Celetistas não podem aplicar multas de trânsito

INTRÓITO

A tese que se esposa, embora arrojada, mas de toda sorte plausível, é a de que o § 4º do art. 280 do CTB deve ser interpretado com redução de texto para ser válido diante da Constituição Federal.

Eis a redação da norma:

Art. 280. Ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração, do qual constará:

(...)

§ 4º O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência.”

Ora, celetista, no âmbito de uma relação de trabalho para com o Estado, a ele se vincula por emprego público, subordinado à legislação trabalhista.

A questão nodal em torno do mencionado dispositivo, a qual alimentará a presente discussão, é a ausência de possibilidade jurídica de aplicação de multa por parte do celetista, a macular o requisito de validade do ato sob o prisma da competência, a partir de lições doutrinárias e precedentes jurisprudenciais.

REQUISITOS DE VALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO

Para definir os elementos que compõem o ato administrativo, a doutrina majoritária utiliza como fundamento o disposto no artigo 2º da Lei nº 4.717/65 (Lei de Ação Popular), no qual foram estabelecidas as hipóteses de nulidade dos atos lesivos ao patrimônio público, vejamos:

Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:

a) incompetência;

b) vício de forma;

c) ilegalidade do objeto;

d) inexistência dos motivos;

e) desvio de finalidade.

Desta forma, valendo-se destes parâmetros, a doutrina assinala que os requisitos dos atos administrativos são: sujeito (competência); forma; motivo; finalidade e objeto.

Celso Bandeira de Mello, por exemplo, assinala:

São pressupostos de existência o objeto e a pertinência do ato ao exercício da função administrativa.  Os pressupostos de validade são: 1) pressuposto subjetivo (sujeito); 2) pressupostos objetivos (motivo e requisitos profissionais); 3) pressuposto teleológico (finalidade); 4) pressuposto lógico (causa); e 5) pressupostos formalísticos (formalização).” [1] [GRIFAMOS]

O mesmo autor especifica que: “Sujeito é o autor do ato; quem detém os poderes jurídico-administrativos necessários para produzi-lo.”[2],

Assim, o que convém ser abordado a seguir é a ausência de poderes jurídico-administrativos necessários para o celetista aplicar multas de trânsito, tendo em vista a necessidade de vínculo eminentemente estatal para tal atividade fiscalizadora, sem que predomine aí uma relação de interesse particular.

A NECESSIDADE DE VÍNCULO ESTATUTÁRIO DOS SERVIDORES DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

Na ADI 2.310-1-DF, o Min. Marco Aurélio suspendeu, em apreciação liminar, o artigo 1º da Lei 9.986/2000, que estabelece que o regime jurídico dos servidores das agências reguladoras como sendo de emprego público, firmando que a natureza desempenhada pelas agências reguladoras demandava regime de cargo público e se incompatibilizava com o de emprego.

Veio a Lei nº 10.871/2004, que cuidou de revogar, dentre outros, o artigo 1º da supramencionada lei, ao prever a criação de cargos públicos e respectivas carreiras nas agências reguladoras, ensejando, assim, a extinção da ADI 2.310-1, por perda superveniente do objeto.

Nesta ADI, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, defendia-se que as atividades exclusivas do Estado não podiam ser atribuídas a prestadores de serviços submetidos à Consolidação das Leis do Trabalho, devendo haver a subordinação a estatuto próprio.

É que funções de fiscalização e outras relativas ao serviço diplomático, desenvolvidas por delegados de polícia, por membros do Ministério Público e pela magistratura pressupõem o regime estatutário, objetivando conferir a autonomia funcional indispensável ao respectivo exercício.

Na liminar deferida, o Min. Marco Aurélio consignou que:

Inegavelmente, as agências reguladoras atuam com poder de polícia, fiscalizando, cada qual em sua área, atividades reveladoras de serviço público, a serem desenvolvidas pela iniciativa privada.  Confira-se com os diplomas legais que as criaram, em que pese a própria razão de ser dessa espécie de autarquia.  A problemática não se resolve pelo abandono, mediante alteração constitucional – Emenda 19/98 -, do sistema de regime jurídico único.  Cumpre indagar a harmonia, ou não, da espécie de contratação, ante a importância da atividade e, portanto, o caráter indispensável de certas garantias que, em prol de uma atuação eqüidistante, devem se fazer presentes, considerados os prestadores de serviços.”

