Estupro de vulnerável: a palavra da vítima e os riscos da condenação

Resumo: O presente artigo tem por objetivo discorrer acerca do tema: “Estupro de vulnerável: a palavra da vítima e os riscos da condenação”. O crime de estupro praticado contra vulneráveis está previsto no artigo 217-A do Código Penal, no livro que trata dos crimes contra a dignidade sexual da vítima. Em razão da repulsa social ao ato lascivo sem consentimento praticado, principalmente, contra vulneráveis, o delito foi incluído ao rol de crimes hediondos. Desta forma, pode-se afirmar que essa atenção dispensada sobre crimes que atingem a dignidade sexual da vítima é um enorme avanço constitucional. Ocorre que, são de difícil comprovação, pois o ato em si, engloba além da conjunção carnal quaisquer atos libidinosos que por vezes não deixam vestígios, sendo, portanto, um desafio para a aplicabilidade e efetividade do direito penal.

Palavras-chave: Estupro. Vulnerável. Provas. Vítima. Condenação.

VULNERABLE RAPE: the word of the victim and the risks of condemnation

Abstract: This article aims to discuss the theme: “Vulnerable rape: the victims word and the risks of conviction”. The crime of rape against the vulnerable is provided for in Article 217-A of the Penal Code, in the book dealing with crimes against the sexual dignity of the victim. Due to the social revulsion of the lascivious act without consent, mainly against vulnerable persons, the crime was included in the list of heinous crimes. Thus, it can be stated that this attention given to crimes that reach the sexual dignity of the victim is a huge constitutional advance. It turns out that they are difficult to prove, because the act itself encompasses beyond the carnal conjunction any libidinous acts that sometimes leave no trace, thus being a challenge to the applicability and effectiveness of criminal law.

Keywords:

 Rape. Vulnerable. Evidences. Victim. Conviction.

 

INTRODUÇÃO

Com a vigência do Código Penal brasileiro de 1940, os crimes contra a dignidade sexual eram dispostos como crimes contra os costumes. Em destaque, pode-se citar o delito de estupro, o qual era previsto no artigo 224 do referido códex. Na hipótese, era necessário preencher alguns requisitos para tipifica-lo, como por exemplo, ser praticado por homem (ofensor) contra mulher (ofendida).

À época, existiam duas correntes doutrinárias: uma que priorizava a presunção absoluta de violência nos casos de estupro e a outra a presunção relativa. Nesse caso, o posicionamento absolutista não permitia exceções à regra quando existia o ato sexual contra inimputáveis, fazendo-se necessário a condenação do acusado, fundamentada na simples execução do fator disposto no tipo penal. Por outro lado, a relativização da presunção de violência, possibilitava a flexibilização do julgador para analisar as peculiaridades do caso concreto.

Entretanto, em 2009 houve grandes mudanças no Código Penal, com a vigência da Lei n. 12.015/09. Salientando-se na oportunidade, a transformação significativa do crime de estupro de vulnerável que ganhou essa denominação após ser introduzido em tipo penal próprio no artigo 217-A do CP, o qual é responsável pela revogação do artigo 224.

Atualmente, o estupro de vulnerável é o crime sexual praticado com menor de 14 (quatorze) anos ou com uma pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento ou não pode oferecer resistência no momento da prática do ato sexual.

Contudo, mesmo após a inserção das modificações advindas da Lei infraconstitucional supracitada, a discussão acerca da violência presumida ser absoluta ou relativa se estende ao longo das décadas, dividindo opiniões dos mais renomados juristas do país.

Nesse viés, a divergência encontra-se mais aprofundada, sendo colocado em pauta no presente artigo além da análise da violência presumida ser absoluta ou relativa, será analisado também a palavra da vítima como elemento probatório e os riscos da condenação.

Portanto, será abordado posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários, a fim de obter resultados concretos sobre os reais riscos da condenação de um acusado nos casos de crime de estupro de vulnerável, bem como a importância da palavra da vítima como meio probatório. Enfatizando o fator cronológico de uma sociedade que vive em constante evolução, adequação e renovação do direito brasileiro, o qual se faz necessário uma mutação para tutelar o bem jurídico atual, a dignidade sexual.

 

1. CONCEITO DE “ESTUPRO DE VULNERÁVEL”

Estupro de vulnerável é um tipo penal criado pela inclusão da Lei 12.015/2009 ao Código Penal brasileiro. Esse termo serve para indicar crime cometido por qualquer pessoa contra sujeitos passivos específicos, elencados no artigo 217-A do CP, o qual dispõe:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: §1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (BRASIL, 1940).

De acordo com a legislação penal brasileira, os vulneráveis são os menores de 14 (catorze) anos, enfermos, doentes mentais ou pessoa que por qualquer outra circunstância não pode oferecer resistência.

O delito supracitado, abarca dois verbos: “ter e praticar”. Desse modo, é irrefutável o comando do artigo em comento, de que para cometer o crime de estupro de vulnerável não é necessário analisar pressupostos, como o uso da violência, pois não resta dúvida que a configuração do tipo penal se dá pela prática de conjunção carnal com vulnerável ou qualquer ato libidinoso, como por exemplo: sexo anal, oral, toques, apalpadas, beijos, etc., dispensando muitas vezes o ato sexual em si.

Nesse viés, o Superior Tribunal de Justiça tem o seguinte posicionamento:

STJ: “Para a consumação do crime de estupro de vulnerável, não é necessária a conjunção carnal propriamente dita, mas qualquer prática de ato libidinoso contra menor. Jurisprudência do STJ” (AgRg no AREsp 279878/MG, 5.ª T., rel. Campos Marques, 04.04.2013, v.u).

Ademais, no crime de estupro de vulnerável o bem jurídico tutelado é a dignidade sexual da vítima menor de quatorze anos ou com capacidade de discernimento diminuída.

