O passe é livre?

O passe acabou. Essa é uma verdade que ainda não caiu na boca do povo. Muito ainda se ouve dizer, principalmente na mídia, sobre “jogadores com passe livre”, “direitos federativos”, “direitos econômicos sobre o passe” e muito mais. No entanto, o que há de certo e de errado nisso? Em que ponto se encontram os equívocos na alusão ao passe? Entendamos.

O esporte brasileiro atravessou um longo período de carência de legislação específica. No futebol, as relações entre atletas profissionais e clubes regulavam-se sob os dispositivos da Lei 6.354/76.

O art. 11 da referida lei trazia a definição do passe, e assim dispunha:

“Art. 11. Entende-se por passe a importância devida por um empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência do contrato ou depois de seu término, observadas as normas desportivas pertinentes”.

Em uma correta definição simplória, passe era compensação financeira, a quantia que um clube pagava a outro para transferir determinado jogador.

Em conseqüência, os clubes de futebol faziam do passe verdadeiro capital ativo, fonte principal de renda e subsistência. Isso porque a lei impedia que o atleta, mesmo depois de encerrado o contrato de trabalho com determinada equipe, procedesse à sua transferência para outra agremiação, enquanto não fosse paga a importância que a lei atribuía como devida.

Isso quer dizer que, ao contrário de qualquer outro trabalhador, mesmo com a extinção do contrato o atleta ainda mantinha vínculo com o antigo clube. Enquanto a quantia exigível não fosse depositada, ou seja, o passe não fosse pago, o atleta não poderia praticar o futebol por qualquer outra equipe.

No entanto, a partir do dia 24 de março de 1998, tudo mudou. Foi sancionada no Brasil a Lei 9.615, sob a alcunha de Lei Pelé. Uma das inovações estabelecidas pela nova lei remonta exatamente ao passe, mais especificamente ao fim do instituto.

A partir da Lei Pelé, permitiu-se que um atleta de futebol, depois de extinto o contrato de trabalho com um clube, atuasse por outra equipe, mesmo que não houvesse o pagamento do passe.

Em linguagem jurídica, transformou-se a natureza do vínculo desportivo do atleta com o clube em acessória ao respectivo vínculo empregatício. Encerrado o contrato, também se encerra qualquer vínculo entre o jogador e o antigo clube. Nenhuma quantia passa a ser devida para que o atleta jogue futebol por outra agremiação. O passe deixou de ser devido. O passe deixou de existir.

Como era possível proibir que um trabalhador exercesse livremente sua profissão, mesmo quando não possuía contrato com qualquer outro empregador?

Em decorrência da extinção do passe, uma grande insatisfação por parte dos clubes de futebol veio à tona, pois as equipes tinham na compra e venda de jogadores o seu motor financeiro. No entanto, convenhamos, compra e venda de força de trabalho?

Se extinto o contrato, o atleta se obrigava a manter vínculo com o clube mesmo sem receber salários. O passe já era há muito fadado ao insucesso. Faltava-nos o instrumento legal que modificasse essa realidade.

Atualmente, o que prevalece nos contratos de trabalho entre atletas de futebol e clubes é uma compensação financeira em decorrência da extinção antecipada do contrato, denominada cláusula penal.

Caso um clube possua interesse em determinado jogador, e este tenha um contrato em vigor com outra agremiação esportiva, permite-se que o contrato do atleta seja rescindido, mediante o pagamento da indenização pela extinção antecipada, a cláusula penal. Que fique bem claro, a cláusula penal é devida em decorrência da extinção unilateral antecipada do contrato.

Se o contrato entre um atleta e um clube chega ao fim de seu prazo de vigência, o jogador se encontra livre para atuar por qualquer outra equipe, sem necessidade de indenizar a antiga agremiação.

É certo que ainda ouvimos algumas expressões que remontam ao “passe”, aos “direitos federativos” ou aos “direitos econômicos” de um atleta. Também é certo que se trata tão somente de equívocos quanto à interpretação da legislação.

Não existem direitos de qualquer pessoa sobre o atleta, não existe o passe, existem apenas obrigações contratuais entre empregado e empregador, entre atleta e clube. O descumprimento dessas obrigações contratuais possui sanções estabelecidas pela lei, e algumas delas são indenizatórias, envolvem dinheiro, o que não pode ser confundido com o “passe” ou qualquer outra expressão similar utilizada nos meios de comunicação.

A legislação mudou, o passe acabou.

 

 

 

Luciano Brustolini

Advogado
Coordenador do Departamento Jurídico da BMP Sports
Professor de Direito do Trabalho
Palestrante em Direito Desportivo
Diretor do Instituto Mineiro de Direito Desportivo
Integrante do Conselho Consultivo do Instituto Mineiro de Direito Desportivo
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Pós-graduado em Direito de Empresa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais