ou que se possa diminuir sua probabilidade) reprimendas por parte daqueles “insatisfeitos” para com suas opiniões e votos, e, por tal razão, seja alvo de eventuais perseguições. 

Desse ponto de vista, idealizou-se que o julgamento por parte do Guardião da Constituição, composto por Ministros dotados de notório saber jurídico, resguardaria o parlamentar federal no sentido de ser julgado sob o norte de fortes influências externas, por possuírem maior imparcialidade e independência. 

Acerca da ideia, ponderou o ex Ministro do STF Victor Nunes Leal, quando do julgamento da Reclamação 473, da qual foi relator:

A jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é realmente, instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja a eventual influência do próprio acusado, seja ás influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado. (Recl. 473, rel. Min. Victor Nunes, j. 31/01/1962, DJ 6/6/1962). (BRASIL, 1962, p. s/p).

Outro ponto a ser sublinhado se refere ao entendimento de que a prerrogativa não pertenceria à pessoa do parlamentar, e sim, ao cargo público a ser exercido pelo mesmo. Aprecie-se, nesse diapasão, os dizeres do Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes, em obra conjunta com Paulo Gustavo Gonet Branco:

A imunidade não é concebida para gerar um privilégio ao indivíduo que por acaso esteja no desempenho de mandato popular; tem por escopo, sim, assegurar o livre desempenho do mandato e prevenir ameaças ao funcionamento normal do Legislativo. (MENDES; BRANCO, 2017, p. 822).

A propósito, nesses termos, prevaleceria a regra da temporariedade para definição da competência penal, ou seja, o parlamentar só é processado e julgado perante o STF enquanto detentor de mandato eletivo.

Em relação à competência penal originária do Supremo Tribunal Federal, em virtude de foros privilegiados em razão da dignidade da função, tratando-se de infração penal comum das autoridades, na vigência do mandato ou do cargo, seja ou não relacionado com o exercício das funções, enquanto durar o mandato ou o cargo, a competência será do Supremo Tribunal Federal. (MORAES, 2017, p. 395).

O Supremo Tribunal Federal havia realizado, inclusive, nesse ponto, a revogação da súmula 394, a qual firmava entendimento daquela Corte no sentido de que se o crime fosse praticado durante o exercício funcional, a competência especial por prerrogativa de função prevaleceria, ainda que o inquérito ou a ação penal se iniciasse após a cessão do exercício da função pública. Em seu voto, o então Ministro relator Sydney Sanches assim justificou a anulação:

Penso que, a esta altura, se deva chegar a uma solução oposta a ela, ao menos como um primeiro passo da Corte para se aliviar das competências não expressas na Constituição, mas que ela própria se atribuiu, ao interpretá-la ampliativamente e, ás vezes, até, generosamente, sem paralelo no Direito Comparado. Se não se chegar a esse entendimento, dia virá em que o Tribunal não terá condições de cuidar das competências explícitas, com o mínimo de eficiência, de eficácia e de celeridade, que se deve exigir das decisões de uma suprema Corte. Os riscos, para a Nação, disso decorrentes, não podem ser subestimados e, a meu ver, hão de ser elevados em grande conta, no presente julgamento. [Inq.nº 687-4/SP (DJU de 9-11-2001)]. (BRASIL, 2001, p. s/p).

Cumpre pontuar, caso o parlamentar renunciasse ao mandato com o propósito de “fugir” ao julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, sua competência seria mantida. Entendia-se haver, na hipótese, um abuso de direito: 

É importante destacar que a regra da atualidade do mandato é excepcionada em caso de abuso de direito, como por exemplo: se o parlamentar renunciar às vésperas do julgamento, com o objetivo claro de procrastinar a decisão final, o STF já decidiu que a sua competência prorrogar-se-á e que a Corte julgará o ex-membro do Parlamento. (BAHIA, 2017, p. 287).

Conforme se infere, tal prerrogativa pertence ao mandato parlamentar federal e não à pessoa que o exerce. Assim, afirma-se que o termo foro privilegiado, normalmente utilizado para denominar a prerrogativa de foro em razão da função não estaria correto, pois o instituto não seria um privilégio da pessoa que exerce o mandato legislativo, visando, unicamente, assegurar o livre exercício da função com a segurança de seu titular não ser processado e julgado por um único julgador, o qual poderia ser, em tese, mais facilmente, influenciado por forças políticas. Doutra maneira, a prerrogativa de foro prestar-se-ia a assegurar àquele, um julgamento por órgão colegiado, composto por ministros experientes e com notório saber jurídico, os quais, provavelmente, julgarão com maior imparcialidade, estando menos suscetíveis a sofrer influências de forças exteriores quando da tomada de decisão. 

