A Teoria da Proteção Integral à criança e ao adolescente segundo o conceito material e histórico de desenvolvimento humano

Resumo

 

O presente estudo parte da importância que se dá à criança e ao adolescente, compreendidos como seres em estágio de vida cuja característica principal é a sua fase de desenvolvimento. Assim, partindo de uma pesquisa bibliográfica, adotou-se como linha mestra a análise da teoria da proteção integral e sua relação com o conceito material e histórico de desenvolvimento humano, cujo escopo é demonstrar que a infância e a forma como as relações sociais acontecem nessa fase terão forte relevância na formação do ser ao longo de toda a sua vida. Demonstrado isso, resta em evidência que a adoção de políticas públicas proporcionadoras de sistema de garantias de direitos à criança e do adolescente será forte condicionante de uma vivência humana saudável e comprometida com o entorno.

Palavras-chaves: Criança e adolescente; materialismo histórico; teoria da proteção integral; cidadania; políticas públicas.

1 Introdução

É essencial que se demonstre a visão de ser humano e de sociedade que permeia o espírito pesquisador que pretende realizar este trabalho. Percebe-se o ser humano como sendo humano devido a sua faculdade de autodeterminação, isto é, de agir de acordo com a sua própria vontade. Ser esse cujo cada estágio de vida dependerá de sua experiência material e histórica. Nesse mesmo viés, vê-se a sociedade como resultado de um caminho processual, material e também histórico dos seres que nela (sobre) vivem, onde tudo (re) estrutura-se dialeticamente, numa evolução que se corrigi a si própria. Assim dizendo, se a visão que se tem de ser humano e de sociedade é essa, torna-se clara a motivação que move uma pesquisa que pretende conferir ainda mais importância a teoria da proteção integral, considerando o conceito material e histórico de desenvolvimento humano.

Para tanto, será discorrido acerca de materialismo histórico, bem como sobre a proteção integral, conferindo às análises um viés cidadão que tem como objetivo primeiro o reconhecimento e a efetivação dos direitos humanos, demanda urgente da sociedade.

2 Concepção material histórica de desenvolvimento humano e suas implicações

Como se denota até aqui, este estudo tem o escopo de demonstrar a importância da teoria da proteção integral frente à concepção material histórica de desenvolvimento humano. Para tanto, será demonstrado primeiramente os traços mais importantes de tal concepção de desenvolvimento do ser, à luz de seus teóricos mais relevantes: Karl Marx e Friedrich Engels.

De plano, os dois estudiosos acima refutam, após minuciosa análise, a idéia hegeliana de que a evolução humana centra-se em sua razão, esta que passa a determinar a sua existência real. Enquanto Hegel compreendia o homem como sendo dotado de uma consciência independente de condições materiais, Marx afirmava o contrário. Para este, a relação do ser com o ambiente externo a si era imprescindível para a sua objetivação e a forma como poderia se dar o seu desenvolvimento.

O raciocínio acima pode ser evidenciado por meio do seguinte excerto:

Ao contrário do que sucede na filosofia alemã, que desce do céu para terra, aqui se ascende da terra ao céu. (...) Não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, nem do que são nas palavras, no pensamento, imaginação ou representação dos outros para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se, sim, dos homens em sua atividade real, e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo vital (...).(Friedrich, Marx, 2005 apud Scussel, 2007, p. 22) (grifo nosso)

Como se vê acima, o processo material de vida expõe o ser a reflexos ideológicos e a conseqüências decorrentes desse processo. Consoante a mesma teoria, isso ocorre ao longo da história de vida.

Muito relevante para o presente ensaio é a interpretação dada por Scussel (2007, p.22) ao fragmento acima exposto:

Portanto, para Marx e Engels, o primeiro pressuposto de toda a história é que os homens, para poderem “fazer história”, devem estar em condições de viver. Para tanto é preciso, antes de mais nada, produzir os meios que permitam satisfazer suas necessidades básicas de vida (comer, beber, ter moradia, etc.). Isto seria a produção da própria vida material (...). (grifo nosso)

Isto é, para que o homem possa desenvolver a sua história individual, com os seus interesses privados, segundo os padrões da sua própria consciência, é necessário que tenha meios materiais para a formação de sua consciência. E são esses meios que serão produzidos ao longo da história de vida do ser humano, em seu contato real com o ambiente externo a si.

