Algumas notas sobre o acordo de não persecução penal (Art. 28-A do CPP)

O chamado acordo de não persecução penal ingressou no ordenamento jurídico pátrio por meio do art. 18 da Resolução CNMP 181, de 7 de agosto de 2017, ato normativo este que dispõe sobre a instauração e a tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público. A redação do dispositivo foi, pouco tempo depois, modificada pela Resolução CNMP 183, de 24 de janeiro de 2018.

A introdução desse novo instituto – que significou um expressivo alargamento do paradigma da justiça penal consensual brasileira – por intermédio de ato normativo infralegal expedido por órgão técnico-burocrático incumbido do controle externo das atividades administrativas dos Ministérios Públicos do Brasil – qual seja, o Conselho Nacional do Ministério Público – gerou acentuada polêmica.

A parcela dos comentaristas simpática ao acordo de não persecução penal sustentava que ele pretendia conferir maior racionalidade ao sistema penal, permitindo, de um lado, que o Parquet e o Poder Judiciário voltassem as atenções e a celeridade primordialmente aos crimes graves e viabilizando, de outro lado, uma resposta muito mais rápida aos delitos de pequena expressividade, o que poderia ocorrer até mesmo poucos dias após a sua prática.[1]

Afirmou-se ainda que a Resolução CNMP 181/2017 foi fortemente inspirada pela experiência alemã, na qual a possibilidade de acordo penal surgiu, mesmo sem previsão legal, em decorrência de práticas informais dos agentes da persecução criminal, que constataram a incapacidade do sistema de absorver e processar todos os casos. A prática de celebrar acordos, posteriormente, acabou chancelada pelo Tribunal Constitucional Alemão, que reconheceu a sua constitucionalidade, apesar da lacuna legislativa.[2]

Em acréscimo, como argumentos em defesa da constitucionalidade do art. 18 do ato normativo, asseverou-se que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu que as resoluções do Conselho Nacional de Justiça – e, portanto, também as do CNMP – ostentam caráter normativo primário; que o dispositivo buscava tão somente aplicar os cânones constitucionais da eficiência, da proporcionalidade e da celeridade e o princípio acusatório; que a autorização para a celebração do acordo não consubstanciava norma de Direito Processual, já que disciplinava questões prévias ao processo penal condenatório e externas ao exercício da jurisdição; e que a normativa propunha regulamentar e aplicar diretamente dispositivos constitucionais intrinsecamente relacionados à atuação do Ministério Público, inserindo-se no âmbito da competência do CNMP.[3]

Todavia, apesar das declaradas boas intenções – de que o Inferno está repleto, segundo o conhecido ditado popular – e da profunda e influente cultura jurídica produzida no país que lhe serviu de inspiração, o acordo de não persecução penal, tal como inicialmente incorporado no Direito brasileiro, padecia de graves inconstitucionalidades.

Em primeiro lugar, o reconhecimento pelo STF de que as resoluções do CNJ – e, por essa lógica, do CNMP – possuem caráter normativo primário não autorizaria que por tal via se introduzissem mecanismos contrários ao ordenamento jurídico e periclitadores de garantias processuais fundamentais.[4]

Com efeito, o instituto em questão foi importado e inserido sub-repticiamente em um ato normativo infralegal, ao invés de discutido com cautela, amplitude, publicidade e profundidade e de forma participativa nas instâncias legiferantes, representativas do espaço público democrático institucionalizado. Só isso já lhe impingia o caráter de desavergonhada afronta ao art. 1º, par. ún., da CF/1988.

Em segundo lugar, a autorização para celebração do acordo de não persecução penal do art. 18 da Resolução CNMP 181/2017 traduzia sim norma de natureza processual, pois envolvia a disponibilidade do exercício da ação penal condenatória, pretendendo derrogar o Código de Processo Penal, que – bem ou mal – dava mostras de haver acolhido a regra da obrigatoriedade. Assim, o dispositivo, a um só tempo, também violava os arts. 22, inc. I, e 129, inc. I, da CF/1988.[5]

Registra-se que o art. 18 da Resolução CNMP 181/2017 foi objeto de duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas no STF: ADI 5.790/DF, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), e ADI 5.793/DF, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ambas sob a relatoria do Min. Ricardo Lewandowski e pendentes de julgamento.