 

4. Argumentos pela abolição da prerrogativa de foro dos parlamentares federais

Como argumentos contrários à prerrogativa, podem-se citar a existência das imunidades material e formal também concedidas aos parlamentares federais pela Constituição Federal de 1988 (art. 53, §§ 2º, 3º, 4º e 5º), dentre outras, que já os blindam contra denúncias temerárias, prisões arbitrárias, e oportunizam à respectiva casa a suspensão do processo penal; o aparente conflito de normas constitucionais o qual ocorre quando a Carta da República, como regra geral, define ser da competência do tribunal do júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII, d), e, posteriormente, em regra específica, concede prerrogativa de foro, pertante o STF, para os parlamentares federais quando do cometimento dos referidos crimes (art. 53, 1º); a morosidade do Supremo Tribunal Federal quando da resolução dos casos a ele destinados, devido à falta de estrutura para a realização da persecução penal; e a consequente sensação de impunidade decorrente dos argumentos anteriormente citados. Passemos à exploração desses aspectos.

De acordo com o caput do art. 53 da Constituição Federal de 1988 “Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos” (BRASIL, 2015: 36). Ou seja, o constituinte originário protegeu os parlamentares federais contra todas e quaisquer ações penais e cíveis que possam surgir devido às manifestações dos mesmos durante o exercício do cargo. 

Tem-se, de tal modo, permissão para que o parlamentar se expresse plenamente nas deliberações de interesse público em que participe em razão do exercício de seu mandato, retirando sua responsabilidade penal, civil, disciplinar ou política. 

Sendo assim, veda-se que um parlamentar responda por um crime de opinião caso haja no estrito cumprimento da função parlamentar, pois a imunidade material excluiu o crime, tendo o mesmo total irresponsabilidade por suas palavras, opiniões e votos, termos em que:

Independente da posição adotada, em relação á natureza jurídica da imunidade, importa ressaltar que da conduta do parlamentar (opiniões, palavras e votos) não resultará responsabilidade criminal, qualquer responsabilização por perdas e danos, nenhuma sanção disciplinar, ficando a atividade do congressista, inclusive, resguarda da responsabilidade política, pois, trata-se de cláusula de irresponsabilidade geral de Direito Constitucional material; podendo, inclusive, ser reconhecida de oficio pelo poder judiciário. (MORAES, 2017, p. 331).

A imunidade formal quanto à prisão permite apenas a prisão em flagrante de crime inafiançável, contudo, condicionada à apreciação dos autos da prisão pela casa do parlamentar, que decidirá sobre a manutenção ou não de sua prisão, nos termos do § 2º do art. 53 da Carta da República. 

No que tange ao prosseguimento ou não da ação penal, a Carta Magna prevê, nos §§ 3º, 4º e 5º do art. 53 que quando recebida a denúncia contra um parlamentar federal pelo suposto cometimento de crime após sua diplomação, a casa respectiva deverá ser cientificada do feito, tendo, até a decisão final (trânsito em julgado), por iniciativa de partido político com representação nesta à mesa diretora, no prazo de quarenta e cinco dias improrrogáveis, pela maioria dos votos de seus membros, a possibilidade de suspender o andamento do processo penal, que permanecerá suspenso enquanto durar o mandato eletivo do denunciado, suspendendo-se, também, a prescrição.

Além dessas imunidades, os congressistas são dispensados de testemunhar a respeito de pessoas que lhes confiaram informações em razão de seu cargo, conforme prevê o § 6º do art. 53 da Constituição brasileira de 1988. 

Para a incorporação às forças armadas, embora militares e mesmo em tempo de guerra, os mesmos necessitam de prévia licença da casa respectiva, como enuncia o § 7º do art. 53 da Constituição da República. 

É bem verdade, todas as imunidades prevalecem quando da decretação de estado de sítio, só podendo ser suspensas nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, pelo voto de dois terços dos membros da casa respectiva, e quanto aos atos praticados fora daquele (recinto) que sejam incompatíveis com a execução da medida, de acordo com o § 8º do art. 53 da Constituição Federal. 

Com tudo isso, perceba-se, o constituinte originário concedeu aos membros do Congresso Nacional várias garantias para que pudessem cumprir sua função pública de forma independente, espontânea e livre de pressões exteriores, sejam elas políticas, partidárias ou populares, podendo-se questionar a desnecessidade da manutenção da prerrogativa de foro.