Não se pode olvidar que a teoria marxista desenvolveu-se muito mais na esfera econômica e tomou por objeto aspectos sociais. Contudo, para chegar a esses aspectos sociais foi essencial que ele teorizasse em um plano micro, ou seja, do ser individual, como pode se ver acima, onde é esboçado o raciocínio do autor acerca do desenvolvimento humano.

Num plano mais coletivo, Marx assim desenvolveu o conceito de materialismo histórico:

(...) na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a esfera econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. (grifo nosso) (Marx, 1977 apud Scussel, 2007, p. 34)

Na linha de pensamento acima, observa-se que a forma como uma sociedade se organiza economicamente – principalmente a maneira como se dão as relações trabalhistas e a forma como se divide o capital ou a renda oriunda deste – condiciona a estrutura política, social, cultural e intelectual de um povo.

De todo o exposto até aqui, denota-se, segundo Harnecker (1973, p.27), que “para o marxismo, a compreensão última dos processos históricos deve ser buscada na forma pela qual os homens produzem os meios materiais”.

Até o presente momento, obteve-se a essência do materialismo histórico segundo os seus teorizadores principais. De posse disso, parte-se, então, para uma análise do conceito de desenvolvimento material histórico aplicado mais concretamente ao ser humano, conglomerando também questões sociais, de modo a demonstrar que uma evolução social e cidadã do ser, num Estado Democrático de Direito onde a autonomia de cada um é necessária, e também imprescinde das condições materiais de vida desse mesmo ser.

Enquanto os tradicionais teóricos do materialismo histórico ativeram-se muito mais a questões econômicas e aplicaram tal conceito para explicar a forma como a sociedade se desenvolve, num outro vértice temos os russos Vigotski e Luria que contribuíram generosamente para aplicação do conceito materialismo histórico ao processo de desenvolvimento humano. Em seus estudos, uniram também a biologia e a psicologia.

Em suma, a idéia desses renomados autores é a de que o ser humano não é somente resultado de seus complexos biológicos, juntando-se a esse fator o aspecto social do ser. Assim, as relações sociais e materiais de vida são essenciais à formação humana que se dará numa perspectiva histórica.

Abaixo, importante asseveração de Vigotiski (1989, p.54).

O uso de signos conduz os seres humanos a uma estrutura específica de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura.

Do fragmento superior, extrai-se que a cultura origina processos psicológicos no ser humano e isso se dá por meio da linguagem – signos. Considerando que o ambiente cultural é também um espaço real e material onde os seres humanos se relacionam ao longo de sua história de vida, temos então a relevância do ambiente na formação humana. Mais que isso, a importância das relações feitas nesse ambiente, pois se sabe que a cultura não é objeto de um ser somente.

Valioso argumento pode ser encontrado nas explicações que Luria (1992, p.48/49) traçou sobre o trabalho vigotiskiano.

Influenciado por Marx, Vygotsky concluiu que as origens das formas superiores do comportamento consciente estavam nas relações sociais do indivíduo com o meio externo. (...) Vygotsky gostava de chamar essa abordagem de psicologia “cultural”, “instrumental” ou “histórica”. (...) O aspecto “cultural” da teoria de Vygotsky tinha a ver com os modos socialmente estruturados pelos quais a sociedade organiza as tarefas que são propostas à criança, e com as ferramentas, físicas e mentais, que são oferecidas à criança para que domine essas tarefas. (...) O elemento “histórico” fundia-se ao cultural. As ferramentas usadas pelo homem para dominar seu meio ambiente e seu próprio comportamento não surgiram, completamente prontas, da mente de Deus. Foram inventadas e aperfeiçoadas no curso da história social do homem. (grifo nosso)

O excerto acima dispensaria demais explicações – haja vista sua clareza para mostrar a importância do aspecto social na formação histórica do ser – não fosse a ênfase dada ao desenvolvimento da criança, pois o autor analisado por Luria já sabia que o desenvolvimento do ser se dá potencialmente nessa fase. A infância é essencialmente a fase de desenvolvimento psicológico do ser humano.