(...)

Aliás, o artigo 247 da Lei Maior sinaliza a conclusão sobre a necessária adoção do regime de cargo público relativamente aos servidores das agências reguladoras.  Refere-se o preceito àqueles que desenvolvam atividades exclusivas do Estado, e a de fiscalização o é.” [GRIFAMOS]

Muito embora a referida ADI tenha perdido o objeto, é notável que o Min. Marco Aurélio não se furtou a ingressar no mérito em seu despacho liminar.

Consoante os argumentos trazidos à lume pelo Min. Marco Aurélio, com relação às agências reguladoras exsurge a necessidade do vínculo estatutário para desempenho de suas atividades, pois, segundo o Ministro, são exclusivas do Estado, quais sejam: poder de polícia e fiscalização.

APLICAÇÃO ANALÓGICA DO REFERIDO ENTENDIMENTO AO CTB

De acordo com tal premissa, portanto, não devem haver dois pesos e duas medidas em relação à atividade fiscalizatória do Estado: se às agências reguladoras entende-se que o vínculo trabalhista desnatura o poder de polícia do Estado, o mesmo deve ocorrer com as autuações de trânsito, as quais, igualmente, se exteriorizam em poder de polícia.

Os argumentos de Celso Bandeira de Mello fortalecem a tese de que celetistas não podem aplicar multas de trânsito, haja vista a necessidade impessoalidade na atuação do Estado:

Que atividades seriam estas, passíveis de comportar regime trabalhista, se a lei assim decidir? (...) Seriam, portanto, os correspondentes à prestação de serviços materiais subalternos, próprios dos serventes, motoristas, artífices, jardineiros ou mesmo de mecanógrafos, digitadores etc., pois o modesto âmbito da atuação destes agentes não introduz riscos para a impessoalidade da ação do Estado em relação aos administrados caso lhes faltem as garantias inerentes ao regime de cargo.” [3] [GRIFAMOS]

Ora, na medida em que ao multar o Estado encontra-se em atuação sancionatória, não é possível que celetistas desempenhem a atividade com a impessoalidade exigida do Estado, já que introduzirão possíveis gravames sobre o patrimônio dos administrados, sujeitando-os a ingressar com processo administrativo para deles se subtraírem.

DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA

Há, todavia, respeitável corrente doutrinária em sentido contrário.  José dos Santos Carvalho Filho tem entendimento diametralmente oposto ao nosso:

A respeito do tema, suscitou-se polêmica relacionada à Guarda Municipal, criada pelo Município do Rio de Janeiro sob a forma de empresa pública (embora, a nosso ver, não seja essa a categoria adequada para aquela corporação, tendo em vista as funções que lhe são cometidas).  Com o argumento de que se tratava de pessoa jurídica de direito privado, bem como pela circunstância de que seus servidores se subordinavam ao regime trabalhista, o que não lhes poderia conferir estabilidade, alguns passaram a defender a anulação das multas de trânsito por eles aplicadas em conseqüência da impossibilidade jurídica de ser exercido poder de polícia pela entidade.  A nosso ver, tal entendimento reflete flagrante desvio de perspectiva.  Inexiste qualquer vedação constitucional para que pessoas administrativas de direito privado possam exercer o poder de polícia em sua modalidade fiscalizatória.  Não lhe cabe – é lógico – o poder de criação das normas restritivas de polícia, mas, uma vez já criadas, como é o caso das normas de trânsito, nada impede que fiscalizem o cumprimento das restrições.  Aliás, cabe aqui observar que a Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) é claríssima ao admitir que o agente da autoridade de trânsito, aquém incumbe comprovar a infração, seja servidor civil, estatutário ou celetista, ou, ainda policial militar designado pela autoridade de trânsito.” [4]

Em que pese o respeitável entendimento do eminente autor, pede-se vênia para discordar.

Ainda que não haja explícita vedação constitucional para a atividade de fiscalização por parte de pessoas administrativas de direito privado ou por agentes públicos com vínculo não-estatutário, subentende-se isso de uma interpretação sistemática de seus artigos, em especial o artigo 247 da Constituição Federal, o qual, como assinalado pelo Min. Marco Aurélio, sinaliza a necessidade de vínculo estatutário do servidor que desempenhe atividade exclusiva do Estado.