 

2. A EVOLUÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO AO LONGO DA HISTÓRIA

O crime de estupro sofreu diversas mudanças em seu tipo penal e bem jurídico tutelado ao evoluir junto aos usos e costumes da sociedade. De acordo com Junia de Vilhena e Maria Helena Zamora, desde o antigo testamento até o feudalismo, entre o século V e XV, o estupro era tratado da seguinte forma:

Do Código judaico do Velho Testamento até o feudalismo, o estupro foi tratado, sobretudo, como um crime contra a propriedade – roubar ou raptar uma mulher de seus proprietários de direito, normalmente pai ou marido, destruiria o seu valor de propriedade, sobretudo no caso de virgens (VILHENA; ZAMORA apud MELO, p. 2, 2018).

Nesse sentido, o bem jurídico tutelado era a propriedade, as mulheres eram tratadas como objeto, moeda de troca e seu valor estava intrinsecamente ligado ao seu corpo casto, pois a mulher desonrada não possuía significação alguma.

Posteriormente, no século XVI, o delito de estupro foi alterado, sendo considerado violência sexual, capaz de usurpar a castidade e a virtude. No entanto, não desvincularam a imagem da mulher como propriedade pertencente ao homem. Desta forma, a lei ainda tratava o gênero feminino como domínio particular e proferia jurisprudência determinando que os casos de estupro deveriam ser resolvidos entre os homens envolvidos no caso concreto.

Ao longo das gerações, pode-se observar que o crime de estupro foi considerado um elemento perspicaz em guerras, capaz de descaracterizar povos, roubar-lhes suas identidades e humilhá-los ao violentar suas mulheres a ponto de força-las a terem filhos do agressor/dominador e, por consequência, suportar a destruição através de genocídio causado pela mestiçagem forçada.

Nos Estados Unidos, o crime de estupro chegou a ser considerado como ato revolucionário, já aqui no Brasil, as escritoras Junia de Vilhena e Maria Helena Zamora, aduzem que:

No Brasil, chamou-se romanticamente de “miscigenação” e de “mestiçagem” ao estupro sistemático de mulheres e meninas índias, negras e mestiças, iniciado a partir da chegada do invasor português e perpetuado por séculos de escravidão. A construção de uma ideia, imagem e discurso da sensualidade “natural” da brasileira morena prepara terreno para ataques de todo tipo contra elas, ainda mais quando são pobres e com menos acesso a direitos e ao sistema judicial (VILHENA; ZAMORA, p. 116, 2004).

Apesar de ser um delito que existe desde os primórdios, o crime contra a liberdade sexual, na atualidade, ainda assusta e aterroriza milhares de mulheres, até mesmo homens, que são vítimas diariamente dessa barbárie.

Ademais, em que pese ser uma prática recorrente os crimes sexuais, jamais foram considerados normais ou aceito pela sociedade, na medida em que excedia os limites determinados por cada época e legislação vigente. Desta forma, mesmo que não se entenda algumas práticas, deve-se respeitar as peculiaridades dos povos e sua cultura.

Quando os limites eram excedidos e desrespeitava-se as normas ao cometer o estupro, esse seria considerado intolerável e injustificável, recebendo penas severas, principalmente penas corporais e de morte. Ocorre que, por muito tempo considerou-se estupro, somente, a conjunção carnal forçada, tendo por agressor a figura do sexo masculino e vítima do sexo feminino. Portanto, de modo algum o homem poderia valer-se do polo passivo, muito menos, a mulher do polo ativo.

Desde os tempos remotos, as normas de cada época sempre condenaram a prática do estupro. Inclusive, já houve penas de apedrejamento até a morte, como a aplicação do Código de Hamurabi e a Lei de Moisés. Não obstante, só se protegia o sexo feminino, sobretudo as mulheres castas, pois as mulheres casadas, que já possuíam experiência sexual ou prostitutas não eram asseguradas por lei.

No período colonial, as mulheres, melhor dizer, as pré-adolescentes entre 12 (doze) e 13 (treze) anos, após a primeira menstruação já eram consideradas aptas para casar-se, mesmo não possuindo discernimento sobre a ocasião, sobretudo, no que diz respeito a noite de núpcias, na qual eram estupradas por seus maridos, somente, por serem consideradas propriedades.

O tipo penal que classifica o estupro como crime está presente no ordenamento jurídico pátrio desde o primeiro Código Penal Brasileiro, denominado Código Criminal de 1830, vigente na época do império, sendo fortemente influenciado pelo Direito Romano e pelo Direito Grego. Entretanto, nessa época a pena de morte foi banida do Brasil, punindo-se o delito supramencionado com outras penas admitidas.

Segundo o artigo 222 do Código Criminal de 1830, o crime de estupro era considerado:

Art. 222. Ter copula carnal por meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.

Penas – de prisão por treze annos, e de dotar a ofendida.     

Se a violentada fôr prostituta.

Penas – de prisão por um mez a dous anos (BRASIL, 1830).

Nesse sentido, nota-se inovação na legislação do período imperial ao incluir a prostituta ao rol de vítimas do crime de estupro, mas evidencia-se, ainda, o tratamento desigual entre mulheres, quando inserido no tipo penal a frase: “mulher honesta”, além da pena ser divergente quando o polo passivo for ocupado por prostituta, demonstrando-se que havia um julgamento quanto à vítima se a mesma poderia ter contribuído ao fato.

No que diz respeito ao crime de ato libidinoso, o artigo 223 do Código Criminal de 1830, determinava que:

Art. 223. Quando houver simples offensa pessoal para fim libidinoso, causando dôr, ou algum mal corpóreo a alguma mulher, sem que se verifique a copula carnal.

Penas – de prisão por um a seis mezes, e de multa correspondente à metade do tempo, além das que incorrer o réo pela ofensa (BRASIL, 1830).

           

Vale ressaltar, que nesse período havia uma maior proteção estatal às vítimas de estupro, punindo-se até os atos libidinosos. Acrescentando-se ainda, uma pena maior para crimes de estupro praticado contra menores de 17 (dezessete) anos, demonstrando-se proteção especial à essas mulheres.

Nessa esteira, desde à época imperial já era estabelecida uma idade mínima pelo Estado, para que o agressor fosse punido com mais rigor ao praticar estupro contra menores de dezessete anos, a fim de proteger uma determinada faixa-etária, proporcionando-se um paralelo com o estupro de vulnerável presente no Código Penal vigente.