Nesse passo, complexa análise de Luria (1992, p.49).

Os três aspectos da teoria são aplicáveis ao desenvolvimento de crianças. Desde o momento do nascimento, as crianças estão em constante interação com adultos, que ativamente procuram incorporá-las à sua cultura e a seu corpus de significados e condutas, historicamente acumulados. No princípio, as respostas da criança ao mundo são dominadas por processos naturais, ou seja, aqueles proporcionados por sua herança biológica. Mas, através da intervenção constante dos adultos, processos psicológicos mais complexos e instrumentais começam a tomar forma. De início, esses processos só se dão no transcorrer das interações entre a criança e os adultos. Como disse Vygotsky, os processos são interpsíquicos; isto é, são compartilhados entre indivíduos. Neste estágio, os adultos são agentes externos que medeiam o contato da criança com o mundo. No decorrer do crescimento da criança, os processos que antes eram compartilhados com os adultos passam a se dar no interior da própria criança. Isto é, a resposta mediada ao mundo se transforma num processo intrapsíquico. A natureza social do indivíduo se imprime em sua natureza psicológica através desta interiorização dos modos historicamente determinados e culturalmente organizados de operar com informações.

Primeiro, a referência que se faz, no excerto acima, aos três aspectos da teoria, refere-se aos aspectos instrumental, cultural e histórico. Importa ao presente estudo os dois últimos e os mesmos foram abordados na primeira citação de Luria neste trabalho. Agora, importante constatação: no fragmento, percebe-se que a criança, em seus estágios de desenvolvimento inicial, encontra-se numa relação de passividade para com o mundo externo e que quando passa a agir também ativamente, o faz tendo como bagagem psicológica as vivências já experimentadas. Nesse viés, mais uma vez se vê a importância das relações sociais para a formação humana. Ainda mais, tem-se que a importância dessas relações é substancialmente maior durante a infância, tendo em vista ser essa fase essencialmente propícia ao desenvolvimento. Relevante também é considerar que segundo a concepção material histórica adotada pelos autores aqui comentados, as vivências dos infantes e a forma como se travou o seu desenvolvimento servirão de base para os seus outros estágios de desenvolvimento ao longo da vida. De forma vulgar, o passado não se apaga e informará novas experiências.

A iniciativa desses autores de utilizar enfaticamente, no campo do desenvolvimento humano, o conceito de materialismo histórico, que antes fora desenvolvido por Marx e Engels muito mais num plano social, ensejou uma mudança paradigmática na compreensão do ser e na importância dada às relações com o meio externo. Isso ocorre, no entender deste estudo, pois considerar as relações sociais como essenciais na formação humana, significa dizer que o espaço onde as culturas humanas são desenvolvidas se demonstra relevante para condicionar a forma como se dará tal desenvolvimento. Implica perceber, também, que as características da pessoa e a forma como se encontra sua vida material não são resultados apenas da sua vontade, incluindo-se também o fator externo como condicionante dessas características.

Assim, para Silveira (2002, p.58) “O ser humano constitui-se na relação com o outro ser humano, na vida em sociedade. A busca da solução dos problemas e de novas alternativas é questão social”

Na citação acima, percebe-se a autora traduzir uma implicação elementar do conceito de materialismo histórico aplicado ao estudo do desenvolvimento do ser. Demonstra que os problemas devem ser enfrentados e resolvidos por uma ótica social, ultrapassando o microcosmo.

Analisando o entendimento acerca da historicidade pertencente ao conceito de materialismo histórico, Silveira (2002, p. 65/66) refere:

Nada é eterno. As mudanças ocorrem através dos tempos. Essas transformações são provocadas pelos seres humanos, que intervêm de forma ativa e autônoma. É o organismo humano vivo, ativo, como ser pensante e transformador que é, debruçando-se sobre o mundo e transformando-o. É um processo pessoal e social, contrário à heteronomia.

