Uma análise sobre o princípio da insignificância

INTRODUÇÃO

O inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. A Constituição não deixa dúvida quanto aos seus intentos: toda lesão ou ameaça a direito deve ser apreciada judicialmente. Porém, o que fazer quando a resposta estatal a uma conduta delituosa é notoriamente desproporcional em face do bem jurídico lesado? O princípio da insignificância nasceu para afastar a tipicidade material nos casos em que a lesão ao bem jurídico é mínima ou quase nula. 

A partir do proposto Claus Roxin e depois de alguns anos de produção doutrinária, os tribunais brasileiros passaram a aplicar o princípio da insignificância, tendo sido papel do Supremo Tribunal Federal estabelecer alguns vetores para aplicação deste. De forma geral, ela ocorre no sentido de buscar-se afastar o preceito material de crime, visto que a conduta não constituiu lesão relevante a algum bem jurídico, apesar da perfeita subsunção ao aspecto formal de crime. Também tocam o tema os conceitos de bagatela própria, bagatela imprópria e irrelevância penal do fato. Insignificância e bagatela seriam sinônimos? 

 

MATERIAIS E MÉTODOS

A confecção da presente exposição baseou-se em pesquisas realizadas em doutrinas, artigos científicos, jurisprudências, demais sítios eletrônicos especializados e bibliografias. Neste resumo optou-se pela utilização de método de abordagem dedutivo, ou seja, a proposta é partir de um campo amplo para o ponto específico da problemática.

 

DESENVOLVIMENTO

            De forma preliminar, faz-se necessário conceituar o princípio em questão. Estefam e Gonçalves (2012, p. 99) ao comentarem o Princípio da Insignificância indicam que “foi desenvolvido por Claus Roxin, como meio de aperfeiçoar a tese de Hans Welzel, segundo a qual lesões insignificantes deveriam ser excluídas da seara do Direito Penal”. Nesse sentido, Nucci (2017, p. 146) afirma que o princípio em questão “representa a desnecessidade de se aplicar sanção penal a uma infração considerada insignificante em relação à proporcionalidade da lesão ao bem jurídico tutelado pela lei penal”. Evidencia-se, nesse caso, o fundamento base da teoria de Roxin: o Estado não deve se ocupar de coisas pequenas.

Há uma expressão latina que é associada às bases mais antigas desse princípio, que seria: de minimis non curat praetor, ou seja, o juiz não deve cuidar de casos insignificantes.  No entanto, como observa Luz (2012, p. 205) “tratava-se, em outras palavras, de uma máxima genérica, a orientar a inteireza da atividade do pretor, e não de um princípio norteador próprio da aplicação do Direito Penal”.

Correlatamente, tem-se o princípio constitucional implícito da Intervenção Mínima do Estado, por meio do qual se entende que a lei penal e sua aplicação não devem ser vistas como primeira opção do legislador para resolução dos conflitos na sociedade, deve-se recorrer primeiro aos outros ramos do Direito. O Direito Penal deve ser ultima ratio, fazendo valer o respeito à lei buscando o equilíbrio social novamente. De posse desses conceitos primeiros, o conceito de pena ganha valoroso sentido nas palavras de Greco (2017, p.34) “a pena, portanto, é simplesmente o instrumento de coerção de que se vale o direito penal para a proteção dos bens, valores e interesses mais significativos da sociedade”. No intuito de trazer mais substância à discussão, rememoram-se as palavras de Nilo Batista (2007, p. 116) “a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através da cominação, aplicação e execução da pena”.

A ciência penal, como se tem hoje, consiste em um advento da racionalização da forma de aplicar o Direito Penal e suas sanções provenientes do movimento iluminista. Marcado por um período anterior, a Idade Média, em que a aplicação do Direito era feita de forma arbitrária, a partir do século XVIII desenvolveu-se uma série de conceitos e categorias que visavam uma correta racionalização e aplicação do direito. Esses conceitos e fundamentos são intitulados dogmática penal (LUZ, 2012).

Como resultado desse pensar a respeito da Ciência Penal, nos séculos que se seguiram o avanço se tornou relevante, tendo por resultado, por exemplo, a elaboração dos conceitos formal e material de crime, e as concepções quadripartida, tripartida e bipartida de crime. O pensamento dogmático penal só veio a ser questionado após o surgimento do funcionalismo penal (LUZ, 2012).

Consoante Luz (2012), a base do funcionalismo penal está em afirmar que, em alguns casos, “a mera aplicação formal de um dispositivo legal pode gerar resultados que consideramos inaceitáveis nos dias de hoje”. Nesse sentido, o furto de um palito de fósforo, que apesar de ser uma conduta perfeitamente subsumida a um tipo penal, pode gerar uma punição “flagrantemente desproporcional, apenas por ser esta a consequência direta da aplicação irrestrita do conceito de delito” (LUZ, 2012, p. 206).