Desta feita, observa-se a seguir, as disposições presentes nos artigos 224 e 225 do Código Criminal de 1830:

Art. 224. Seduzir mulher honesta, menor dezasete annos, e ter com ella copula carnal.

Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a seduzida, por um a tres annos, e de dotar a esta.

Art. 225. Não haverão as penas dos tres artigos antecedentes os réos, que casarem com as ofendidas (BRASIL, 1830).

 

Com a instauração da República, o Código Penal de 1890 inovou ao tratar dos direitos humanos de segunda geração, sobretudo os sociais, vigorosamente representado pelo direito à igualdade.

Nos artigos 268 e 269, a definição de estupro foi alterada, admitindo-se a conduta ser praticada por homem contra mulher virgem ou não, desde que fosse honesta. Entretanto, não se admitia punir como estupro a prática entre pessoas do mesmo sexo.

No artigo 267, havia tipificação do crime de estupro contra menores: “Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou fraude: Pena de prisão cellular por um a quatro anos” (BRASIL, 1890).

Com o advento do Código Penal de 1940, houve inovações quanto ao crime de estupro, sendo tipificado no artigo 213: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos” (BRASIL, 1940).

Nesse viés, o polo passivo para o crime de estupro era somente para mulheres e o polo ativo, apenas, para homens, quanto aos demais crimes sexuais eram punidos pelo artigo 214 que trata do atentado violento ao pudor. Acrescenta-se que, para aplicação da pena pelo ato sexual forçado, observava-se as características da mulher honesta e da mulher virgem, apesar de não ser explícito no tipo penal ainda havia esse julgamento.

É sabido que o Código Penal de 1940 é vigente no ordenamento jurídico pátrio. Entretanto, sofreu diversas alterações desde as inclusões trazidas pela Lei n. 12.015/2009.

A priori, cabe ressaltar a decisão esplêndida de tratar do crime de estupro como crime contra a dignidade sexual, excluindo-se a ideia de crime contra os costumes. O bem jurídico tutelado tornou-se, enaltecendo, a dignidade sexual da vítima, proporcionando um avanço histórico.

No artigo 213 do Código Penal, houve a unificação da conduta de conjunção carnal e dos atos libidinosos, os quais eram tratados anteriormente como estupro e atentado violento ao pudor em tipos penais distintos. Desta forma, quaisquer atos sexuais e para satisfazer a lascívia, sem consentimento, são considerados crime de estupro, tais como: sexo oral, coito anal, sexo sem penetração, apalpadas, determinados tipos de beijo.

Atualmente, o crime de estupro pode ser praticado por qualquer pessoa, ou seja, homens e mulheres podem figurar no polo ativo. No mesmo sentido, admite-se que não haja distinção de sexo no polo passivo dessa conduta delitiva, permitindo a criminalização do estupro em relações homossexuais.

O artigo 214 do Código Penal, o qual tratava do crime de atentado violento ao pudor foi revogado pela Lei 12.015/2009, pois com as mudanças introduzidas pelo novo texto, houve a unificação do artigo 213 e 214 do Código Penal, como exemplificado anteriormente.

Nesse novo paradigma, a prostituta obteve seus direitos fundamentais resguardados, sobretudo, o princípio da dignidade da pessoa humana, como qualquer outro cidadão, pois foi tratada de forma igualitária ao lhe ser permitido ser vítima de estupro, suportando o estuprador a mesma quantidade de pena que suportaria se estivesse cometido estupro contra uma mulher “honesta”.

Com a atualização legislativa, cabe a garota de programa, prostituta, escolher se deseja realizar sexo, atos libidinosos em geral, com qualquer pessoa que seja, até mesmo em seu local de trabalho. Inclusive, momento do ato se não lhe convier continuar a conduta, possui a prerrogativa de recusar-se a prosseguir ou impor limites sobre a ação.

A dignidade sexual de qualquer pessoa deve e será assegurada pelo Estado Democrático de Direito, sob a luz das vertentes da Lei 12.015/2009.

Mediante as alterações geradas ao Código Penal brasileiro, pela entrada em vigor da Lei supracitada, foi criado um novo tipo penal, um artigo próprio para punir e criminalizar o estupro de vulnerável praticado contra menores de 14 (quatorze) anos, deficientes mentais e enfermos sem capacidade de discernir sobre o ato sexual ou ter forças ou meio para repeli-lo.

Conforme disposto no artigo 217-A, estupro de vulnerável:

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. 

§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

§ 2o (VETADO)

§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.    

§ 4o Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime (BRASIL, 1940).

Insta salientar, que no estupro de vulnerável há uma característica peculiar que o difere do crime de estupro do artigo 213 do atual Código penal e de todos os códigos anteriores. A relação sexual mantida com vulneráveis, conforme artigo 217-A, CP, será punida com as penas previstas no tipo penal autonomamente de consentimento da vítima, bem como não será observado se a vítima possuía vida sexual ativa.

 

3. VULNERABILIDADE RELATIVA X ABSOLUTA

O artigo 217-A, § 5º do Código Penal, disciplina que para se caracterizar o crime de estupro de vulnerável, independe a vítima consentir a ação, tampouco, se a mesma já mantinha relações sexuais.

No mesmo sentido, a súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça, reafirma que basta a prática da conjunção carnal ou atos libidinosos para configurar o crime de estupro de vulnerável, não sendo necessário investigar questões pessoais da vítima, como experiência sexual, relacionamento com o agressor ou seu consentimento sobre o ato.

A jurisprudência pátria, através dos Tribunais superiores vem decidindo que sob a luz da Lei 12.015/2009, a presunção de vulnerabilidade do menor de quatorze anos é absoluta, pouco importando seu consentimento e seu relacionamento com o estuprador. Haja vista, que são assegurados os direitos das crianças e adolescentes de forma especial, pois, não possuem discernimento suficiente sobre a conduta típica.

Há casos de crianças molestadas por anos pelo mesmo agressor, sendo tratadas como se a conduta do estupro fosse normal, que o fato de usarem seus corpos fossem derivados, apenas, do amor e da paixão advinda do agressor. Desta forma, passam-se anos e por vezes adquirem um sentimento bom pela pessoa que lhe retira a inocência.

