Silêncio e invisibilidade: a vítima como objeto de libido

Resumo: Esta pesquisa busca analisar o abuso sexual de crianças e adolescentes vivenciados também na problemática do ambiente familiar, demostrando em alguns interrogatórios e os danos provocados por tais condutas. A relação familiar passa por vários processos sociais, a realidade capitalista colaborou no distanciamento desses laços afetivos, auxiliando para um aumento da violência neste âmbito, especialmente o abuso sexual de crianças e adolescentes. Assim as obrigações do Estado em relação ao menor tornam mais dificultosas, pelo grande obstáculo em observar, reparar as relações e proteger a vítima incapaz, principalmente quando o infrator é o responsável pelo bem-estar e segurança ao menor.

Palavras-Chave: abuso sexual, incapaz, Estado, ambiente familiar.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Numa perspectiva constitucional, a proteção da criança e do adolescente é um direito fundamental, como vemos no art. 227, da CRFB/88, devendo tal proteção acontecer de forma escalonada, começando pela família, passando pela sociedade e enfim, o Estado.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).

Nesse contexto, no Estatuto da Criança e Adolescente – ECRIAD, também há, não por acaso, uma ordem de entes encarregados do dever de proteger a criança e o adolescente, conforme disposto no artigo 4º (Lei nº 8.069/90), in verbis:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990).

Observa-se que, no Estatuto da Criança e do Adolescente, há o acréscimo de mais uma entidade, a saber, a comunidade; também responsável a assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes. Denota-se, portanto, uma ordem de dever de cuidar, assim configurada: família; comunidade; sociedade em geral e Estado. É necessário enfatizar essa ordem de entes com o dever de cuidar, posto que crianças e adolescentes sejam desprovidos de condições de lutar por seus direitos e garantias fundamentais, dependendo de representação por quem tem essa prerrogativa. Observa-se que, tanto na Constituição Federal, como também no ECRIAD, a família ocupa o primeiro lugar na lista de entes com o dever de proteção, ou seja, a família além de ter as condições ideais para uma vida digna, também deve proporcionar o ambiente mais seguro e estruturado possíveis. 

A partir de 2006, o Governo Federal deu início a uma espécie de monitoramento para conhecer dos casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes, coletando dados por meio da Ficha de Notificação/Investigação individual de violência doméstica, sexual e/ou outras violências e registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Em janeiro de 2011, o Ministério da Saúde universalizou a notificação de violências doméstica, sexual e outras agressões para todos os serviços de saúde, incluindo todas elas na relação de doenças e agravos, que são registradas no SINAN.

Igualmente, fortaleceu-se a ampliação da Rede de Núcleos de Prevenção de Violências e Promoção da Saúde. Esses núcleos têm financiamento do Ministério da Saúde e são responsáveis, por meio das secretarias de saúde, por implementar ações de vigilância e prevenção de violências, identificar e estruturar serviços de atendimento e proteção às crianças e adolescentes em situação de risco.

Nesse sentido, os profissionais de saúde que, ao se depararem com qualquer caso, suspeito ou confirmado, deve ser notificado. Em maio de 2012, o Ministério da Saúde, publicou por meio do Portal da Saúde, um levantamento inédito, realizado no ano de 2011, o qual registrou 14.625 notificações de violência doméstica, sexual, física e outras agressões contra crianças menores de dez anos (BRASIL, 2012). Segundo o levantamento realizado por meio dos registros, “a violência sexual contra crianças de 0 a 9 anos é o segundo maior tipo de violência mais característico nessa faixa etária, ficando pouco atrás apenas para as notificações de negligência e abandono” (BRASIL, 2012, s.p.).

Os números supramencionados são do sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) do Ministério da Saúde. O “VIVA” possibilita conhecer a frequência e a gravidade das agressões e identificar a violência doméstica, sexual e outras formas (física, sexual, psicológica e negligência/abandono). Esse tipo de notificação se tornou obrigatório a todos os estabelecimentos de saúde do Brasil, no ano de 2011.

Os dados demonstram que a violência sexual contra crianças até os 9 anos representa 35% das notificações, perdendo apenas para a negligência e o abandono, que detém 36% dos registros (BRASIL, 2012, s.p.). Observa-se que quanto menor a idade, maior a fragilidade e, maior ainda, a possibilidade de a criança ser vítima de violência e abusos, em razão da fragilidade e muitas vezes, da impossibilidade de se manifestar.

Tabela 1. Maiores violências na faixa etária de 0 – 9 anos.

Tipo de violência

Percentual

Negligência ou abandono

36%

Violência sexual

35%

Fonte: VIVA SINAN/SVS/MS – 2011. Disponível em: . Acesso em 23 mar. 2018.

 

Ainda de acordo com o levantamento realizado pelo Sistema VIVA, a violência sexual também ocupa o segundo lugar na faixa etária de 10 a 14 anos.

Os dados preliminares mostram que a violência sexual também ocupa o segundo lugar na faixa etária de 10 a 14 anos, com 10,5% das notificações, ficando atrás apenas da violência física (13,3%). [...] Os dados apontam também que 22% do total de registros (3.253) envolveram menores de 1 ano e 77% foram na faixa etária de 1 a 9 anos (BRASIL, 2012, s.p.).

Conforme registros, a violência sexual na faixa etária entre 10 e 14 anos, perde apenas para a violência física, violência esta, que diferentemente de abusos sexuais, deixa marcas aparentes.

 

Tabela 2. Maiores violências na faixa etária de 10 – 14 anos

Tipo de violência

Percentual

Violência Física

13,3%

Violência Sexual

10,5%

Fonte: VIVA SINAN/SVS/MS – 2011. Disponível em: . Acesso em 23 mar. 2018.

           

Quanto ao local da prática e perfil dos agressores ou abusadores, o levantamento feito pelo “VIVA” apontou que a maior parte ocorre na residência da criança (64,5%) e em 45,6% dos casos o provável autor era do sexo masculino. “Grande parte são pais e outros familiares, ou alguém do convívio muito próximo da criança e do adolescente, como amigos e vizinhos” (BRASIL, 2012, s.p.).

Antes mesmo da divulgação do levantamento realizado pelo “VIVA”, Pimenta (2009, p. 7) já mencionava que grande parte dos casos de violência contra crianças e adolescentes acontece nas próprias casas e são perpetrados por adultos cujo dever é proteger e assegurar o desenvolvimento biopsicossocial saudável para esses menores. São pais, mães, padrastos, madrastas, avôs, avós, irmãos mais velhos, tios, acima de tudo, pessoas em quem a criança confia e respeita. O abuso sexual, portanto, é toda uma situação de aproveitamento, utilização, exploração e violência que tem como objeto os atos sexuais.

Analisando os dados acima, observa-se a existência de um grande paradigma do crime de violência intrafamiliar, cometido contra crianças e adolescentes, pois todo o iter criminis se desenvolve de forma oculta, ou seja: invisível! Longe da visualização dos demais membros da família, a criança se torna um objeto nas mãos daqueles que deveriam oferecer proteção e amor e, para satisfazer os desejos sexuais, o abusador usa dos mais sagazes recursos para a prática do crime, aproveitando ocasiões em que se encontra sozinho com a vítima, ou enquanto todos da casa dormem, visita o quarto da vítima, se valendo de sua posição de “autoridade” e fragilidade da criança.

Um crime invisível aos olhos da própria família, tornando-se quase impossível de ser detectado pela comunidade, pela sociedade e, principalmente, pelo Estado. Aliados a isso, estão o silêncio da vítima e do abusador. O silêncio da vítima se dá, em geral, pelas ameaças de mal grave e injusto, se o incesto ou violência se tornar público. Além disso, as ameaças contra a vítima são as mais diversas. A intenção do que pratica o crime é fazer que a criança ou adolescente se sinta responsabilizado. O silêncio do abusador, pessoa acima de qualquer suspeita, que se vale de sua autoridade, para manter em segredo a violência ou abuso sexual, pois quer continuar cometendo o crime, mesmo sabendo, conscientemente, das graves consequências penais, acaso seja descoberto.

Como já abordado anteriormente, o crime de estupro de vulnerável é de ação penal pública incondicionada, ou seja, após o oferecimento da denúncia, será dada continuidade a todo o procedimento legal de apuração, independente da vontade da vítima ou representante legal. Esse grifo é de suma importância, pois, somente após o registro da ocorrência, o Estado, “o último responsável da lista”, na escala de entes com o dever de proteger a criança, poderá usar os instrumentos legais para solução do crime. Ocorre que para haver denúncia, há de se transpor uma série de obstáculos, e a dificuldade em se comprovar a existência desses delitos tem levado esses crimes para o rol da impunidade.

Nesse diapasão, devem-se analisar duas barreiras encontradas pelo Estado: Primeiro: O Estado não tem conhecimento do que acontece no ambiente familiar, cotidianamente, e não tem controle sobre os atos familiares, tampouco pode interferir na privacidade das famílias. Aliás, não é função do Estado intervir nas relações intrafamiliares, a não ser que haja notícias de abusos ou excessos e, como já explanado acima, o dever de cuidar da criança é, primeiramente, de sua família. Segundo: Dificilmente se descobre que uma criança ou adolescente está sendo vítima de abuso sexual intrafamiliar e, quando se descobre, há uma grande resistência da família em expor o problema. Muitas vezes a vítima não tem credibilidade, pelo simples fato de acharem que a história é fantasiosa, ou então porque a família acredita que será um escândalo diante da sociedade.

Outras até acreditam na palavra da vítima, mas ao tentarem resolver o problema internamente, normalmente o criminoso nega os fatos. Conforme menciona Pimenta (2009, p. 8), o abuso sexual infantil é o delito menos denunciado pela sociedade por implicar grandes impactos físicos e emocionais para aqueles que a ela são expostos. Suas taxas de ocorrência são provavelmente mais elevadas do que as estimativas existentes. Na maioria dos casos nunca é revelado devido aos sentimentos de culpa, vergonha, ignorância e tolerância da vítima.

Há, também, os casos, em que as mães das vítimas são mulheres totalmente dependentes financeiramente do violentador, e acabam aceitando a situação, pois não tem para onde ir. Para Miyahara (2012, s.p.), é necessário compreender a dinâmica que gera o abuso, pois as mães das vítimas, geralmente, se perguntam se tiveram alguma culpa por não terem visto que os filhos estavam sendo abusados. O tema aqui tratado é extremamente delicado, pois a criança é vista e tratada como objeto de libido, e nada nos faz refletir tanto, quanto a expressão usada por Miyahara (2012, s.p.), na qual compara o abusador sexual intrafamiliar a um dependente químico: o abusador se torna semelhante ao dependente de uma droga química, pois se ele tem meios propícios para atuar, ele tem a chance de continuar cometendo o abuso.

 

1.  O SUJEITO PASSIVO DO ARTIGO 217-A DO CÓDIGO PENAL: DESEJOS, PULSÕES E REDUÇÃO DA CRIANÇA A OBJETO DE LIBIDO

O sujeito passivo do crime de estupro de vulnerável é a criança ou o adolescente menor de 14 anos. “Assim, até zero hora do dia em que a vítima de estupro completa catorze anos, independentemente de sua vontade, o Estado pune aquele que lhe fizer qualquer ato libidinoso ou conjunção carnal” (FARIAS, 2014, s. p.). Ao completar 14 anos, eventual vítima estará protegida pelo crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, se for constrangida a praticar conjunção carnal ou ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça. Se, porém, a prática do ato sexual for consentido, o fato será atípico. O §1º do art. 217-A da legislação penal amplia o rol do sujeito passivo do delito, dispondo que:

Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (BRASIL, 1940).

Segundo conceito de Farias (2014, s.p.), a causa referida no dispositivo pode ser permanente ou transitória, pode ser induzida ou criada pelo agente ou pode ser inerente à condição da pessoa. Há, assim, uma equiparação legal, porquanto essas situações também são consideradas de vulnerabilidade. Portanto, quanto ao sujeito passivo, o crime é próprio, somente podendo figurar como vítima pessoa vulnerável ou equiparada, ou seja, o menor de 14 anos, o enfermo ou o deficiente mental, que não tem o necessário discernimento para a prática do ato, e todos os que, por qualquer motivo, não podem oferecer resistência. Ademais, podem ser sujeitos passivos do crime de estupro de vulnerável tanto pessoas do sexo feminino quanto do sexo masculino, restando caracterizado o crime em relação a hetero ou homossexual.

Com a edição da Lei nº 12.015/09, revogou-se o art. 224 do Código Penal e a regra da presunção de violência deixou de ser aplicada. A mesma lei incluiu, na legislação penal substancial, o art. 217-A, que, sem mencionar presunção de nenhuma ordem, pune, no caput, a conduta de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de quatorze anos. Leciona Cunha (2017, s.p.), que para a maioria da doutrina não existe espaço para discussão a respeito da presunção de vulnerabilidade, pois a lei nada presume. Sua redação é clara e inequívoca: proíbe-se a relação sexual com menor de quatorze anos. Foi este o manifesto propósito do legislador com a revogação do art. 224, este sim expresso sobre a presunção de violência.

Noutro giro, destaca-se a criança como objeto do desejo do adulto, conforme explica Hisgail (2007, p. 77), o desafio à lei por parte do pedófilo, confirma o reconhecimento do objeto interditado ao levá-lo à categoria de um objeto fetichístico. Ainda conforme Hisgail (2007, p. 81), a criança como objeto de desejo do adulto representa uma fantasia sexual de origem edípica, vivida em uma época em que a pulsão de domínio desempenha um papel preponderante na organização pré-genital, e acrescenta:

As crianças, como objeto de libido são presas indefesas e ficam passivas diante da ação predatória e ativa do pedófilo. Em termos etológicos, é como se fosse um predador em busca da caça. O indivíduo consegue se refugiar e agir de forma sorrateira, sem que, ao menos alguém desconfie dessas práticas (HISGAIL, 2007, p. 82).

Como se pode concluir, a criança, por sua fragilidade a ausência de resistência, torna-se uma espécie de presa diante do predador, para satisfazer os desejos sexuais do adulto. De acordo com Freud (1905, p. 84), o fato da existência de necessidades sexuais no homem e no animal expressa-se na biologia pelo pressuposto de uma “pulsão sexual”. Segue-se nisso a analogia com a pulsão de nutrição: a fome. Falta à linguagem vulgar, no caso da pulsão sexual, uma designação equivalente à palavra “fome”; a ciência vale-se, para isso, de “libido”. Não parece ser uma aproximação justa, mas para o pedófilo ou abusador sexual, a criança poderia ocupar o lugar do fetiche e, assim, na mente do indivíduo, não passaria de um mero fetichismo.

De acordo com Machado (2013, p. 97), o trauma sempre existirá e sua gravidade poderá depender, dentre outros fatores, da duração dos atos pedofílicos praticados contra a vítima. As consequências do abuso da criança, por um indivíduo são extremamente nocivas, principalmente quando o abusador é integrante da mesma família. Quando a criança nota algo estranho na relação que mantém com o abusador, a confiança que depositava naquela pessoa, torna-se comprometida. Aqui começa o sofrimento da vítima: o silêncio. O abuso pode acontecer apenas uma vez, mas pode também se perpetrar ao longo do tempo, sem que ninguém tome conhecimento.

De acordo com Machado (2013, p. 97), há o agravante de que a experiência do abuso criará um segredo a ser mantido entre a criança e o abusador, não podendo ser compartilhado com outras pessoas ou parentes, seja pela vergonha, seja pelo medo da reação dessas pessoas ou da credibilidade que irão ter naquilo que será relatado. Nas palavras de Rangel (2011, p. 94), a criança, ao ser tratada como objeto da libido do pedófilo, não mais será a mesma, vez que a imposição do desejo sexual que orienta a atuação do parafílico tem o condão de danificar o desenvolvimento normal da vítima, e ainda tece importante comentário sobre o cenário das ocorrências abusivas. Rangel, ainda, menciona que:

Quanto ao cenário em que os atos são praticados, a infância, de modo progressivo e contínuo, é destruída e os seus detentores passam a carregar estigmas que, além da carne, flagelam suas emoções, lançando à tona contrastes de impotência, em razão das condutas a que são submetidos, e culpa por não poderem ofertar resistência a ação predatória dos pedófilos e predadores sexuais (RANGEL, 2011 p. 97).

Ressalta-se que o abuso sexual sofrido gera uma série de impactos negativos na saúde psíquica e emocional da criança, podendo apresentar consequências no desenvolvimento cognitivo, emocional e comportamental. Para Portes e Senra (2015, p. 2), as alterações cognitivas podem incluir dificuldades de concentração, queda no rendimento e desempenho escolar, baixa atenção, crenças distorcidas e refúgio às fantasias. No que se refere ás alterações emocionais, há o sentimento de culpa, medo, tristeza, raiva, vergonha e irritabilidade. Entre as alterações comportamentais, por sua vez, encontram-se o isolamento social, comportamentos autodestrutivos, mudanças de sono e na alimentação, entre outros.

Inicialmente, é de bom tom compreender que, em muitos casos, a própria vítima, já não suportando a posição de objeto em relação ao seu algoz, não tendo com quem confidenciar em casa, procura, por exemplo, uma professora de sua confiança. Essa professora passa a ser responsável para procurar o Conselho Tutelar e relatar o ocorrido. Há casos em que a vítima procura diretamente o Conselho Tutelar para denunciar os abusos.

Entretanto, existem situações em que vítima consegue expor para alguém da família, caso em que, o representante legal se dirige diretamente à autoridade policial, ou seja, há várias formas para denunciar os abusos sofridos. A partir desse registro, um representante do Conselho procura recolher o máximo de informações, tomando a termo o depoimento das pessoas que entender necessárias. Vale destacar que geralmente os casos de abuso sexual chegam primeiramente aos

Conselhos Tutelares, que repassam a denúncia para o judiciário. Explica Oliveira e Sei (2014, p. 10), o Conselho Tutelar não é uma entidade alternativa, mas sim um órgão obrigatório nos municípios, o qual tem como dever proteger os direitos das crianças e adolescentes. Após esta denúncia, é instaurado o Inquérito Policial e a criança é levada para o Instituto Médico Legal para avaliação ginecológica. Posteriormente, o caso é encaminhado ao Ministério Público e para a Vara da Infância e Juventude a qual toma os procedimentos cabíveis, como o afastamento do agressor e o acionamento da equipe técnica para um exame pericial, o qual servirá como instrumento auxiliar para o juiz.

Quando o estupro de vulnerável ocorre em âmbito familiar, ainda em sede preliminar de investigações, a Polícia Civil ao registrar os primeiros depoimentos, mesmo que não se tenha ouvido o suposto autor dos fatos, encaminha, imediatamente, o registro para o Ministério Público que, por sua vez, ao analisar os depoimentos, pode ou não requerer as medidas protetivas. Verificada a urgência e presentes os requisitos para concessão da cautelar, o Ministério Público faz sua manifestação pelo deferimento da medida, encaminhando o pedido ao juízo responsável.

Para o deferimento da medida cautelar, é necessário que haja dois fatores principais, o fumus commissi delicti e o periculum in mora. Nos ensinamentos de Gomes (2017, s.p.), o fumus commissi delicti (fumaça do cometimento do delito) é a comprovação da existência de um crime e indícios suficientes de autoria. É a fumaça da prática de um fato punível. A prova, no limiar da ação penal, pode ser entendida como grande aproximação à probabilidade da ocorrência do delito, ela não precisa ser exaustiva. Quanto à autoria são suficientes indícios para a presença de tal instituto.

A existência do crime requer elementos mais concretos para sua afirmação, enquanto a autoria trabalha com a suficiência de indícios. Já o periculum in mora (perigo na demora), conforme preleciona Bezerra (2016, s. p.) constitui-se no mais importante dos requisitos indispensáveis para a concessão de medidas liminares. Deve-se vislumbrar o perigo de dano próximo ou iminente que se relaciona com uma lesão que provavelmente deva ocorrer antes da solução definitiva ou de mérito.

Ao analisar os registros colhidos em sede policial e a manifestação do Parquet, o Juiz observará se há os requisitos mínimos para o deferimento da cautelar, quais sejam o fumus commissi delicti e o periculum in mora, e se necessário, determinará, a depender do caso concreto: 1) Afastamento do Lar do suposto autor dos fatos; 2) Proibição de se aproximar da vítima, de seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação, fixando distância mínima; 3) Proibição de ingresso na residência, domicílio ou local de convivência com a vítima e 4) Suspensão de visitas paternais ou maternais, a depender do caso, ao(s) filho(s) até o deslinde dos autos principais, onde será dado ao ainda indiciado, o direito do contraditório e ampla defesa, tudo para dar à vítima, a máxima segurança, visando a resguardá-la de ser novamente exposta, tudo conforme previsto no artigo 22, incisos II, III, "a" e “b”, e IV, da Lei 11.340/2006 (BRASIL, 2006).

Como se pode ver, o fundamento legal para deferimento das medidas protetivas advém da Lei 11.340/06, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Leciona Gonçalves (2012, s.p.), a possibilidade de suspensão do direito de visitas do pai à criança, bem como de seu afastamento do lar, de proibição de contato ou de frequência aos locais em que esteja a criança, logo após a notícia sobre a ocorrência do crime, são ferramentas extremamente eficazes para que as vítimas crianças não fiquem mais sujeitas à situação de risco em que se encontravam até então. Isso para não deixar de mencionar o caráter programático da Lei Maria da Penha no que se refere à criação de políticas públicas para a proteção da mulher, no qual está abrangida também a menina.

Quanto às vítimas do gênero masculino, Gonçalves (2012, s.p.), acredita que a lei deveria ser mais abrangente, sendo essencial a existência de mecanismos idênticos para proteger também os meninos vitimizados. No mais, entendendo que a atenção do legislador, na elaboração da Lei Maria da Penha, não era voltada às crianças e aos adolescentes, mas sim à mulher, como gênero. Menciona, ainda, que cabe ao juiz corrigir tal questão, interpretando a lei conforme a Constituição Federal, que consagra o princípio da igualdade como um dos direitos fundamentais (GONÇALVES, 2012).

Outro aspecto merecedor de nota refere-se ao fato de uma gravidez resultante de abusos sexuais. Pela legislação pátria, o aborto é crime. Porém, o artigo 128, inciso II do Código Penal prevê que não se pune o aborto praticado por médico: se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (BRASIL, 1940). Esse tipo é conhecido pela doutrina como Aborto Sentimental.

Nos ensinamentos de Cunha (2016, p. 104), o motivo consiste em que nada justificaria impor-se à vítima do atentado sexual, ofendida em sua honra, uma maternidade que talvez lhe fosse odiosa e sempre relembraria o triste acontecimento de sua vida e desde que: “a) que o aborto seja praticado por médico; b) que a gravidez seja resultante de estupro e c) prévio consentimento da gestante ou seu representante legal” (CUNHA, 2016, p. 105-106).

Frisa-se, aqui, o consentimento, pois pela condição de criança ou adolescente, necessitará de consentimento de seu representante legal e, de preferência, que esse consentimento seja o mais formal possível, acompanhado de boletim de ocorrência, inclusive com testemunhas, não sendo necessárias a sentença condenatória do crime sexual ou a autorização judicial.

                                       

2.  COMO DIAGNOSTICAR OS ABUSOS SEXUAIS INTRAFAMILIARES

Considerando a análise dos processos acima descritos, faz-se a pergunta: É possível diagnosticar os abusos sofridos pelas vítimas que se sentem ameaçadas e não comentam ou denunciam os abusos? Com base em informações de sites especializados e entrevistas com profissionais da área, Heloisa Mendonça publicou pela BBC Brasil uma espécie de guia, que pode ser capaz de identificar sinais de abusos sofridos pelas crianças. De acordo com Ribeiro (2017, s.p.), geralmente, não é um sinal só, mas um conjunto de indicadores. É importante ressaltar que a criança deve ser levada para avaliação de especialista caso apresente alguns dos sinais a seguir descritos: O primeiro sinal a ser observado é uma possível mudança no padrão de comportamento das crianças, pois esse é um fator facilmente perceptível, pois costuma ocorrer de maneira repentina e brusca, como por exemplo:

Se a criança nunca agiu de determinada forma e, de repente, passa a agir. Se começa a apresentar medos que não tinha antes - do escuro, de ficar sozinha ou perto de determinadas pessoas. Ou então mudanças extremas no humor: a criança era superextrovertida e passa a ser muito introvertida. Era super calma e passa a ser agressiva (RIBEIRO, 2017, s.p.).

Ainda segundo Ribeiro (2017, s.p.) a mudança de comportamento também pode se apresentar com relação a uma pessoa específica, o possível abusador. Como a maioria dos abusos acontece com pessoas da família, às vezes a criança apresenta rejeição a essa pessoa, fica em pânico quando está perto dela. E a família estranha: “Por que você não vai cumprimentar fulano”? Vá lá!. São formas que as crianças encontram para pedir socorro, e a família tem que tentar identificar isso”. Em outros casos, a rejeição não se dá em relação a uma pessoa específica, mas a uma atividade. A criança não quer ir a uma atividade extracurricular, visitar um parente ou vizinho ou mesmo voltar para casa depois da escola.

Outro diagnóstico está relacionado a proximidade excessiva, em que a criança pode demonstrar rejeição em relação ao abusador. É preciso usar o bom senso para identificar quando uma proximidade excessiva também pode ser um sinal. Se, ao chegar à casa de tios, por exemplo, a criança desaparece por horas brincando com um primo mais velho ou se é alvo de um interesse incomum de membros mais velhos da família em situações em que ficam sozinhos sem supervisão, é preciso estar atento ao que possa estar ocorrendo nessa relação. Como sabido, no Brasil, 95% dos casos desse tipo de violência contra menores são praticados por pessoas conhecidas das crianças, e em 65% deles há participação de pessoas do próprio grupo familiar.

As pessoas acham que o abusador será um desconhecido, que não faz parte dessa vida da criança. Mas é justamente o contrário, na grande maioria dos casos são pessoas próximas, por quem a criança tem um afeto. O abusador vai envolvendo a criança pra ganhar confiança e fazer com que ela não conte. (BRASIL, 2017, s.p.).

A violência sexual é muito frequente dentro de casa, ambiente em que a criança deveria se sentir protegida. É um espaço privado, de segredo familiar e é muito comum que aconteça e seja mantido em segredo. Outro sinal é a regressão, em que a criança recorre a comportamentos infantis, que já tinha abandonado, mas volta a apresentar de repente. Coisas simples, como fazer xixi na cama ou voltar a chupar o dedo ou ainda começar a chorar sem motivo aparente. Ribeiro, neste sentido, complementa:

É possível observar também as características de relacionamento social dessa criança. Se, de repente, ela passa a apresentar esses comportamentos infantis. Ou se ela passa a querer ficar isolada, não ficar perto dos amigos, não confiar em ninguém. Ou se fugir de qualquer contato físico. A criança e o adolescente sempre avisam, mas na maioria das vezes não de maneira verbal (RIBEIRO, 2017, s.p.).

Nesse caso, é importante procurar avaliação especializada que possa indicar se eventuais mudanças de comportamento são apenas parte do desenvolvimento da criança ou indicativos de vulnerabilidade. Outro sinal que demonstra que a criança pode estar sendo vítima de abuso é começar apresentar “segredos”. De acordo com Mendonça (2017, s.p.), para manter o silêncio da vítima, o abusador pode fazer ameaças de violência física e promover chantagens para não expor fotos ou segredos compartilhados pela vítima. É comum também que usem presentes, dinheiro ou outro tipo de benefício material para construir a relação com a vítima. É preciso também explicar para a criança que nenhum adulto ou criança mais velha deve manter segredos com ela que não possam ser compartilhados com adultos de confiança, como a mãe ou o pai.

Outro indicativo de que algo não vai bem é demonstrado pela alteração de hábitos repentinamente. Pode ser desde uma mudança na escola, como falta de concentração ou uma recusa a participar de atividades, até “mudanças na alimentação e no modo de se vestir. “Às vezes de repente a criança começa a ter uma aparência mais descuidada, não quer trocar de roupa. Outras passam a não comer direito. Ou passam a comer demais” (RIBEIRO, 2017, s.p.). A mudança na aparência pode ser também uma forma de proteção encontrada pela criança, como uma menina querer usar roupas de meninos, para não serem percebidas. Ribeiro (2017, s.p.) também menciona mudanças no padrão de sono da criança como indicativo de que algo não anda bem, quando por exemplo, a criança começa a sofrer com pesadelos frequentes, ou se tem medo de dormir ou medo de ficar sozinha.

Nas entrevistas realizadas com especialistas, Mendonça (2017, s.p.), também que questões envolvendo sexualidade também são indicativos, tendo, por exemplo, um desenho, uma brincadeira ou um comportamento mais envergonhado, que podem diagnosticar sinais de que a criança esteja passando por uma situação de abuso. Quando uma criança que, por exemplo, nunca falou de sexualidade começa a fazer desenhos em que aparecem genitais, isso pode ser um indicador. Pode vir em forma de brincadeira também, quando chama os amiguinhos para brincadeiras que têm algum cunho sexual ou algo do tipo, inclusive, podem reproduzir o comportamento do abusador em outras crianças.

Para Ribeiro (2017, s.p.), o alerta deve ser dado especialmente para crianças que, ainda novas, passam a apresentar um "interesse público" por questões sexuais. Quando ela, em vez de abraçar um familiar, dá beijo, acaricia onde não deveria, ou quando faz uma brincadeira muito para esse lado da sexualidade. Outro sinal é o uso de palavras diferentes das aprendidas em casa para se referir às partes íntimas também é motivo para se perguntar à criança onde ela aprendeu tal expressão.

Deve-se ficar atento também aos sinais mais óbvios de violência sexual em menores, naqueles casos que deixam marcas físicas que, inclusive, podem ser usadas como provas nos processos. “É interessante ficar atento também a possíveis traumatismos físicos, lesões que possam aparecer, roxos ou dores e inchaços nas regiões genitais" (RIBEIRO, 2017, s.p.). Isso sem falar dos casos em que a criança acaba contraindo doenças sexualmente transmissíveis. Nos casos mais absurdos, pode ocorrer a gravidez na adolescência, que é a maior prova de ter sido vítima de abuso.