Ademais, o regime laboral comum dentro do Estado é exceção e não regra.  É exceção justamente, como acentuado por Celso Bandeira de Mello, para atividades subalternas, as quais não oferecem riscos em suas atuações perante o administrado, e onde a dimensão do interesse público seja bastante reduzida ou quase inexistente.  Como frisado pelo mencionado autor:

Finalmente, o regime normal dos servidores públicos teria mesmo de ser o estatutário, pois este (ao contrário do regime trabalhista) é o concebido para atender a peculiaridades de um vínculo no qual não estão em causa tão-só interesses empregatícios, mas onde avultam interesses públicos básicos, visto que os servidores públicos são os próprios instrumentos da atuação do Estado.” [5] [GRIFAMOS]

Portanto, esta é raison d’être do vínculo estatutário, sendo o servidor público stricto sensu uma extensão (braço) do corpo estatal.

JURISPRUDÊNCIA

Não obstante, a questão da possibilidade da validade das autuações das guardas municipais, referida pelo autor José dos Santos Carvalho Filho, foi apreciada pelo Colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, como se pode ler da representação por inconstitucionalidade nº 2001.007.00070, Relator Des. Gama Malcher:

"GUARDA MUNICIPAL. EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA. DELEGAÇÃO DA COMPETÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE

Guarda-Municipal. Representação por Inconstitucionalidade. Indelegabilidade das funções de segurança publica e controle de transito, atividades próprias do Poder Publico. As atividades próprias do Estado são indelegáveis pois só diretamente ele as pode exercer; dentre elas se inserem o exercício do poder de policia de segurança publica e o controle do transito de veículos, sendo este expressamente objeto de norma constitucional estadual que a atribui aos órgãos da administração direta que compõem o sistema de transito, dentre elas as Policias Rodoviárias (Federal e Estadual) e as Policias Militares Estaduais. Não tendo os Municípios Poder de Policia de Segurança Publica, as Guardas Municipais que criaram tem finalidade especifica - guardar os próprios dos Municípios (prédios de seu domínio, praças, etc) sendo inconstitucionais leis que lhes permitam exercer a atividade de segurança publica, mesmo sob a forma de Convênios. Pedido procedente." [GRIFAMOS]

Maiores lições da incompatibilidade de vínculo trabalhista para o exercício de função típica do Estado são extraídas do inteiro teor do citado acórdão:

Diógenes Gasparini quando Superintendente de Assistência Técnica do Centro de Estudos de Administração Municipal do Governo de São Paulo, em Parecer lançado no Processo FPFL nº 1.475/91 examinou profundamente a legislação que rege a atividade de segurança pública, notadamente nas relações de trânsito para afirmar a impossibilidade de delegação do Poder de Polícia, para fiscalização de trânsito, a particular ou ente paraestatal, uma vez que tal missão, do ponto de vista constitucional e legal, cabe às Polícias Militares.

José Cretella Júnior, nos seus -Comentários à Constituição de 1988 (Forense Universitária, 1ª ed., vol. II, p. 733) acentua que o -Poder de Polícia é indelegável, sob pena de falência virtual do Estado- posição amplamente defendida por Álvaro Lazzarini nos seus -Estudos de Direito Administrativo- (Rev. Tribunais, ed. 1955) que salienta que, em matéria de trânsito os municípios só têm competência para implantar e estabelecer -política de educação para a segurança de trânsito, conforme autorização do art. XII e seu parágrafo único da Constituição Federal.

Salienta o referido Lazzarini (fls. 3/7) que -competindo à União legislar a respeito do trânsito, ela também, dentro de sua esfera de competência constitucional houve por bem indicar, expressamente, que à Polícia Militar cabe a atribuição de policiar o cumprimento das regras de trânsito impostas, sem autorizar a sua delegação a nenhum órgão público-.

(...)

Na hipótese de funções típicas do Estado os entes públicos (União, Estados e Municípios) só as podem exercer diretamente, mediante a atuação de órgãos integrantes da administração direta e de servidores públicos admitidos mediante concurso público, ocupantes de cargos públicos.

(...)