Com base em situações como essa é que parte da doutrina tem se posicionado a favor da vulnerabilidade absoluta. Cumpre destacar, o posicionamento de Mirabete e Fabbrini (2010, p. 409):

Diante da redação do art. 217-A, não há mais que se cogita de presunção relativa de violência, configurando-se o crime na conjunção carnal ou ato libidinoso praticados com menor de 14 anos, ainda quando constatado, no caso concreto, ter ele discernimento e experiência nas questões sexuais. É irrelevante também se o menor já foi corrompido ou exerce a prostituição, porque se tutela a dignidade sexual da pessoa independentemente de qualquer juízo moral.

O bem jurídico tutelado no crime de estupro é a dignidade sexual da vítima, bem como ocorre nos delitos praticados contra vulneráveis. O Estado deve garantir o mínimo existencial a todo indivíduo e essa garantia não decorre apenas de saúde, educação e segurança, importa cuidar do mínimo de dignidade que uma pessoa possa conduzir em seu corpo.

Nesse viés, é correto afirmar: “meu corpo, minha regra”, mas a Constituição Federal está acima das vontades individuais de cada cidadão. A carta magna existe, justamente, para resguardar direitos fundamentais disponíveis e indisponíveis, os quais nem em nosso estado mais insano podemos dispô-lo. Esse é o elemento chave para os adeptos da teoria absoluta da vulnerabilidade.

De outro modo, o jurista Rodrigo Moraes Sá, defende que não basta, apenas, analisar os elementos do crime, sendo necessário uma interpretação contextual de cada caso concreto, ignorando a literalidade da norma exposta no ordenamento jurídico, vejamos:

Entretanto, entendemos que à constatação da vulnerabilidade não bastam a mera comprovação da idade cronológica ou diagnóstico de doença mental. Caso contrário, ficaríamos atrelados a uma interpretação sistemática, em homenagem ao princípio constitucional penal da culpabilidade (art. 5º, LVII, da CF). A exigência da responsabilidade penal subjetiva, requisito imprescindível à observância do princípio da culpabilidade entendido lato sensu, afasta, na hipótese, o emprego manifesto da presunção jure et de jure. Assim, ainda que pratique conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso de gravidade equivalente com pessoa menor de 14 anos ou doente mental, é possível que não reste caracterizado o crime do art. 217-A (SÁ, 2014, p. 5).

A hermenêutica proposta pelo texto acima, requer uma análise completa das características individuais de cada vítima de estupro de vulnerável, pois há casos de adolescente menor de quatorze anos que se prostitui, bem como há relatos de pessoas com essa idade, que convivem maritalmente com indivíduo maior de dezoito anos, inclusive muitos já são pais.

Os doutrinadores que defendem essa discriminação do caso concreto, citam a segurança jurídica para proteção de direitos fundamentais, como por exemplo, a liberdade e a presunção de inocência.

Outrossim, cumpre citar que a norma penal engloba, além dos menores de quatorze anos, os doentes mentais, como vulneráveis e possíveis vítimas de estupro tipificado em uma classe especial. Nesse viés, nota-se que a relativização da conduta expressa no tipo penal é imprescindível nesses casos, pois nem todos os doentes mentais devem ser taxados como vulneráveis e sem discernimento, haja vista que o Brasil declarou legal a união entre pessoas com Síndrome de Down, por exemplo.

No mesmo sentido, o doutrinador Guilherme de Souza Nucci, dispõe:

Que a definição do patamar etário para a caracterização da vulnerabilidade é baseada numa ficção jurídica, que nem sempre encontrará respaldo na realidade do caso concreto, notadamente quando se leva em consideração o acentuado desenvolvimento dos meios de comunicação e a propagação de informações, que aceleram o desenvolvimento intelectual e capacidade cognitiva das crianças e adolescentes (NUCCI et.al., 2010, p. 77).

Em contradição ao posicionamento do STF, Nucci entende que é indispensável a análise aos elementos concretos de cada caso, pois com a evolução social e tecnológica houve um avanço mundial em todos os sentidos. Inclusive, as crianças e adolescentes estão atingindo a maturidade precocemente e por consequência agem como adultos.

Discordando da relativização da vulnerabilidade, Luiz Regis Prado dispõe:

Configura o delito em análise a conduta de ter conjunção carnal ou praticar qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 (catorze) anos, ainda que a vítima tenha consentido no ato, pois a lei ao adotar o critério cronológico acaba por presumir iuris et de iuris, pela razão biológica da idade, que o menor carece de capacidade e discernimento para compreender o significado do ato sexual. Daí negar-se existência válida a seu consentimento, não tendo ele qualquer relevância jurídica para fins de tipificação do delito (PRADO, 2010, p. 624).

Abordando-se de forma específica os estupros de menores de quatorze anos, que são os mais polêmicos da atualidade. O posicionamento majoritário é categórico em dispor que o guardião da constituição é o responsável por resguardar os princípios fundamentais, nesse caso da dignidade sexual da vítima, não importando o consentimento, nem a sua experiência sexual, haja vista que sua vulnerabilidade se encontra no vício de consentimento, quando se entende que a faixa etária é de certa forma um limite imposto pelo Estado para resguardar pessoas que não possuem discernimento sobre seus atos.

Coadunando com o posicionamento anterior, Luiz Regis Prado (2010, p. 624) alega que: “a vulnerabilidade, seja em razão da idade, seja em razão de estado ou condição da pessoa, diz respeito a sua capacidade de reagir a intervenções de terceiros quando no exercício de sua sexualidade”.

Portanto, a vulnerabilidade pode ser relativa ou absoluta, há teses jurídicas capazes de sustentar os dois posicionamentos. Entretanto, a corrente majoritária, a qual vem sendo adotada pelos Tribunais Superiores é a presunção juri et juri, vulnerabilidade absoluta, ocasião em que deve ser analisado, apenas, o vício de consentimento em razão da incapacidade da vítima.