Do fragmento acima, é importante tecer duas considerações. A primeira delas diz respeito à contrariedade à heteronomia. Por essa expressão traduz-se um relevante apontamento: quando se destaca a importância do espaço externo e das relações sociais travadas nesse espaço, em hipótese alguma se está a desconsiderar a autonomia do ser, pois os fatos ocorridos do espaço cultural sempre perpassarão pelo crivo cognitivo individual do ser e sobre tal fato o ser se posicionará autonomamente no seio social. Quanto à segunda consideração, esta está para a conotação cidadã trazida na fala da autora. Antes de analisar o conceito de cidadania da autora, essencial demonstrar outro excerto de sua obra. Silveira:

Imaginar, pensar, refletir os atos humanos, seus projetos e a sociedade, tudo isso faz parte da ação histórica. Os animais não têm essa característica. Participar ativamente (pensamento, fala e ação) desse processo de construção é vivenciar a cidadania. Sim, porque as transformações podem ser resultado de um pensar consciente e da busca ativa para a construção de uma sociedade com justiça social ou do abandono à crença do fatalismo, fisiologismo. (2002, 66)

Vê-se no discurso acima um conceito de cidadania que se consubstancia no conceito de materialismo histórico. Considerada a importância do meio onde acontecem as relações sociais, essencial se faz uma postura cidadã por parte das pessoas; e uma ação cidadã, ou seja, aquela capaz de com o pensamento e o movimento construir a justiça social, somente pode se concretizar em ambiente comum, nos círculos sociais.

É indispensável dizer que para a autora, o conceito de cidadania vai além do seu aspecto formal, pois votar não é a única forma de exercer a tarefa na cidade.

Analisando o conceito de cidadania, pode-se traçar a sua importância para o Estado Democrático de Direito brasileiro. Nada mais é do que princípio fundamental, consoante o art. 1º, II, da CF/88. Salienta-se que tal dispositivo encontra-se no Título I da Constituição Federal, que versa sobre os princípios fundamentais do Estado.

Para corroborar o entendimento de que o conceito de cidadania não se restringe aos direitos políticos, transcreve-se as palavras de Silva (2007, p.104) “A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (...)”. (grifo do autor)

Alongou-se a fala sobre cidadania, haja vista a sua ligação direta com o conceito de materialismo histórico, esse que informa diretamente a compreensão de desenvolvimento humano aqui demonstrada. Diferente não poderia ser, pois a cidadania se pratica no espaço onde as relações sociais e materiais acontecem.

Assim, deve-se propiciar àqueles em estágio de essencial desenvolvimento uma experiência pautada pelas oportunidades, onde as relações com o outro sirvam de base para uma formação autônoma e motivada para a cidadania. Imprescindível constatar que esse tipo de experiência só pode ocorrer quando as bases essencialmente materiais de vida permitirem.

Desse contexto, insurge a seguinte reflexão: quem, por meio de uma atuação cidadã, dever propiciar uma vivência também cidadã às crianças e adolescentes, que são motivos maiores da realização deste escrito? A leitura do capítulo subseqüente responderá a essa questão.

3 A teoria da proteção integral e sua relação com o conceito material e histórico de desenvolvimento humano

Como se pode perceber até então, este trabalho defende que o desenvolvimento do ser ocorre material e historicamente. É partindo disso, portanto, que se vai demonstrar a importância da teoria da proteção integral na esfera dos direitos da criança e do adolescente. Quando considerada a forma de desenvolvimento humano aqui aventada, sabe-se que o futuro será condicionado (e não determinado), pelas experiências e relações sociais travadas num tempo passado. Assim, proteger integralmente a infância, com todos os pressupostos que essa proteção exige, faz-se de extrema relevância.