O funcionalismo penal busca aplacar um pouco a severidade da aplicação indiscriminada da lei penal, visando coerência formal e lógica dentro do Sistema Penal (LUZ, 2012).  Trazendo desfecho para sua argumentação, Luz tenciona:

É neste plano que o princípio da insignificância adquire grande importância, passando a ser visto como uma ferramenta essencial ao raciocínio jurídico-penal. Por meio dele, o que se sustenta é que nem todo caso subsumível à lei deve ser considerado penalmente relevante. Isto é: em determinados casos, a aplicação da letra fria da lei penal pode não ser necessária, devendo, pelo contrário, ser afastada e, diante de determinadas circunstâncias do caso concreto, substituída por outras formas de regulação (LUZ, 2012, p. 207).

Note-se por meio de uma aplicação acertada do princípio da insignificância como medida descriminalizadora, tem-se a possibilidade de promover prestação jurisdicional de forma mais equânime, para todos aqueles casos de importância mínima ao Direito. A exemplo do que aponta Zorzetto (s.d., s.p.), em Direito Penal a atuação do estatal deve reger-se com base no princípio da intervenção mínima do Estado. A aplicação desse princípio certamente encontra bases sociais, visto ser o Estado a esfera de poder máximo, com a prerrogativa de impor sanções coercitivas. Mas, para além dessas questões, de acordo com Bitencourt (2012, apud ZORZETTO, s.d., s.p), a intervenção mínima vincula o pensamento de que “a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes”.

 

RESULTADO E DISCUSSÃO

O Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 84.412/SP, em 2004, estabeleceu alguns vetores para aplicação do princípio da insignificância. O relator do processo, Min. Celso de Melo, em seu voto afirmou que:

O princípio da insignificância – que considera necessária, na aferição do revelo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada [...] (STF, HC 84.412/SP).

Esses vetores passaram a ser utilizados para balizar a aplicação do princípio da insignificância, tanto na Corte do STF como em demais órgãos do judiciário. Insta salientar que no mesmo habeas corpus o relator advertiu que tal princípio não seria aplicado ao delito de tráfico. No voto em comento, o Min. Celso de Melo ainda cita o julgamento no Superior Tribunal de Justiça do HC 23.904/SP, cujo relator era o Min. Paulo Medina, em que estava sob discussão o furto de R$ 0,15 (quinze centavos), para reafirmar que o Direito Penal não deve tutelar questões que não gerem considerável ofensa ao patrimônio jurídico.

À essa altura faz-se imperativa a abordagem e elucidação dos termos “princípio da insignificância”, “irrelevância penal do fato”, “princípio da bagatela”, “bagatelar próprio” e “bagatelar impróprio”. Gomes (2013), citado por Guerra (2015, p. 6), faz uma distinção entre os princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato, qual seja:

Os princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato, a propósito, não ocupam a mesma posição topográfica dentro do Direito Penal: o primeiro é causa de exclusão da tipicidade material do fato (ou porque a conduta não é juridicamente desaprovada ou porque há o desvalor do resultado jurídico); o princípio da irrelevância penal do fato é causa excludente da punição concreta do fato, ou seja, de dispensa da pena (em razão da sua desnecessidade no caso concreto). Um afeta a tipicidade penal (mais precisamente, a tipicidade material); o outro diz respeito à (desnecessidade de) punição concreta do fato. O princípio da insignificância tem incidência na teoria do delito (aliás, afasta a tipicidade material e, em consequência, o próprio crime). O outro pertence à teoria da pena (tem pertinência no momento da aplicação concreta da pena). O primeiro correlaciona-se com a chamada infração bagatelar própria; o segundo corresponde à infração bagatelar imprópria. O primeiro tem como critério fundante o desvalor do resultado e/ou da conduta (ou seja: circunstâncias do próprio fato), o segundo exige, sobretudo, desvalor ínfimo da culpabilidade (da reprovação), assim como o concurso de uma série de requisitos post factum que conduzem ao reconhecimento da desnecessidade da pena no caso concreto (GOMES, 2013 apud GUERRA, 2015, p. 6).

            Segundo Gomes (2013), o princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade material do fato, seria a infração bagatelar própria, aquela que tem como critério essencial o desvalor do resultado e/ou da conduta. Doutra sorte, o princípio da irrelevância penal do fato seria causa excludente da punição concreta do fato, se caracterizaria na dispensa da pena frente a desnecessidade desta no caso concreto, seria o bagatelar impróprio. Em outro texto, ao tratar especificamente da bagatela imprópria Gomes (s.d., s.p.) defende que “o fato nasce relevante para o direito penal, mas no momento da sentença o juiz entende que a aplicação da pena torna-se desnecessária”.  Guerra (s.d., s.p.) indica que os que defendem a aplicação do princípio da irrelevância penal do fato se baseiam no artigo 59 do Código Penal e inclui entre esses Gomes.