 

4. DA POSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DA TIPICIDADE: ERRO DE TIPO E ERRO DE PROIBIÇÃO

O erro é a falsa percepção da realidade, tanto fática quanto jurídica. No Direito Penal brasileiro, esse instituto, em algumas circunstâncias, é considerado como causa excludente de culpabilidade. Isto quer dizer que, ao analisar o caso concreto o juiz pode acolher a tese de erro e absolver o réu.

O erro de tipo, especificamente essa modalidade do erro, é um dos únicos modos de afastar a condenação por estupro de vulnerável, tendo em vista que no delito em apreço se o agente provar que desconhecia o fato da vítima ser menor de 14 (quatorze anos), por tratar-se de infanto-juvenil com desenvolvimento físico precoce, aparentando ter mais idade do que realmente possui, pode ser absolvido, pois desconhecia elemento inerente ao tipo penal.

Nesse viés, o doutrinador Guilherme de Souza Nucci, afirma:

Em todos os casos (menor de 14 anos, enfermo ou deficiente mental, sem discernimento, ou acometido de outra causa de redução da capacidade de resistência), é fundamental a abrangência do dolo do agente. O autor do crime precisa ter ciência de que a relação sexual se dá com pessoa em qualquer das situações descritas no art. 217-A. Se tal não se der, ocorre erro de tipo, afastando-se o dolo e não mais sendo possível a punição, visto inexistir a forma culposa (NUCCI, 2014, p.72).

Se houvesse na conduta típica, supramencionada, a modalidade culposa, mesmo agindo em razão do erro de tipo, o dolo seria excluído, mas o autor do delito responderia por culpa. Entretanto, como no crime de estupro de vulnerável não admite-se modalidade culposa, a conduta praticada por agente que não possuía meios para saber que tratava-se de menor de quatorze anos, ou seja, sem dolo é considerada atípica, não punível.

No mesmo sentido, Nucci, dispõe:

Nos relacionamentos sexuais havidos com consentimento entre os envolvidos não é raro encontrar o problema do erro de tipo. Muitas (supostas) vítimas, mesmo possuindo idade inferior a 14 anos, apresentam-se como maiores de 14. Especialmente, quando se trata de pessoa prostituída, pode carregar documento de identificação falso, produz-se (vestimenta, maquiagem etc.) como adolescente de 15, 16, 17 e até mesmo maior que 18. Dependendo da compleição física, torna-se crível para o agente, que, então, tem o contato sexual. Diante disso, conforme o caso concreto, nos termos do art. 20 do Código Penal, inexistindo dolo, deve-se absolver o acusado (NUCCI, 2014, p.76).

Realizando uma análise da sociedade, percebe-se os impactos positivos e negativos ocasionados por uma evolução demasiada. Dentre os impactos negativos é possível encontrarmos crianças e adolescentes com vestes e comportamentos distintos de décadas atrás. Talvez seja pela velocidade da informação, pela perda dos costumes e pudores ou qualquer outro motivo trazido pela atualidade.

Ocorre que, com todas essas transformações sociais não é raro presenciarmos a ocorrência do erro de tipo em certos relacionamentos. Haja vista que, há elevado número de casos em que a suposta vítima se apresenta com maior de quatorze anos, vestindo-se e comportando-se como adulto, sobretudo, pessoas prostituídas que possuem facilidade em portar documentos falsos.

Nesses casos, torna-se desproporcional a punição de alguém que foi induzido ao erro de tipo. Afinal, dependendo-se da forma física da suposta vítima, é bem provável para o agente que mantém relação sexual com esta que não trata-se de menor de quatorze anos.

Com base nas informações acima apresentadas e diante do caso concreto, o julgador possui o poder de analisar se há presença ou não de dolo, no sentido de que, provando-se a ausência de conduta dolosa, absolve-se o acusado.

Nessa esteira, o jurista Cézar Roberto Bitencourt, dispõe:

O erro de tipo essencial sempre exclui o dolo, permitindo, quando for o caso, a punição pelo crime culposo, uma vez que a culpabilidade permanece intacta. O erro de tipo inevitável exclui, portanto, a tipicidade, não por falta do tipo objetivo, mas por carência do tipo subjetivo. Assim, haverá a atipicidade, por exclusão do dolo, somente quando o erro for inevitável, mesmo que haja previsão de modalidade culposa (BITENCOURT, 2012, p.320).

Há diversos julgados que tratam da absolvição por erro de tipo, conforme artigo 20 do CP, tendo em vista que os tribunais superiores já pacificaram a jurisprudência no sentido de que, analisando o caso fático e o conjunto probatório, o juiz pode afastar o elemento subjetivo do crime que é o dolo e considerar a conduta atípica.

Insta salientar, que há outro tipo de erro capaz de excluir a tipicidade da conduta realizada por indivíduo que mantém relacionamento sexual ou amoroso com vulneráveis, descritos no artigo 217-A do Código Penal.

O erro de proibição ocorre quando o indivíduo não tem conhecimento sobre a ilicitude do fato. Desta forma, frequentemente temos notícias sobre uma pessoa que agiu de forma ilícita por desconhecimento da lei. Embora o artigo 21 do Código Penal afirmar que: “o desconhecimento da lei é inescusável”, o mesmo discorre que se o erro sobre a ilicitude do fato for inevitável, não haverá pena ao agente, na hipótese de ser erro evitável, ainda assim haverá atenuação da pena.

No caso do estupro de vulnerável, pode-se citar exemplos de indígenas ou pessoas que convivem com outra cultura, por exemplo, turistas e não possui conhecimento que qualquer ato sexual com menor de quatorze anos é considerado estupro de vulnerável.

Cabe ressaltar, que a vulnerabilidade não está intrinsecamente ligada, somente, a idade da vítima, devendo ser levado em consideração outras situações de vulnerabilidade, destacando-se o enfermo e o deficiente mental.

Nesse sentido, o erro de proibição pode ser tese de absolvição ao afastar a tipicidade da conduta daquele que se envolve sexualmente, até mesmo mantém relacionamento amoroso com possuidor de deficiência mental, como por exemplo os portadores de Síndrome de Down, sobretudo pelo fato de serem pessoas que necessitam de cuidados e são consideradas especiais.