Fique claro que há tempos somos favoráveis à ampliação dos espaços de consenso e à diversificação de procedimentos e de possibilidades de resolução da controvérsia penal. Entretanto, sempre entendemos que tudo isso depende de balizamentos legais adequados, precedidos do salutar debate democrático na esfera deliberativa constitucionalmente apropriada, até porque em grande parte das vezes envolve um componente transacional, com renúncias de ambos os lados: do Estado, quanto ao exercício integral da persecução penal e a parcela do seu jus puniendi, e do imputado, quanto ao exercício integral de suas garantias processuais e a parcela de sua liberdade.

A citada polêmica quanto à constitucionalidade do acordo de não persecução penal agora parece ter sido sepultada, uma vez que a Lei 13.964/2019 (a chamada “Lei Anticrime”) inseriu no CPP um novo dispositivo, o art. 28-A, que passou a prevê-lo e regulá-lo de forma minuciosa, em boa medida à semelhança da disciplina antes trazida no art. 18 da Resolução CNMP 181/2017. Com efeito, a nova roupagem legal conferida ao instituto certamente afastou as críticas acima apontadas.

Do mesmo modo que a transação penal e a suspensão condicional do processo, o acordo de não persecução penal, sob a perspectiva estrutural, é um negócio jurídico processual, refletindo o resultado de uma concordância positiva entre o Ministério Público e o imputado, devidamente assistido por seu defensor, ao passo que, sob a perspectiva funcional ou finalística, consiste em uma alternativa procedimental simplificadora transacional, cuja característica marcante é abreviar a persecução criminal e oferecer um método autocompositivo de resolução da controvérsia penal, diferente do tradicional, conflitivo e heterocompositivo processo penal de conhecimento condenatório.[6]

Feitas essas observações, passemos agora a um olhar sobre o art. 28-A do CPP.

O caput do art. 28-A estabelece que, não sendo o caso de arquivamento, e desde que necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime, o Parquet poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a quatro anos e a infração não houver sido cometida com violência ou grave ameaça contra a pessoa, o imputado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática e se comprometer a cumprir as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente: reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo (inc. I); renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime (inc. II); prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do CP (inc. III); pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do CP, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha preferencialmente como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo crime (inc. IV); e/ou cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal atribuída (inc. V).

O § 1º acrescenta que, para a aferição da pena mínima cominada ao delito, a que se refere o caput, serão consideradas as causas de aumento e/ou de diminuição aplicáveis no caso concreto.

Por outro lado, conforme o § 2º do art. 28-A, o acordo de não persecução penal não será aplicado nos casos em que for cabível a transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei (inc. I); em que o investigado for reincidente ou houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas (inc. II); em que o agente tiver sido beneficiado, nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração, com acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo (inc. III); e de crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor (inc. IV).

No mais, o art. 28-A disciplina requisitos formais e procedimentais para a avença.

O acordo de não persecução penal deve ser formalizado por escrito e firmado pelo membro do Parquet, pelo imputado e por seu defensor (§ 3º).

Para a homologação do negócio jurídico, deverá ser realizada audiência, na qual o juiz verificará a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado, na presença do seu defensor, e sua legalidade (§ 4º).

Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no pacto, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta, com concordância do investigado e seu defensor (§ 5º).[7]

Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal (§ 6º).

O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º (§ 7º).

Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Parquet para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento de denúncia (§ 8º).

A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento (§ 9º).

Descumprida qualquer das condições estipuladas no pacto, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia (§ 10).

O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo imputado, inclusive, pode ser utilizado como justificativa para a recusa de oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo quando do ajuizamento da acusação (§ 11).

A celebração e o cumprimento da avença não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para o fim de impedir nova aplicação do instituto durante o prazo de cinco anos, nos moldes do inc. III do § 2º (§ 12).

Satisfeitas integralmente as condições acordadas, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade (§ 13).

Por derradeiro, no caso de recusa do Ministério Público em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos ao órgão superior da instituição para reexame, na forma do art. 28 do CPP.