Antes de adentrar intrinsecamente no conceito da teoria aqui abordado, salienta-se que há quem a chame de doutrina da proteção integral, bem como quem a denomine por teoria da proteção integral. Opta-se, neste estudo, tratá-la pela segunda maneira, pois se entende que o termo doutrina relaciona-se muito mais com algo que se sustenta pela força com que é imposto do que pela legitimidade, coerência e consistência de seus próprios fundamentos, o que ocorre com a palavra teoria. Nesse viés, lança-se importante afirmação:

A teoria da proteção integral estabeleceu-se como necessário pressuposto para a compreensão do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil contemporâneo. As transformações estruturais no universo político consolidadas no encerrar do século XX contrapuseram duas doutrinas de traço forte, denominadas da situação irregular e da proteção integral. Foi a partir desse momento que a teoria da proteção integral tornou-se referencial

paradigmático para a formação de um substrato teórico constitutivo do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil. (Custódio, 2009, p.22)

No excerto acima, denota-se que o atual paradigma da teoria da proteção integral perpassou por uma dialogicidade histórica que a permitiu afirmar-se como referencial norteador dos direitos da criança e do adolescente. Esse fato consubstancia a opção pela designação teoria, uma vez que sua consistência está calcada em uma construção dialógica e histórica desse princípio. Para confirmar essa análise:

Há possibilidades concretas para se demonstrar que as forças que constituíram a Teoria da Proteção Integral resultaram em grande parte da contraposição da doutrina da situação irregular e da doutrina da proteção integral produzindo algo diferente, com magnitude capaz de consolidar elementos com capacidade suficiente para afirmar o Direito da Criança e do

Adolescente como um campo jurídico aberto de possibilidades, mas seguro quanto às suas diretrizes, princípios, regras e valores. (Custódio, 2009, p.29)

Partindo para os aspectos essenciais da teoria aqui estudada, não se pode deixar de mencionar o seu caráter estruturante e norteador, que vai informar toda a criação, aplicação e interpretação dos direitos da criança e do adolescente. Nesse passo:

A Teoria da Proteção Integral desempenha papel estruturante no sistema, na medida em que o reconhece sob a ótica da integralidade, ou seja, o reconhecimento de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, e ainda direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, que se articulam, produzem e se reproduzem de forma recíproca. (Custódio, 2009, p.114)

Outro ponto essencial a se mencionar acerca de tal princípio norteador está para o fato de que contraria a generalidade das ciências, inclusive do direito. Enquanto a evolução das ciências e culturas humanas tendem a ser cumulativas, de modo que novas concepções somam-se aos conceitos anteriores, no caso da teoria da proteção integral ocorre o inverso, pois ela rompe radicalmente com todas as formas de se pensar o direito da pessoa em peculiar estágio de desenvolvimento. A teoria da proteção integral é diametralmente oposta à doutrina da situação irregular e à cultura menorista. Nessa linha:

De todo modo, a constituição do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil alcançou uma capacidade de afirmação teórica incontestável, desestruturando todas as demais concepções, que historicamente legitimavam seu anverso, ou seja, o Direito do Menor. Uma aproximação da estrutura 22 interna desses sistemas diversos pode dar melhores pistas sobre estas mudanças, mas de todas elas sem dúvida ficam evidenciadas as radicais transformações no campo dos princípios, regras e conceitos inerentes às duas doutrinas.

É preciso advertir que a afirmação do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil não decorre de um modo de acumulação epistemológica, mas antes de tudo, representa ruptura radical com a própria compreensão histórica relativa ao tema. Surge com força capaz de varrer todos os pressupostos teóricos da doutrina da situação irregular, primeiro contestando sua própria validade científica, e depois formulando um conjunto de conceitos operacionais, regras, sistemas integrados e articulados em rede que tornaram absolutamente incompatível a congruência de um modelo com o outro. (Custódio, 2009, p.22/23)

Diacronicamente falando, o atual estágio em que se encontra a teoria da proteção integral e toda a ruptura que fez com os paradigmas anteriores é forte, pois foi construído nos espaços sociais e com uma dialogicidade cidadã própria de uma época peculiar da história de nosso país. Fala-se da transição do autoritarismo militar para a democracia socialmente construída. Isso fortalece o conceito de materialismo histórico torna-se ainda mais forte, pois vê-se que a teoria da proteção integral foi construída ao longo da história social e consistentemente enraizada nas relações sociais. Aqui, o materialismo histórico ocorreu num plano macro, ou seja, o social. Já este estudo enfatiza tal conceito aplicado ao desenvolvimento do ser humano.