Todavia, o princípio do bagatelar impróprio ou irrelevância penal do fato não encontra respaldo jurisprudencial, tampouco é entendimento majoritário dentro da doutrina penalista. Nucci, citado por Guerra,

No entanto, afirmar que "bagatela imprópria" seria a desnecessidade de aplicação da pena, porque o autor não merece, embora tenha havido crime, fere o princípio da legalidade e, por via de consequência, é inconstitucional. No Brasil, os tipos penais incriminadores possuem sempre "pena mínima", que precisa ser aplicada quando houver crime (fato típico, ilícito e culpável). Excepcionalmente, previsto em lei, há viabilidade de aplicação do perdão judicial, fruto de política criminal do Estado. Inexiste outra forma para o juiz, por sua conta, deliberar não ser cabível a pena. Eis a legalidade (NUCCI, 2015 apud GUERRA, 2015, p. 7).

            Para Nucci (2015), em obediência ao princípio da legalidade não há bagatela imprópria. Em que pese a argumentação apresentada por Gomes quanto ao respaldo legal que a bagatela imprópria teria por meio do artigo 59 do Código Penal, Nucci (2015) entende que a pena só pode deixar de ser aplicada se houver expressa previsão legal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado brasileiro é um Estado Democrático de Direito. Isso implica, entre outros fatores, na observância dos fundamentos, princípios e preceitos estabelecidos constitucionalmente. Dentre esses podemos citar o princípio constitucional implícito da Intervenção Mínima do Estado, por meio do qual se entende que a lei penal deve ser ultima ratio na resolução de conflitos sociais.

É perceptível o papel Direito Penal na proteção de bens jurídicos importantes para a sociedade, assim buscando através da imposição de pena proteger todos os bens mais caros ao corpo social. Desta feita, por meio do funcionalismo penal, através do trabalho de Claus Roxin, surgiu o princípio da insignificância, política descriminalizadora aplicável àquelas condutas que não representaram, ao fim e ao cabo, grande dano ao paciente.

Há de se falar que o Supremo Tribunal Federal, no ano de 2004 lançou algumas diretrizes para a aplicação do princípio em questão. Valorou-se a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Por fim, cumpre dizer que o princípio da insignificância é comumente tratado como sinônimo de princípio da bagatela, todavia essa expressão merece certo cuidado. Doutrinariamente a insignificância é sinônimo de bagatelar próprio, e essa posição é majoritária. Doutra sorte, há o princípio da irrelevância penal do fato, que é sinônimo de bagatelar impróprio. Porém, boa parte da doutrina ainda tem resistência em aceitar a denominação de bagatelar impróprio, por entender que essa denominação seria inconstitucional.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em 30 abr. 2018.

_______. Supremo Tribunal Federal. HC 84.412/SP. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79595> Acesso em 07 abr. 2018.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro, 11. ed. Rio de Janeiro: Revan. 2007.

ESTEFAM, André. GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2012.

GOMES, Luiz Flávio. Bagatela imprópria não pode ser ignorada nem refutada. Disponível em . Acesso em 15 mai. 2018.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. v. 1. 19. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017.

GUERRA, Renata Guimarães. A infração bagatelar imprópria no âmbito da Lei Maria da Penha – a análise da desnecessidade da pena nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em < http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/2semestre2015/pdf/RenataGuimaraesGuerra.pdf>. Acesso em 15 mai. 2018.

LUZ, Yuri Corrêa. Princípio da insignificância em matéria penal: entre a aceitação e a ampla aplicação problemática. In: Revista Direito GC, São Paulo, n. 8, v. 1, p. 203-234, jan.-jun. 2012.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte geral: arts. 1º ao 120 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

ZORZETTO, Pedro Furian. O princípio da insignificância e o STF. In: Revista Jus Navigandi, Teresina, a. 19, n. 4.014, 28 jun. 2014. Disponível em . Acesso em 10 abr. 2018.

Data da conclusão/última revisão: 20/5/2018

 

 

 

Moysés da Cruz Netto e Tauã Lima Verdan Rangel

Moysés da Cruz Netto: Graduando em Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos FAMESC campus Bom Jesus do Itabapoana.

Tauã Lima Verdan Rangel: Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF - Linha de Pesquisa: Conflitos Socioambientais, Rurais e Urbanos. Mestre em Ciências Jurídica e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2013-2015). Especialista Lato Sensu em Direito Administrativo pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018). Especialista Lato Sensu em Direito Ambiental pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018). Especialista Lato Sensu em Direito de Família pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018). Especialista Lato Sensu em Práticas Processuais Civil, Penal e Trabalhista pelo Centro Universitário São Camilo-ES (2014-2015).