De acordo com Melo (2015, s.p.), a suspeita de que uma criança possa estar sendo sexualmente abusada deve sempre ser investigada cuidadosamente, pois isto certamente vai afetar em muito a vida da própria criança e da família como um todo. Isso porque, frequentemente, o agressor é um membro da família ou responsável pela criança, alguém que ela conhece, no qual confia e com quem, muitas vezes, tem uma estreita relação afetiva.

Normalmente, este abuso fica cercado de um complô de silêncio, pois este é um ato que envolve medo, vergonha, culpa e desafia tabus culturais, a sexualidade, incluindo a da criança, e aspectos de interdependência.

O silêncio é uma tentativa de preservar a família, evitando se dar conta da contradição existente entre o papel de proteção esperado da família e a violência que nela se dá. Em muitos casos, o silêncio e a negação caminham juntos. Neste sentido, são descritos abaixo 17 (dezessete) comportamentos capazes de diagnosticar, que a criança já foi ou está sendo vítima de abuso sexual intrafamiliar:

1) Crianças extremamente submissas; 2) Crianças extremamente agressivas e antissociais; 3) Crianças pseudomaduras; 4) Crianças com brincadeiras sexuais persistentes, exageradas e inadequadas; 5) Crianças que frequentemente chegam muito cedo à escola e dela saem tarde (num esforço inútil de escapar da situação do lar); 6) Crianças com fraco ou nenhum relacionamento com seus pares e com imensa dificuldade de estabelecer vínculos de amizade e com falta de participação nas atividades escolares e sociais; 7) Crianças com dificuldade de concentração na escola; 8) Crianças com queda repentina no desempenho escolar; 9) Crianças com total falta de confiança nas pessoas, em especial nas pessoas com autoridade; 10) Crianças com medo de adultos do sexo oposto ao seu; 11) Crianças com comportamento aparentemente sedutor com pessoas adultas do sexo oposto ao seu; 12) Crianças que fogem de casa; 13) Crianças com sérias alterações do sono (como em geral os abusos são feitos na cama, se estabelece o medo de dormir e sofrer o ataque); 14) Crianças com depressão clínica; 15) Crianças com ideias suicidas; 16) Crianças com comportamentos de automutilação; 17) Crianças com imensos sentimentos de culpa em relação a tudo (MELO, 2015 s.p.).

Como visto, basta analisar o comportamento da criança, que se verá que ela emite sinais de alerta, quando está sendo abusada sexualmente. Prova disso está na análise do “Processo Nº 01”, em que a mãe contou que a “Vítima 03” ia sempre muito bem na escola, sendo excelente aluna, porém teve de levá-la ao médico, quando ela apresentou baixa no rendimento escolar e começou a fazer tratamento com medicação. No mesmo processo, declara a genitora, que ano de 2013, a “Vítima 03” começou a dizer que queria morrer, sendo constatado em seguida, que a menina não era mais virgem. Da mesma forma, faz-se necessário mencionar o “Processo Nº 03”, cujos depoimentos demonstram, que a vítima, com apenas 11 (onze) anos de idade, no primeiro evento de abuso, teve a iniciativa de evitar estar sozinha com o Tio, e na primeira oportunidade, relatou a suposta ocorrência à genitora dela.

Assevera Melo (2015, s.p.) que o abuso sexual incestuoso é bem mais profundo e traumático, pois de forma mais contundente ficam marcados o abandono e a traição, porque à criança foi negado um direito inerente: o amor e a confiança. As consequências disso são o emocional devastado, uma autoimagem destruída e uma profunda dificuldade em estabelecer relações de respeito, admiração e confiança no futuro com as pessoas. Considera ainda que, crianças mais velhas são menos facilmente abusadas, pois são mais fortes, maiores e podem revelar ao mundo tais abusos e que, pessoas que foram abusadas na infância chegam à idade adulta sem os benefícios da infância. Muitas meninas se tornam mulheres que acabam por repetir o padrão de suas mães, casando com homens violentos e abusivos e, em geral, se tornam pessoas cronicamente deprimidas.

Há de se destacar as estratégias do abuso sexual de crianças, que “podem ser divididas em cinco fases: 1) Fase do envolvimento; 2) Fase da interação sexual; 3) Fase do sigilo; 4) Fase da revelação e 5) Fase da repressão” (MELO, 2015, s.p.). Primeiro, o abusador, modo geral, faz com que a criança participe do abuso, fazendo-a acreditar que aquilo nada mais é do que um jogo divertido. Ele, frequentemente, sabe o que agrada as crianças e as recompensa ou suborna. Em muitos casos, o agressor abusa sexualmente da criança a fim de satisfazer necessidades não sexuais suas, tais como: desejo de sentir importante, poderoso, dominador, admirado e desejado.

Como já abordado, nos autos dos processos aqui estudados, na maioria das vezes, a criança guarda segredo dos abusos sofridos. E não sofre só durante o abuso. Sofre também com os artifícios estratégicos usados pelo abusador, quando:

1) Mencionando a irritação de outra pessoa (se você contar isso à mamãe, ela vai ficar muito irritada ou brava com você); 2) Mencionando a separação (se você contar isso para alguém vão te mandar embora de casa); 3) Mencionando o auto prejuízo (se você contar isso a alguém eu vou te matar) e 4) Mencionando fazer mal a alguém (se você contar isso eu mato a sua mãe) (MELO, 2015, s.p.).

Isto é, a criança é abusada física, psicológica e emocionalmente e por várias vezes, até que seja descoberto, e a descoberta nem sempre é possível, podendo se perpetrar ao longo de anos, como também constatado nos processos judiciais aqui analisados. A revelação do abuso pode acontecer acidental ou propositadamente. De uma forma ou de outra, representa o fim de um calvário para a vítima e uma possível punição para o agressor.  Alerta Melo (2015, s.p.) que as crianças abusadas sexualmente, em especial as mais indefesas, em razão da tenra idade, não entendem o que de verdade está acontecendo e ficam sem saber “como” reagir nem “se devem” reagir. Em geral, elas fingem ignorar o fato e sofrem, muitas vezes, anos caladas. E, quando o fato é revelado, muitas ainda terão de enfrentar o descrédito da própria família e da sociedade, o que as dilacera ainda mais por dentro.