O doutrinador Guilherme de Souza Nucci, se posicionou da seguinte maneira:

Aliás, nesse ponto, as medidas de divulgação contra a pedofilia têm servido de alerta. Porém, o relacionamento sexual consentido com enfermo ou deficiente mental, incluindo-se nesse cenário o retardado, desde que consentido, entre adultos, é questão problemática. Nem todo mundo tem exata noção da vedação posta em lei. O deficiente, em razão de síndrome de Down, por exemplo, apresenta retardamento mental e necessita de muitos cuidados durante a maior parte da vida. Estaria privado de ter relação sexual? Alguns chegam a conviver como companheiros, em união estável. O mesmo se diga de pessoa com deficiência mental que se una a outra, considerada normal. Dir-se-ia ter feito o tipo penal referência ao fato de o enfermo ou deficiente mental não possuir o necessário discernimento para a prática do ato. Em outros termos, então, a única interpretação que nos parece lógica e justa é conceber a possibilidade de divisão entre enfermos e deficientes mentais nesse campo. Há os que são completamente impossibilitados de apresentar consentimento válido no contexto sexual, de modo que a prática de qualquer ato libidinoso, em relação a eles, seria considerada violenta, logo ilícita, bem como existem os que apresentam deficiência mental, mas que não lhes retira o desejo sexual e a vontade de se unir a outra pessoa, buscando inclusive atenuar o seu sofrimento, procurando a cura (NUCCI, 2014, p.76).

Conclui-se, portanto, que cabe ao Juízo competente essa autonomia para decidir sobre o caso concreto, a fim de analisar cada situação e suas peculiaridades para determinar que é caso ou não do acolhimento da tese de erro de proibição para uma provável absolvição com base na atipicidade da conduta do agente.

 

5. DA IMPRESCRITIBILIDADE DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

O crime de estupro de vulnerável é um delito que possui atos executórios que jamais cessam de produzir resultados, são marcas que crianças e adolescentes carregarão ao longo de suas vidas.

Visando reforçar a afirmação supracitada, cita-se a introdução do crime de estupro de vulneráveis no rol presente na Lei n. 8.072/90, a qual abarca os crimes hediondos, de punição mais severa na penalidade pela sua natureza penal.

Ao se observar uma vítima de estupro, sobretudo o vulnerável, percebe-se que além da violência física existe a violência psicológica ocasionado pela dor, vergonha, humilhação, medo e outros sentimentos nocivos que refletem no futuro da vítima e são fatos difíceis de serem superados.

Outrossim, vale ressaltar que cada vítima comporta-se de maneira diferente ao passar pelo trauma de ser violentada por outra pessoa. Há casos em que a vítima após o estupro denúncia o autor do crime. Entretanto, existem vítimas que não possuem coragem, não se sentem confortáveis ou por algum motivo não estão preparadas para realizar a denúncia do mau praticado contra si.

É com base nas vítimas desencorajadas, assustadas pela agressão sexual sofrida que foi proposta a PEC 64/2016, a qual visa a imprescritibilidade nos casos de estupro. A proposta, se aprovada, irá alterar o artigo 5º da Constituição Federal.

A forma de contagem prescricional estabelecida no Código Penal, dispõe que deve ser observado a pena estabelecida em cada crime, ou seja, deve ser computada conforme o caso concreto. Destacando-se que, em casos de estupro de vulnerável, atualmente, o prazo começa a decorrer a partir da maioridade da vítima.

Com a proposta da Emenda Constitucional, modifica-se a cláusula pétrea da Constituição Federal e amplia-se o poder estatal punitivo. Por esta razão, a PEC 64/2016 que, após ser aprovada no plenário, está tramitando com destino à Câmara dos Deputados é alvo de críticas por alguns.

Os opositores à Emenda Constitucional que trata da imprescritibilidade do crime de estupro, afirmam que ao ser emendada a CF deve-se preservar os princípios constitucionais tanto da vítima quanto do agente infrator. Nesse diapasão, suscita-se a possibilidade de inconstitucionalidade no bojo da proposta.

No artigo 60, parágrafo 4§ da Constituição Federal, garante-se ao réu o direito de prescrição, impondo-se limites ao poder estatal e observando os princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

O jus puniendi deve enquadrar-se em parâmetros estabelecidos pelo constituinte originário, vez que alterar o texto constitucional pode implicar em diversas consequências ao acusado.

Nesse sentido, necessita-se um estudo aprofundado se a alteração proposta pelo poder reformador não atinge os princípios fundamentais com núcleo intangível e imutável.

 

6. ESTUPRO DE VULNERÁVEL: A PALAVRA DA VÍTIMA E OS RISCOS DA CONDENAÇÃO

Nos crimes de cunho sexual, em especial, o de estupro de vulnerável ocorre na maioria das vezes na clandestinidade, de forma oculta, de modo que impossibilita a presença de olheiros.

Em latim, há uma expressão: “solus cum sola in solitudine”, que significa “ele só com ela”, essa assertiva define com clareza o modus operandis da maioria dos crimes sexuais, os quais são praticados distante dos olhos alheios, num local isolado ou de uma forma que não levante quaisquer suspeitas, por vezes não deixando vestígios de que ocorreu o ilícito.

Desse modo, os crimes sexuais são difíceis de serem comprovados. Haja vista que, as provas são poucas para composição de uma análise acerca da culpabilidade do suposto agente infrator.

Importa dizer que, no estado democrático de direito, regido pela Constituição Federal de 1988, a qual tem por premissa resguardar os direitos e garantias fundamentais, a ausência de provas que ratificam a materialidade e autoria do crime obsta a condenação do acusado, absolvendo-o sumariamente. Ocasionando um caos entre a sociedade, a qual pugna vigorosamente pela efetividade penal da justiça brasileira, principalmente nos crimes de estupro, o qual possui a dignidade sexual como bem tutelado.

Conforme definição do crime de estupro supracitado, o delito contra a dignidade sexual da vítima consiste na conjunção carnal e/ou qualquer ato libidinoso. Desta forma, é plausível imaginarmos que com exame pericial realizado por médico competente é possível apontar uma violação do corpo da vítima em casos de estupro com cópula vagínica ou coito anal.