Da leitura do art. 28-A do CPP, depreende-se que o Parquet dispõe de discricionariedade regulada ou regrada para apreciar o cabimento e a pertinência do acordo de não persecução penal como resposta adequada ao caso penal. Isso porque, além de verificar os requisitos legais de aferição objetiva, permissivos (previstos no caput: não se vislumbrar hipótese para o arquivamento da investigação criminal e se tratar de infração cometida sem violência ou grave ameaça contra a pessoa e com pena mínima cominada inferior a quatro anos) e impeditivos (previstos no § 2º), deverá fazer um juízo de valor político-criminal positivo, convencendo-se de que a solução pactuada se mostra necessária e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime.

Enfim, entendemos que o acordo de não persecução penal, agora legitimamente incorporado ao ordenamento jurídico nacional, há que ser saudado como uma revolução copernicana ou um ponto de mutação no sistema processual penal brasileiro, dada a expansão – absolutamente legítima, proporcional e razoável, ressalte-se – que propiciou ao paradigma da justiça penal consensual brasileira.

 

NOTAS:

[1] Cf. CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O acordo de não-persecução penal criado pela nova resolução do CNMP. Consultor Jurídico, São Paulo, 18 set. 2017. Disponível em: lt;https://www.conjur.com.br/2017-set-18/rodrigo-cabral-acordo-nao-persecucao-penal-criado-cnmp#authorgt;. Acesso em: 28 dez. 2017.

[2] Cf. CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O acordo de não-persecução penal criado pela nova resolução do CNMP, cit.; e VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de; MOELLER, Uriel. Acordos no processo penal alemão: descrição do avanço da barganha da informalidade à regulamentação normativa. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, México, v. 147, p. 13-33, set./dez. 2016. n. I.

[3] Cf. CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O acordo de não-persecução penal criado pela nova resolução do CNMP, cit..

[4] Cf. VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Não-obrigatoriedade e acordo penal na resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, v. 299, p. 7-9, out. 2017.

[5] Cf. VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Não-obrigatoriedade e acordo penal na resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, cit.; JARDIM, Afrânio Silva. Ser contra a resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público nada tem a ver com o debate entre punitivismo e garantismo. Empório do Direito, Florianópolis, 26 set. 2017. Disponível em: lt;http://emporiododireito.com.br/backup/ser-contra-a-resolucao-18117-do-conselho-nacional-do-ministerio-publico-nada-tem-a-ver-com-o-debate-entre-punitivismo-e-garantismo-por-afranio-silva-jardim/gt;. Acesso em: 28 dez. 2017; e MAIOR, Pierre Souto. Observações sobre a resolução n. 181/CNMP. Escola Superior de Direito Público, 2 out. 2017. Disponível em: lt;http://esdp.net.br/observacoes-sobre-a-resolucao-n-181cnmp/gt;. Acesso em: 28 dez. 2017.

[6] A respeito das alternativas procedimentais simplificadoras transacionais e consensuais, cf. FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 192 ss.

[7] Nesse ponto, o § 6º do art. 18 da Resolução CNMP 181/2017, na redação dada pela Resolução CNMP 183/2018, apresentava solução tecnicamente superior e mais consentânea com o sistema acusatório que tanto se pretende aperfeiçoar no Brasil. Assim, se o magistrado considerasse incabível o acordo ou inadequadas ou insuficientes as condições estipuladas, faria a remessa dos autos ao Procurador-Geral ou ao órgão superior interno do Parquet responsável por sua apreciação (as Câmaras de Coordenação e Revisão, no âmbito dos ramos do Ministério Público da União), nos termos da legislação vigente, que poderia adotar as seguintes providências: oferecer denúncia ou designar outro membro para oferecê-la (inc. I); complementar as investigações ou designar outro membro para complementá-las (inc. II); reformular a proposta do acordo de não persecução, para a manifestação do investigado (inc. III); ou manter o acordo de não persecução, que vincularia todo o ramo do Ministério Público de que se cuidasse (inc. IV).

Data da conclusão/última revisão: 22/3/2020

 

 

 

Thadeu Augimeri de Goes Lima

Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Diretor e professor da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR), unidade de Londrina. Promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná, titular na Comarca da Região Metropolitana de Londrina.