O acompanhamento psicológico deve ser desenvolvido de acordo com as necessidades de cada criança, pois não é possível generalizar os efeitos do abuso sexual para todas as crianças, uma vez que a gravidade e a quantidade das consequências variam de caso a caso de acordo com a experiência vivida pela vítima. Para isso é necessário acolher e oferecer segurança e confiabilidade, para obtenção de sucesso no tratamento físico e emocional da vítima. Conforme Williams et all (2014, s.p.), deve-se proceder à escuta adequada utilizando estratégias para investigação da violência sexual infantil, com especial ênfase no Protocolo NICHD - National Institute of Child Health and Human Development (Instituto Nacional de Saúde Infantil e Desenvolvimento Humano), reconhecido pela literatura internacional especializada como um dos instrumentos mais adequados para a entrevista estruturada com crianças vítimas de violência.

Para isso, faz-se necessária a adoção de protocolos de entrevista forense que facilitem a coleta do relato da criança, minimizem a possibilidade de induções de falsos relatos e, ao mesmo tempo, protejam a criança contra revitimizações, por evitar que tenha que ser ouvida diversas vezes em função da qualidade questionável de algumas entrevistas. Ainda de acordo com Williams et all (2014, s.p.), no ano de 1996, pesquisadores do National Institute of Child Health and Human Development (Instituto Nacional da Saúde Infantil e Desenvolvimento Humano - NICHD) deram início a estudos realizados nos Estados Unidos para o desenvolvimento de entrevistas investigativas do abuso sexual infantil contando inicialmente com a participação de pesquisadores israelenses.

O protocolo de entrevista recebeu a mesma denominação do Instituto, ou seja, Protocolo de Entrevista Investigativa NICHD e está alicerçado na operacionalização das recomendações de pesquisadores para auxiliar nas investigações forenses ao conduzir as entrevistas com as crianças vítimas de abuso sexual. O protocolo tem sido replicado e validado em países como Estados Unidos da América, Suécia, Finlândia, Noruega, Canadá, Reino Unido e Israel, sendo observado que em mais de 40.000 entrevistas que o uso do protocolo melhorou drasticamente a qualidade da entrevista de investigação em diversos países. Os estudos realizados com o protocolo no campo forense ajudaram a gerar um consenso entre os profissionais envolvidos a respeito das competências e limitações das crianças. Assim há evidências claras de que o protocolo NICHD pode ser usado de forma produtiva em uma variedade de contextos culturais.

O protocolo NICHD tem como premissa realizar a investigação da suspeita de violência sexual infantil de forma estruturada abarcando todas as fases necessárias para uma entrevista investigativa. O protocolo está dividido em duas partes, a parte pré-substantiva e a parte substantiva. A parte pré-substantiva conta com algumas etapas:

1. Etapa introdutória, na qual o entrevistador se apresenta à criança e esclarece a tarefa que será realizada, ou seja, a necessidade de falar a verdade e descrever eventos em detalhes. Ainda nessa fase, o entrevistador explica as regras básicas e as expectativas, como por exemplo, de que a criança deve dizer que não se lembra de algum evento, que não sabe a resposta, que não entendeu a pergunta ou que corrija o entrevistador quando for apropriado;

2. Construção do vínculo, que compreende duas subdivisões: (a) criar um ambiente descontraído e de apoio para estabelecer o rapport entre a criança e o entrevistador; e (b) solicitar que a criança descreva experiências recentes e eventos neutros em detalhes. Nessa parte da entrevista, o objetivo da sessão é que a criança se familiarize com as questões abertas e com as técnicas que serão utilizadas na próxima etapa, definida como substantiva e descrita posteriormente (WILLIAMS et all, 2014, s.p.).

Ainda conforme William et all (2014, s.p.), em estudo recente realizado no estado americano de Utah, Pipe et all (2013) compararam casos de abuso sexual nos quais as entrevistas com as crianças ocorreram antes que o protocolo NI-CHD fosse adotado (350 casos) e depois que o protocolo foi adotado pelos entrevistadores (410 casos), para verificar se houve mudanças nos resultados de casos suspeitos no que diz respeito à instauração de processos e condenações. Os autores verificaram que, após a introdução do uso do protocolo nas entrevistas investigativas, houve uma tendência para que um número menor de casos suspeitos fosse a julgamento, sendo arquivados na fase de investigação, com a rejeição de falsos relatos.

Adicionalmente, observou-se uma tendência de que a maioria dos casos que ia a julgamento resultasse em condenação do acusado, com a melhoria da qualidade da prova coletada pela entrevista. Os autores concluíram que o uso do protocolo leva à maior qualidade nas entrevistas forenses, o que é de máxima importância para a preservação dos direitos, tanto das vítimas quanto dos suspeitos.

O protocolo NICHD foi adaptado para o contexto de Portugal e, atualmente, encontra-se em validação no Brasil por meio de pesquisas realizadas em três universidades distintas (Universidade Federal de São Carlos [UFSCar]; Universidade Tuiutí do Paraná [UTP] e Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul [PUCRS]), localizadas em três Estados brasileiros (São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul).

Nas considerações finais de Williams et all (2014, s.p.), as pesquisas que estão se iniciando no Brasil com o protocolo NICHD poderão fornecer ao sistema de justiça brasileiro um instrumento adequado à entrevista com crianças em casos suspeitos de abuso sexual, garantindo uma maior eficácia e robustez da prova testemunhal. Por sua vez, espera-se subsidiar particularmente o psicólogo que atua em Delegacias, em perícias ou em Varas de Família e Varas da Infância e da Juventude em sua prática, fornecendo-lhe mais segurança e eficácia na entrevista, minimizando a possibilidade de contaminação do relato da criança e aumentando o seu contributo na responsabilização do agressor.