Entretanto, de acordo com a nova definição de estupro, é possível a vítima ser estuprada através apenas de atos libidinosos, o que tornaria o crime imperceptível através de exames e avaliações físicas.

Nessa esteira, há divergência entre os juristas que defendem a valoração da palavra da vítima como uma evolução preventiva e repressiva contra a prática do crime de estupro e os juristas que afirmam ser inconstitucional uma condenação baseada, apenas no depoimento da vítima, sobretudo quando se trata de vulnerável.

A inconstitucionalidade apontada, está pautada na análise literal do artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988).

Desse modo, cumpre esclarecer que o acusado possui um respaldo constitucional de não culpabilidade antes de decisão condenatória transitada em julgada. Ressaltando-se que a decisão condenatória transitada em julgado deve ser fundamentada pelo estado juiz, ocasião em que deve estar em consonância com as provas apresentadas durante a instrução processual, sem restar dúvidas sobre a culpabilidade do agente.

Haja vista que, ao restar dúvidas sobre a conduta delitiva do acusado, bem como faltar elementos probatórios para fundamentar uma condenação, deve o magistrado absolver o réu, com base no artigo 386 do Código de Processo Penal, conforme disposto abaixo:

Art. 386.  O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

(...)

II - não haver prova da existência do fato;

(...)

V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; 

(...) 

VII – não existir prova suficiente para a condenação (BRASIL, 1941).

Nesse viés, não há como evitar o conflito entre o princípio constitucional da presunção de inocência, descrito em cláusula pétrea da carta magna, bem como o dispositivo infraconstitucional supracitado com a valoração da palavra da vítima.

No ordenamento jurídico brasileiro, sabe-se que não há uma hierarquia entre as provas. As provas possuem o mesmo valor probatório, desde a pericial, testemunhal como documental. Entretanto, em crimes de cunho sexual, como o estupro que são executados na clandestinidade, longe de testemunhas e por vezes não deixa vestígios, o depoimento pessoal da vítima tem sido determinante para a condenação do acusado.

No entanto, cumpre analisar até que ponto a condenação baseada na palavra da vítima pode ser uma conquista no direito processual penal brasileiro, por proporcionar uma aplicação da pena em fatos que não comporta outro meio de prova ou uma injustiça contra as garantias do réu, fundamentado pela inconstitucionalidade.

Vale ressaltar que, a decisão pautada apenas no depoimento da vítima é frágil, podendo ser palco de condenações injustas. Haja vista que, que prova testemunhal é facilmente manipulada, gerando dúvidas, sobretudo, quando se trata de vítima vulnerável.

Por esta razão, o magistrado deve analisar cada caso concreto de forma minuciosa, para verificar a existência ou indícios de outras provas, pois quando resta só a palavra do ofendido versus do ofensor, devem ser confrontadas para livre convencimento do juiz.

Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci, em sua obra sobre os crimes sexuais contra a dignidade da vítima, dispõe que:

TJRS: “No caso concreto, há elementos de prova suficientes a fundamentar um juízo condenatório no que tange ao crime de estupro de vulnerável. A vítima, que contava com apenas 3 anos de idade à época dos fatos, relatou, através do método do depoimento sem dano, que o acusado fez ‘cocô e xixi’ em sua boca. O depoimento da vítima foi corroborado pelo testemunho de sua genitora, para quem ele contou detalhes acerca dos fatos, bem como pelo depoimento de seu genitor, restando claro que o acusado colocava o pênis na boca da vítima, vindo a ejacular. Soma-se a isso que a vítima apresentou sintomas e indícios compatíveis com a hipótese de abusos sexuais, situação que foi confirmada na avaliação psíquica realizada, bem como no parecer psicológico. Ademais, tratando-se de crime que, por sua própria natureza, é praticado fora das vistas de testemunhas, a palavra da vítima é de vital importância para a determinação da materialidade e da autoria do delito. Sentença absolutória reformada. Recurso provido” (Ap. 70058901505, 5.ª C.C., rel. Lizete Andreis Sebben, 14.05.2014) (NUCCI, 2014, p. 86).

Quando ocorre uma persecução penal de crimes sexuais, o julgador deve ficar atento aos detalhes, pois os sinais da violência podem ter desaparecido até a data da denúncia ou nunca ter existido elementos que comprovem a materialidade a autoria da ação delitiva. E são exatamente para esse tipo de crime que o valor probatório da palavra da vítima ganha maior relevância, apesar de ser vetado no nosso ordenamento jurídico a hierarquia entre as provas.

Ocorre que, diante de um crime tão cruel, o qual traz grande repulsa pela sociedade, a jurisprudência tem dado uma importância maior as palavras da vítima. Sendo analisado cada caso com suas peculiaridades e absolvendo por ausência de provas ou condenando com base, apenas na palavra da vítima.

A possibilidade da condenação penal, firmada apenas pela palavra da ofendida, pode ser um gatilho para condenações fundamentadas na ideologia de que o fim justifica os meios.

O crime de estupro de vulnerável é mais comum do que se imagina e a quantidade de vítimas que se calam são imensamente maiores do que as falsas vítimas, mesmo assim, não se deve correr o risco de condenar um inocente por caprichos da suposta vítima.

Por outro lado, o ordenamento jurídico não pode deixar desamparadas as vítimas de estupro de vulnerável, só porque não conseguiram reunir provas diversa do depoimento da ofendida contra seus agressores, haja vista que esse tipo de estupro ocorre geralmente nas escuras e são praticados na grande maioria por familiares ou por alguém que possui livre acesso ao ambiente da vítima.

Outrossim, os Tribunais Superiores estão adotando o seguinte posicionamento:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PALAVRA DA VÍTIMA. RELEVÂNCIA. ABSOLVIÇÃO OU DESCLASSIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. INCIDÊNCIA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O Tribunal estadual, ao analisar os elementos de prova constantes nos autos, entendeu pela ratificação da decisão de primeira instância que condenou o ora agravante pelo crime de estupro de vulnerável. 2. A pretensão de desconstituir o julgado por suposta contrariedade à lei federal, pugnando pela absolvição ou readequação típica da conduta, não encontra amparo na via eleita, dada a necessidade de revolvimento do material fático-probatório, que esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. 3. Este Sodalício há muito firmou jurisprudência no sentido de que, nos crimes contra a dignidade sexual, geralmente ocorridos na clandestinidade, a palavra da vítima adquire especial importância para o convencimento do magistrado acerca dos fatos. 4. Assim, a palavra da vítima mostra-se suficiente para amparar um decreto condenatório por delito contra a dignidade sexual, desde que harmônica e coerente com os demais elementos de prova carreados aos autos e não identificado, no caso concreto, o propósito de prejudicar o acusado com a falsa imputação de crime. 5. Agravo regimental improvido. (Acordão registrado sob o nº 1.211.243 – CE (2017/0311378-6), Quinta Câmara do Superior Tribunal de Justiça, Relator: Jorge Mussi. Julgado em 24/04/2018).

O que se pode afirmar sobre um processo apuratório do crime de estupro de vulnerável é que ele não é algo fácil nem para a vítima e nem para o acusado. Ao colher o depoimento da vítima, deve-se observar a veracidade relatada em seu testemunho, bem como os traumas ocasionados pela oitiva em juízo.

Nessa esteira, deve-se dar melhores contornos ao confronto entre a palavra da vítima e a do réu, que cumuladas com outros vestígios devem determinar a decisão judicial. O julgador deve ser livre para entender e julgar de acordo com as peculiaridades de cada caso, podendo convencer-se em casos semelhantes de modo diferente, haja vista que cada fato exprime um contexto diferente.

Portanto, insta salientar, que no processo penal brasileiro os direitos e garantias fundamentais da vítima e do réu, são resguardados na mesma equivalência. Evitando-se pré-julgamentos acerca da versão apresentada pela vítima, bem como da defesa apresentada pelo acusado. Sendo, inerente ao julgador analisar a situação fática no caso em concreto e, após reunir elementos que dão sustentabilidade a palavra da vítima, condenar ou absolver o suposto agressor, não só na prova testemunhal da ofendida, mas em diversas peculiaridades colhidas durante a instrução processual.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo apresentou um exposto minucioso acerca do objeto de estudo cerne em questão, visando analisar as implicações do estupro de vulnerável: a palavra da vítima e os riscos da condenação.

A priori, foi contextualizado a definição básica do termo “estupro de vulnerável”, o qual indica o crime de estupro praticado contra pessoas submetidas a condições diversas daquela permitida por lei, como é o caso de estupro cometido em face de menores de quatorze anos, enfermos ou doentes mentais que coloquem em dúvida sua capacidade de discernimento sobre o ato praticado.

No deslinde da pesquisa, restou abordado a trajetória histórica do crime de estupro, suas peculiaridades e evolução até a atualidade. Desta maneira, foi analisado os costumes de cada época, o tratamento diferenciado proposto as mulheres, bem como a diferenciação entre sujeito ativo e passivo ao longo dos anos, frisando-se o bem jurídico tutelado de cada momento do país.

Nesse viés, foi possível iniciar a discussão a respeito da vulnerabilidade dos sujeitos passivos no crime de estupro de vulnerável, apresentando-se o posicionamento defensor da vulnerabilidade relativa, os quais afirmam ser necessário um estudo em cada caso concreto para avaliar se a vítima era, de fato, vulnerável. Lad’outro, abordou-se a vulnerabilidade absoluta, a qual vem sendo entendimento majoritário os Tribunais Superiores, a qual enfatiza o vício de consentimento do menor de quatorze anos ou de enfermo e deficiente físico que não possui capacidade de discernimento, ressaltando-se a responsabilidade do Estado em assegurar a dignidade sexual das vítimas.

Após análise do conceito, história e espécie de vulnerabilidade, foi possível definir um padrão que permite ao réu, suposto autor do crime de estupro de vulnerável, defender-se de acusações tão graves, que são as ressalvas abordadas pelos artigos 20 e 21 do Código Penal. O erro de tipo, permite a absolvição quando o acusado não teria meios para saber sobre a vulnerabilidade da vítima, como por exemplo, a menor de quatorze anos que usa identidade falsa e apresentada aparência de maior de idade. O erro de proibição consiste na escusa por desconhecer o fato ilícito, como é o caso dos relacionamentos com pessoas portadoras de síndrome de down, são permitidos por lei constituírem matrimônio, mas possui vulnerabilidade.

Outrossim, o presente artigo reforçou a regra determinante de imprescritibilidade do crime de estupro, bem como do caráter hediondo trazido pelas mudanças significativas da Lei n. 12.015/09.

Sendo assim, passou-se a analisar a questão cerne objeto de estudo: estupro de vulnerável a palavra da vítima e os riscos da condenação.

Nesse sentido, foi contraposto dois posicionamentos jurídicos acerca dos efeitos da valoração da palavra da vítima no delito supracitado e, consequentemente os riscos da condenação do réu por esse único meio de prova.

Conclui-se que, em que pese o crime de estupro ser praticado em situações clandestinas, sobretudo quando praticado contra vulneráveis, impossibilitando por diversas vezes sua comprovação por meio de prova testemunhal e pericial. Deve ser levado em consideração o princípio da presunção de inocência e in dubio pro reo, os quais não admitem tal acusação fundamentada em forma de depoimento exclusivo da vítima, consistindo em elemento produzido de forma unilateral.

Portanto, essa prática bem quista pelos Tribunais Superiores, possui em seu bojo inconstitucionalidade, por infringir princípios fundamentais garantido em cláusula pétrea. Sendo, apenas, proveitoso a valoração do depoimento da vítima quando incorporado por outros elementos que indiquem, de maneira convicta, a materialidade e autoria do crime de estupro de vulnerável.

 

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Data da conclusão/última revisão: 9/10/2019

 

 

 

Diego Gomes de Sales e Maycon Vitória Almeida

Acadêmicos do Curso de Direito do Centro Universitário São Lucas – Campus Ji-Paraná/RO.