Sobre isso, abaixo se encontra trecho elucidativo:

Na década de 1980, surge um ambiente que almejava a democratização, onde os movimentos sociais assumiam o papel de protagonistas na produção de alternativas ao modelo imposto. O imperativo discursivo produzido pelo Estado autoritário recebia a contribuição crítica do espaço público e, portanto, político de reflexão sobre as práticas históricas instituídas sobre a infância. [...]

Esse processo de transição contou com a colaboração indispensável dos movimentos sociais em defesa dos direitos da infância, que juntamente à reflexão produzida em diversos campos do conhecimento, inclusive àqueles

considerados jurídicos, proporcionou a cristalização do Direito da Criança e do Adolescente com uma perspectiva diferenciada anunciando reflexos radicalmente transformadores na realidade concreta. Por isso, a teoria da proteção integral deixa de se constituir apenas como obra de juristas especializados ou como uma declaração de princípios propostos pela Organização das Nações Unidas uma vez que incorporou na sua essência a rica contribuição da sociedade civil brasileira. (Custódio, 2009, p.26/27)

Passa-se a discorrer sobre os elementos que constituem a presente teoria.

Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 05 de outubro de 1998, foi instituído o Direito da Criança e do Adolescente a partir da previsão do art. 227, que determina:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O dispositivo citado é a perfeita síntese da teoria da proteção integral que foi adotada pelas Organização das Nações Unidas com a edição da Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1990. A partir daí, reconheceu-se que os direitos fundamentais da criança e do adolescente detêm o status de prioridade absoluta e responsáveis perfeitamente identificáveis para sua plena efetivação.

A teoria da proteção integral firma-se em três eixos centrais. Primariamente, concebe-se a infância e a adolescência como prioridade imediata e absoluta, isto é, a proteção da mesma sobrepõe-se a qualquer outra medida. Em seguida, a referida teoria assevera que o princípio do melhor interesse da infância deve prevalecer na tomada de decisões e execuções de ações relativas a tal estágio de desenvolvimento do ser. Por último, ultrapassando a idéia de que a família seria a maior responsável pela execução dos direitos da criança e do adolescente, a nova doutrina convoca a comunidade e o Estado para vir compartilhar a responsabilidade por tais direitos com a família. (Veronese, 2006, p.10/11)

Quando a legislação pátria recepcionou a Doutrina da proteção Integral fez uma opção que implicaria num projeto político-social para o país, pois ao contemplar a criança e o adolescente como sujeitos que possuem características próprias ante o processo de desenvolvimento em que se encontram, obrigou as políticas públicas voltadas para esta área uma ação conjunta com a família, com a sociedade e o Estado. (Veronese, 2006, p.09/10)

Acrescenta-se a essas características mencionadas o caráter universal da teoria, consistente no fato de que a efetivação dos da criança e do adolescente deve acontecer para todos esses. Assim:

O reconhecimento dos direitos fundamentais à criança e ao adolescente trouxe consigo o princípio da universalização, segundo o qual os direitos do

catálogo são susceptíveis de reivindicação e efetivação para todas as crianças e adolescentes. No entanto, a universalização dos direitos sociais como àqueles que dependem de uma prestação positiva por parte do Estado, também exige uma postura pró-ativa dos beneficiários nos processos de reivindicação e construção de políticas públicas. É nesse sentido que o Direito da Criança e do Adolescente encontra seu caráter jurídico-garantista, segundo o qual a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar a efetivação dos direitos fundamentais, ou seja, transformá-los em realidade. (Custódio, 2009, p. 32-33)

As questões teóricas acerca da teoria da proteção integral até então abordadas ensejam, por seus próprios pressupostos, um modo de instrumentalizar na prática as suas finalidades. O direito da criança e do adolescente encontra no sistema de garantias e na rede de atendimento esse instrumental operacional.

Passa-se a discorrer sobre esses instrumentais.

Com a aprovação da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, houve o disciplinamento dos direitos fundamentais declarados e avanços significativos, pois a legislação previu um sistema de garantias de direitos com a responsabilidade de implantar um conjunto de políticas públicas de atendimento, proteção, promoção e justiça. Estas responsabilidades são compartilhadas através da distribuição de responsabilidades entre os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Tutelar, Ministério Público, Poder Judiciário e uma rede de atendimento constituída por organizações não-governamentais e programas governamentais.

A idéia de sistema de garantias se vincula às instâncias públicas – Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública (Advocacia), Polícia Civil, Polícia Militar, Equipe Interprofissional, entre outras instituições – estabelecidas no interior do Sistema de Justiça Infanto-Juvenil, que, assim, é organizado estrutural e funcionalmente através das Leis de Regência – isto é, a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente. (Ramidoff, 2008, p. 44)

Já a rede de atendimento define-se como

[...] o conjunto articulado de ações integradas entre e nas quatro dimensões de governo – Municipal, Estadual, Distrital e Federal -, bem como entre e nas esferas de poder – Executivo, Judiciário e Legislativo – que se destinem à prevenção de ameaças e violências contra os interesses, direitos e garantias afetos à criança e ao adolescente. (Ramidoff, 2008, p. 37)

A atuação integrada entre o sistema de garantias de direitos e a rede de atendimento requer a intersetorialidade e o compartilhamento de responsabilidades objetivas mediante a articulação das atribuições dos diversos órgãos.

Os sistemas de garantias estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente muito mais do que harmonia, certamente, guardam entre si implicações funcionais (atribuições, competências e responsabilidades) de necessariedade mútua e recíproca, vale dizer, apenas se pode devidamente reconhecer um sentido normativo das regras pertinentes e contidas em cada um daqueles subsistemas, quanto, e, tão-somente referenciarem-se mutuamente, isto é, uma nas outras, segundo a própria sistematicidade estabelecida, haja vista que tais vínculos se operam pelo sentido, orientação e conteúdo (substância) agregados, analiticamente aos desdobramentos possíveis de serem reconhecidos como protetivos e emancipatórios destas novas subjetividades precisamente pela pertinência quem guardam com a Doutrina da Proteção Integral. (Ramidoff, 2008, p. 44/45)

Nesse contexto, a atuação articulada entre Conselho de Direitos, Conselho Tutelar, Ministério Público e Poder Judiciário é fundamental.

Uma breve análise sobre alguns desses órgãos componentes do sistema de garantias se segue.

Ao Conselho de Direitos cabe a responsabilidade de estabelecer diretrizes e medidas, deliberar e fiscalizar o Poder Público quanto à execução das providências necessárias à garantia e efetivação dos direitos da criança e do adolescente, sendo órgão deliberativo e controlador das ações em todos os níveis, não se reduzindo à órgão de assessoramento do poder executivo, mas antes de tudo tem a atribuição legal de determinar quais as ações devem ser realizadas para garantia do atendimento integral a crianças e adolescentes. “Como órgão controlador, deve o Conselho verificar se a Administração Municipal está agindo de acordo com as propostas oferecidas, e a partir de então agir como órgão fiscalizador.” (Veronese, 2006, p. 68)

Ao Conselho Tutelar cabe garantir a proteção integral aos direitos de crianças e adolescentes sempre que estes sejam ameaçados ou violados, conforme dispõe o art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O caráter da autonomia e da permanência do órgão visa garantir plena independência na sua atuação consolidando um espaço significativo para a participação da comunidade na garantia dos direitos.

Embora, o Direito da Criança e do Adolescente tenha previsto o princípio da desjudicialização, é preciso reconhecer a importância do sistema de justiça no oferecimento da devida prestação jurisdicional sempre que os direitos forem ameaçados ou violados e essa condição não receber atenção saneadora por parte das políticas de proteção.