Nesta senda, Oliveira e Sei (2014, p. 11) mencionam uma alternativa que vem sendo utilizada desde 2004, quando foi implantada pelo Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre-RS, que é o “Depoimento Sem Dano”. Neste procedimento, conecta-se a sala de entrevista por vídeo com a sala de audiência, onde estão magistrado, promotor, advogados e réu. O vídeo é gravado no computador e atrelado aos autos como prova do processo, e desta forma a criança é poupada de relatar repetidas vezes para diversos profissionais a violência sofrida.

O objetivo do projeto é proteger a criança e respeitá-la durante a inquirição e melhorar a produção da prova para entendimento do juiz. O técnico entrevistador é normalmente uma psicóloga ou uma assistente social, a qual deve ter conhecimento sobre o processo em pauta e, a partir daí, estabelecer perguntas pertinentes, de preferência abertas, para evitar a indução de respostas. Neste procedimento, após o depoimento da criança, esta não é dispensada logo em seguida, mas permanece com uma figura de confiança da família e com o entrevistador, o qual desliga a gravação e realiza as intervenções e encaminhamentos necessários para o caso, bem como faz um acolhimento final, sempre visando o bem-estar da criança para que esta não se sinta como um mero objeto do processo judicial.

Conforme prevê a Recomendação n. 33/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), espaços adaptados para as entrevistas já foram instalados por 23 Tribunais de Justiça (85%). Além desse ato normativo, outras iniciativas direcionadas a crianças e adolescentes foram encampadas pelo CNJ, como a criação do Fórum Nacional da Infância e da Juventude (Foninj) por meio da Resolução n. 231/2016, e a determinação para que os tribunais criem as coordenadorias da infância e na juventude, estabelecida na Resolução n. 94/200. Na avaliação de Bentes (2016, s.p.), o CNJ tem dedicado especial atenção ao tratamento das garantias constitucionais de crianças e adolescentes. Na função de órgão central e de governança, tem a atribuição de definir políticas públicas de aprimoramento, implementação e sistematização dos incrementos em prol de um sistema jurídico prioritário, ágil e eficiente de proteção à infância e à juventude, o que culminou na criação do Foninj.

Segundo dados do CNJ, o país soma, em 2016, 124 (cento e vinte quatro) “Salas de Audiência Sem Dano”, também chamada de “Escuta Especial”. O total indica aumento de 285% desde 2011, quando balanço da ONG Childhood Brasil listou 40 unidades em 16 estados. A Recomendação n. 33/2010 do CNJ acelerou a expansão, ao ver de Itamar Gonçalves, gerente da ONG. “O número cresceu exponencialmente no ano seguinte à recomendação. Isso demonstra o quanto o CNJ foi significativo. Deve-se pontuar os dados do CNJ, que embora comemorem o aumento desse tipo de sala, ainda é quase nada ante as dimensões continentais do nosso país, que hoje conta com mais de 5.500 municípios.

 

3.  ABUSO SEXUAL INFANTIL E DESENHOS: O LÚDICO REVELANDO O TRAUMA, O MEDO, O TERROR DAS VÍTIMAS

Os desenhos fazem parte da infância, e são uma das brincadeiras preferidas das crianças durante boa parte das suas vidas. Através dos desenhos elas se divertem e esquecem-se do tempo, enquanto deixam a imaginação ganhar forma através do papel e do lápis. Por mais simples que pareçam ajudam no desenvolvimento da criança durante os primeiros anos de vida. Além disso, os desenhos podem ser uma grande fonte de informações sobre a criança. Os traços muitas vezes desconjuntados ou os bonecos sem forma podem trazer revelações chocantes sobre suas experiências.

Conforme descreve Carvalho (2013, s.p.), em uma exposição organizada na cidade de Palma de Mallorca, na Espanha, no ano de 2010, reuniu 18 (dezoito) desenhos de crianças e adolescentes com idades entre 5 a 15 anos, que em algum momento de suas vidas foram vítimas de abuso sexual. A exposição fez parte da campanha “Los monstruos de mi casa” (Os monstros da minha casa), realizada na ocasião do lançamento do documentário, que reúne testemunhas e experiências de pessoas que sofreram abusos na infância, mostrando a realidade de crianças vítimas de abuso físico e emocional, na Espanha. O vídeo é protagonizado por Carmen Artero, uma super mãe que acolhe essas crianças que estão com o emocional absolutamente abalado e com muito medo de voltar para seu próprio lar. As crianças têm acompanhamento psicológico e, durante as conversas, a forma menos constrangedora que elas encontram para expressar o que acontecia com elas é a partir do desenho. É muito difícil ver traços tão infantis descrevendo algo tão monstruoso, mas é a forma como as crianças expressam o mundo à sua volta. Abaixo serão expostos alguns três desenhos feitos por crianças vítimas de abuso sexual, que foram apresentados na exposição:

O primeiro conta a história de “Fernando”, um menino de 13 anos. Ele descreve os horrores do dos abusos a que fora submetido durante anos física e mentalmente pelo pai. Atualmente, o adolescente vive com a mãe, que conseguiu reconstruir sua vida longe do pai. No desenho, seu pai é representado por um demônio num bar sozinho, pois o resto das pessoas está com medo dele, e tem odor de álcool.

 

 

 

Alexsandro Sartoni Cottini, Sangella Furtado Teixeira, Oswaldo M. Ferreira e Tauã Lima Verdan Rangel

Alexsandro Sartoni Cottini: é bacharel em Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos – FAMESC;

Sangella Furtado Teixeira é Bacharela em Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos – FAMESC; Pós-Graduanda em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes UCAM

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Oswaldo Moreira Ferreira é Mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF; Pós-Graduando em Gestão Educacional pela Faculdade Metropolitana São Carlos; Especialista em Direito Civil pela Universidade Gama Filho; Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES; Servidor Público do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo; Professor do curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos – FAMESC; Professor do curso de Direito da Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim – FDCI.

Tauã Lima Verdan Rangel é Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF - Linha de Pesquisa: Conflitos Socioambientais, Rurais e Urbanos. Mestre em Ciências Jurídica e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especialista em Práticas Processuais Civil, Penal e Trabalhista pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Pesquisador e Autor de diversos artigos e ensaios na área do Direito.