Deve-se registrar ainda, fomenta-se não possuir o Supremo Tribunal Federal estrutura para a realização de uma persecução penal eficiente e célere. Igualmente, sua função principal é de Corte Constitucional, nos termos do caput do art. 102 da Carta Magna: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição” (BRASIL, 2015, p. 48). Inclusive, o Ministro Alexandre de Moraes, ao comentar referido dispositivo constitucional, proferiu as seguintes palavras:

A função precípua do Supremo Tribunal Federal é de Corte de Constitucionalidade, com a finalidade de realizar o controle concentrado de constitucionalidade no Direito Brasileiro, ou seja, somente ao Supremo Tribunal Federal compete processar e julgar as ações diretas de inconstitucionalidade, genéricas ou interventivas, as ações de inconstitucionalidade por omissão e as ações declaratórias de constitucionalidade, com o intuito de garantir a prevalência das normas constitucionais no ordenamento jurídico. (MORAES, 2017, p. 394). 

Por sua vez, o Ministro Luís Roberto Barroso, no corpo de seu voto na condição de relator da AP 937, nesse ponto, aludiu:

O atual modelo de foro por prerrogativa de função acarreta duas consequências graves e indesejáveis para a justiça e para o Supremo Tribunal Federal. A primeira delas é a de afastar o Tribunal do seu verdadeiro papel, que é o de suprema corte, e não o de tribunal criminal de primeiro grau. Como é de conhecimento amplo, o julgamento da Ação Penal 470 (conhecida como Mensalão) ocupou o STF por 69 sessões. Tribunais superiores, como o STF, foram concebidos para serem tribunais de teses jurídicas, e não para o julgamento de fatos e provas. Como regra, o juízo de primeiro grau tem melhores condições para conduzir a instrução processual, tanto por estar mais próximo dos fatos e das provas, quanto por ser mais bem aparelhado para processar tais demandas com a devida celeridade, conduzindo ordinariamente a realização de interrogatórios, depoimentos, produção de provas periciais, etc. (BARROSO, s/d, p. 7). 

Como difundido, com o congestionamento do Pretório excelso com inquéritos e ações penais envolvendo os detentores de prerrogativa de foro especial, sua função primária tem sido prejudicada, pois os julgamentos das ações de cunho estritamente constitucional têm ficado “paralisados” na Suprema Corte, pois aquelas (criminais) consomem tempo e energia dos relatores respectivos, devido ao grande esforço exigido, os quais não são juízes de primeiro grau e nem possuem uma estrutura adequada para conduzir uma persecução penal. 

Importa ressaltar, a citada falta de estrutura acarreta na morosidade no julgamento das ações penais envolvendo os detentores da prerrogativa de foro em razão da função. ocorrendo a impunidade dos investigados e processados, pois:

[...] Hoje, o prazo médio para recebimento de uma denúncia pela Corte é de 581 dias. Um juiz de 1º grau a recebe, como regra, em menos de uma semana. Além disso, calcula-se que a média de tempo transcorrido desde a autuação de ações penais no STF até o seu trânsito em julgado seja de 1.377 dias. No limite, processos chegam a tramitar por mais de 10 anos na Corte. A título ilustrativo, este foi o caso da AP 345, envolvendo acusação da prática dos crimes de quadrilha e falsificação ideológica contra o Deputado Fernando Giacobo, que, após 11 anos, encerrou-se com a prescrição da pretensão punitiva. E pior: mesmo após longa tramitação, o resultado mais comum em ações penais e inquéritos perante o STF é a frustração da prestação jurisdicional. Segundo o relatório da FGV, em 2 de cada 3 ações penais o mérito da acusação sequer chega a ser avaliado pelo Supremo, em razão do declínio de competência (63,6% das decisões) ou da prescrição (4,7% das decisões). Também no caso dos inquéritos, quase 40% das decisões do STF são de declínio de competência ou de prescrição. Como se vê, um dos maiores gargalos da prerrogativa de foro no STF são as frequentes modificações de competências. Ainda de acordo com o estudo da FGV, apenas 5,94% das ações penais que terminaram no Supremo resultam de inquéritos iniciados na Corte. Ou seja, na quase totalidade dos casos, ou os processos se iniciam em outra instância e, vindo o réu a ocupar cargo com foro perante o STF, a competência se desloca para esta Casa. Ou, na hipótese inversa, sendo o réu, por exemplo, parlamentar, não vindo a se reeleger ou vindo a se eleger a cargo sem foro no Supremo, a competência deixa de ser do STF e passa a ser de outra instância. (BARROSO, s/d: 8). 