Quando se trata de funções impróprias (as funções não típicas) na realidade o que se tem é atividade administrativa que pode ser delegada, mediante descentralização, seja a entes da administração indireta (autarquias, empresas públicas e sociedade de economia mista) seja até a particulares mediante concessão, permissão ou autorizações.” [GRIFAMOS]

Traga-se à baila, ainda, o inteiro teor do acórdão prolatado pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, nos autos da Apelação Cível de nº 2007.001.29853:

“Prosseguindo – e tal se diz por se tratar de matéria de ordem pública – se de um lado o exercício de poder (mitigado) de polícia da Guarda Municipal é reconhecido e prestigiado nos exatos termos da norma constitucional, em contrapartida não se pode dizer que os componentes daquela estejam investidos em função pública, quanto à multa dos motoristas.

(...)

O que se diz, contudo, é que a pretensão de sua atuação como agente da autoridade deve obedecer a princípios de investidura e mesmo de responsabilidade funcional que no caso não existem.

Na verdade, se tem um quadro de pessoas contratadas sob a égide da legislação trabalhista, compondo empresa de administração municipal indireta e que são postos a atuar como se fossem componentes da administração direta.” [GRIFAMOS]

Impende ressaltar que tal decisão data de 21 de agosto de 2007, cerca de 10 anos depois da edição do Código de Trânsito Brasileiro, e muito embora não cuide específica e diretamente do artigo 280, § 4º do CTB, enuncia uma contradição hermenêutica com a norma em comento.

A matéria encontra-se pendente de julgamento em Recurso Extraordinário, cuja relatoria, curiosamente, é do mesmo Min. Marco Aurélio, que, mais de 10 anos atrás, teve coragem de exigir o vínculo estatutário nas relações de trabalho envolvendo as atividades das agências reguladoras.

DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

Quando a norma é inconstitucional, ela simplesmente não se aplica.  Vislumbram-se, todavia, técnicas de interpretação conforme a Constituição destinadas a “salvar” a norma de eventuais deslizes do legislador.

É o que se dá com a interpretação conforme a Constituição com redução de texto, a qual conferirá à norma impugnada uma determinada interpretação que lhe preserve a constitucionalidade.

Numa tal hipótese, o STF declara a inconstitucionalidade apenas de parte de um texto legal; suprime apenas a eficácia de uma expressão, permitindo que o restante da norma legal fique compatível com a Constituição Federal.

Foi o que fez a Corte no julgamento da ADI nº 1.127-8, ao suspender a eficácia apenas da expressão “ou desacato”, contida no art. 7º, § 2º da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB), mantendo íntegras as demais disposições que garantem imunidade material aos advogados.

O mesmo, pois, deve ser feito com a expressão “ou celetista”, devendo o § 4º do art. 280 ter a eficácia suspensa para preservar a constitucionalidade da norma em questão.

CONCLUSÃO

Como visto, importantes vozes na doutrina e na jurisprudência concordam que o celetista não pode desempenhar atividades típicas do Estado, em razão da incompatibilidade do regime trabalhista (onde predomina o interesse privado) no exercício de funções de índole eminentemente estatal, quais sejam, as funções de policiamento e fiscalização.

A tese em questão foi encampada pela Corte Suprema para suspender a eficácia de norma que trazia o regime trabalhista para o seio das agências reguladoras, não havendo motivo para haver disparidade de tratamento no tocante às autuações de trânsito.

A regra na hermenêutica constitucional é a preservação da lei infra-constitucional dada a sua presunção de legalidade.  Deve ser preterida a declaração de inconstitucionalidade, quando possível adequá-la ao texto constitucional.

No caso em apreço, existe a possibilidade de salvar a norma em discussão do vício capital de inconstitucionalidade, bastando ser aplicada a técnica de interpretação conforme a Constituição com redução de texto, para que a expressão “ou celetista” seja afastada do conteúdo da norma.

Notas:

[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª Ed. Malheiros: 2011, São Paulo, pp. 392-393

[2] Idem, p. 391.

[3] Idem, p. 264.

[4] FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 22ª Ed. Lumen Juris Editora: 2009 Rio de Janeiro, p. 76.

[5] MELLO, Celso Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, Op. cit. p. 261

 

 

Elaborado em outubro/2013

 

 

 

Roberto Flávio Cavalcanti

Advogado e Jornalista. Graduado também em Administração e Ciências Contábeis.