Percebe-se, da análise dos órgãos acima, que se a composição e os trabalhos do sistema de garantias ocorrerem de maneira séria e comprometida como seu marco teórico, que é o da teoria da proteção integral, esses espaços demonstram-se como espaços democráticos, onde a cidadania pode ocorrer plena e materialmente falando.

Ainda sobre os órgãos, resta registrar que a plena efetivação dos direitos fundamentais depende especialmente da integração entre os órgãos do sistema de garantias de direitos e o diálogo com a sociedade civil visando à consolidação de uma prática realmente democrática na garantia dos direitos fundamentais no Brasil.

Ante todas as características da teoria da proteção integral apresentadas, evidencia-se que a mesma está em conformidade com o conceito pioneiramente marxista visto neste trabalho. Não poderia ser diferente, pois proteger integralmente aqueles em peculiar estágio de desenvolvimento os possibilitará uma experiência de vida saudável e repleta de bem estar, o que é propósito maior da efetivação dos direitos humanos.

4 Considerações Finais

Como consideração final, tem-se como relevante provocar acerca da necessidade de políticas públicas, por parte da tríade subjetiva prevista na teoria da proteção integral, que proporcionem, por meio de uma atuação cidadã, uma experiência também cidadã às crianças e adolescentes, de modo que esses possam, enquanto reconhecidamente sujeitos de direitos, ser autores de sua própria história. E mais, considerando que o desenvolvimento da pessoa é condicionado às relações sociais que vivenciou ao longo de sua trajetória, segundo defende este estudo, pode-se conceber que as crianças e adolescentes que tiveram oportunidades cidadãs terão também uma visão cidadã de sociedade e dos problemas que nela existem. Portanto, estarão muito mais propensos a um comprometimento cidadão com esses problemas.

Por fim, em que pese ser a análise deste trabalho meramente teórica, entende-se que a mesma pode servir para conferir-se ainda mais importância à teoria da proteção integral, já que se demonstrou uma forma de desenvolvimento do ser humano que se consubstancia fortemente nas relações sociais e materiais de vida que esse mesmo ser travou durante sua vivência. Se assim é, então proteger integralmente, com todos os requisitos e princípios que a teoria exige, é mesmo muito relevante para o combate dos problemas sociais que conferem ao ser uma vivência triste, bem como importante também para a efetivação dos direitos humanos, estes que passaram de simples necessidade, tornando-se uma demanda urgente.

5 Referências

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______. Lei Ordinária n. 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 01 maio 2011.

CUSTÓDIO, André Viana; VERONESE, Josiane Rose Petry. Crianças esquecidas: o trabalho infantil doméstico no Brasil. Curitiba: Multidéia, 2009.

______.Teoria da Proteção Integral: pressuposto para compreensão do direito da criança e do adolescente. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, n.º 32, Julho/Dezembro de 2009. p. 22-43. Disponível em: . Acesso em: 01 maio 2011.

HARNECKER, Marta. Os conceitos elementais do materialismo histórico. [s.n.], 1973. 317 p.

LURIA Alexander Romanovich. A construção da mente. São Paulo: Ícone, 1992.

RAMIDOFF, Mário Luiz. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. 2. ed. rev. e atual Curitiba: Juruá, 2008.

SCUSSEL,Wendy. O conceito de evolução e a concepção materialista da história em Marx e Engels. Criciúma: Unesc, 2007.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 31. Ed. São Paulo: Malheiros: 2007. .

SILVEIRA, Clélia Mara Fontanella. O operador do direito e o exercício da cidadania; paradigma nos cursos jurídicos. Florianópolis: Do autor, 2002. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2002

VIGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiore

 

Data de elaboração: maio/2011

 

 

 

Ismael Francisco de Souza e Ramires Gobbi

Ismael Francisco de Souza
Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, Graduado em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Professor de Direito da Criança e do Adolescente da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC); Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED/UNESC).

Ramires Gobbi
Acadêmico do curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc); pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Estado, Política e Direito.