Nesse quadrante, o Ministro Luis Roberto Barroso salienta, também, que “o foro por prerrogativa de função é causa freqüente de impunidade, porque é demorado e permite a manipulação da jurisdição do tribunal” (BARROSO, 2016: s/p). Em muitos casos, os parlamentares se utilizavam deste para “fugir” dos rigores da lei se utilizando de manobras políticas para retirarem seus processos da competência do Supremo Tribunal Federal e o remeterem à primeira instância às vésperas de seus julgamentos, ou, às vezes, unicamente, com o intuito de buscar a prescrição, realizando um “sobe e desce” de seus processos. 

Por derradeiro, não se pode deixar de abordar o aparente conflito de normas constitucionais sobre o julgamento de crimes contra a vida. Nesta linha de raciocínio, Paulo de Souza Queiroz assim desenvolveu: 

Há conflito aparente de normas de idêntica hierarquia, pois ambas provenientes da constituição: uma regra geral, que atribui a competência dos crimes dolosos contra a vida ao tribunal do júri; outra, específica, que concede foro privilegiado por prerrogativa de função a algumas autoridades. (QUEIROZ, 2006, p. 78).

 

5. Considerações finais

Ante ao estudo proposto, pudemos obter algumas conclusões.

Primeiramente, restou clara a intenção do constituinte originário no sentido de blindar os parlamentares federais de todas as pressões externas que pudessem existir com a finalidade de impedir o pleno exercício do mandato eletivo. 

Quando da promulgação de nossa Carta Magna contemporânea, pode-se afirmar, devido ao contexto histórico (pós-ditadura), se faziam necessárias as imunidades aqui estudadas, bem como a prerrogativa de foro. 

Importa considerar, o país acabara de “superar” uma ditadura, donde o parlamento teve suas funções usurpadas. Sendo assim, em nome da experiência histórica e da prudência, a atividade legislativa deveria ser protegida, para que pudesse ser exercidade maneira satisfatória e sem represálias. 

Contudo, é preciso pensar em que medida o sistema democrático, normativamente dizendo, já tenha se consolidado em nossa república, não se devendo admitir a distinção entre indivíduos, ponto em que a prerrogativa de foro dos parlamentares federais pode ser inserida.

Como analisado neste texto, a prerrogativa de foro foi utilizada, por vezes, por certos parlamentares, como uma manobra para “fugir” dos rigores da lei. A título de exemplo, renunciavam ao cargo e se elegegiam para outro cargo no intuito de deslocar a competência para julgamento de seus processos e, assim, “ganharem tempo”, levando-os à prescrição, ocasionando à sociedade, uma sensação de impunidade dessa coletividade, e, a impressão de que o Poder Judiciário só “funciona” para os menos favorecidos, ou seja, a grande massa. 

Ao que tudo indica, por mais que o Supremo Tribunal Federal tenha enfrentado a questão promovendo um restrição ao instituto relativamente aos parlamentares federais, para solucionar esta questão, se faz necessária, talvez, uma mudança em nossa legislação no sentido de abolir tal prerrogativa. 

É preciso refletir em que medida os parlamentares já gozam de imunidades que permitem um pleno exercício do mandato, de modo que a extinção da prerrogativa de foro poderá não oferecer, por todas as razões aqui apresentadas, prejuízos para o exercício do mandato.

Com este objetivo, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda a Constituição de nº 10 de 2013, já aprovada em dois turnos no Senado Federal e que, agora, encontra-se na Câmara dos Deputados aguardando sua colocação em pauta de votação.

Ao mesmo tempo, o cenário corruptivo aqui instalado também nos preocupa levando-se em consideração as pressões a serem suportadas por Juízes de primeiro grau de jurisdição no sentido de julgar deputados e senadores federais. 

Enfim, aguardemos, façamos nossas partes e torçamos para o melhor desfecho!

 

Referências

BAHIA, Flávia. Direito Constitucional – Coleção descomplicado. 3. ed. Recife: Amador, 2017. 

BARROSO. Luiz Roberto. Foro privilegiado deve acabar ou ser limitado aos chefes dos poderes. Consultor Jurídico. 23 de maio de 2016. Disponível em . Acesso em 05/11/2017.

________. Questão de ordem na ação penal 937 – Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em 05/11/2017.

BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Vade Mecum. 10 ed. São Paulo: Rideel, 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 70.620. Relator Ministro Celso de Mello. 24/11/2006. Disponível em . Acesso em 13/11/2017.

________. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 473. Relator Ministro Victor Nunes. 31/01/1962. Disponível em . Acesso em 05/11/2017.

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Data da conclusão/última revisão: 13/6/2018

 

 

 

Hugo Garcez Duarte e Eliziana Hubner Soares

Hugo Garcez Duarte: Mestre em Direito e Professor da FADILESTE;

Eliziana Hubner Soares:  Bacharel em Direito pela FADILESTE.